Ao longo de quatro anos, o vereador Ricardo Gomes (DEM) fez um movimento político de 180 graus em relação do governo Nelson Marchezan. Até meados de 2017, ainda era secretário de Desenvolvimento Econômico, cargo que deixaria “em respeito aos princípios liberais” quando o governo protocolou pela primeira vez o projeto de mudança do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). A atualização do imposto seria aprovada apenas em 2019.
Em agosto de 2020, já em outro partido (migrou do PP para o DEM), ele se tornou um dos críticos mais contundentes do prefeito. Nessa entrevista, o vereador avalia o processo de impeachment de Marchezan na Câmara Municipal. Às voltas com negociações de uma coligação entre DEM e MDB, Gomes evitou responder perguntas sobre as eleições municipais. Confira trechos da conversa.
O pedido de impeachment tem como peça central a publicidade em saúde da prefeitura. Na sua análise, quais elementos dela são passíveis de investigação?
Processo de impeachment, todo mundo sabe, é jurídico e político. Tem de haver um elemento jurídico para ele se configurar e um contexto político sem o qual ele não acontece. Vejo três elementos jurídicos que justificam a admissibilidade. O primeiro é a natureza da publicidade feita com recursos do Fundo Municipal de Saúde. Ou seja, não é ter usado o fundo, é a propaganda que foi feita. Há peças de natureza institucional, e não de prevenção. É grandão: “Botamos 200 leitos”, e pequeno, lá embaixo: “Use máscara.” A campanha usava, inclusive, como slogan o nome da coligação do prefeito, que era “Porto Alegre pra frente”. Virou “Poa pra frente, Poa pra gente”. O segundo elemento foram as peças publicadas fora do Estado, o que contraria a Lei Orgânica do Município. O terceiro, sobre o qual o prefeito tem falado pouco, é a contratação e aprovação da publicidade. Entre o resultado da licitação, a assinatura do contrato com a agência e as peças já estarem prontas, aprovadas e publicadas foram poucos dias. Não quero fazer ilações antes da defesa, mas chama a atenção essa velocidade.
Sobre a publicidade publicada em veículos de fora do Estado, isso é citado no requerimento do impeachment, mas não como justificativa. O prefeito é criticado por ela assim como é criticado por suas ações na pandemia, por exemplo. Levar isso em conta não é ir além dos limites objetivos do processo?
Não vejo dessa forma. Não se discutirá algo que está fora da petição original. A peça suscita atos e fatos, enquanto a Câmara Municipal aplica o direito. Se os fatos suscitados na peça apontam algum ilícito, a Câmara tem de aplicar a lei. É quase matemático. Obviamente é preciso analisar a defesa do prefeito, ouvir as testemunhas para fazer o julgamento lá na frente.
O senhor citou um contexto político sem o qual o impeachment não acontece. Como avalia a situação do prefeito nesse ponto?
O acúmulo político do prefeito conta contra ele. Durante todo o mandato ele desrespeitou a Câmara Municipal. Não soube e não quis dialogar. Não ouviu quem estava ao redor dele tentando ajudar. Não conseguiu imprimir continuidade no próprio governo. Na sexta-feira (21), saiu o Bruno Miragem (secretário extraordinário para enfrentamento do coronavírus). Deve ser o número 60 que sai do primeiro escalão do governo. O prefeito buscou um governo monocrático, uma forma de governar sozinho. Marchezan passou quatro anos tentando governar sozinho. Agora ele está sozinho. Isso é suficiente para o impeachment? Não, precisa haver o elemento jurídico.
Será mesmo? Os 31 votos pela admissibilidade não sinalizam que o prefeito já está julgado?
Por mim, não. Eu votei contra cinco processos de impeachment. Eu fui do governo. Saí dele e fui pra base do governo na Câmara. Depois, saí da base e passei a ser um crítico do governo. Em todos esses momentos, passaram cinco processos de impeachment por lá e eu votei contra todos. Às vezes, havia o elemento político e não havia o jurídico ou vice-versa. Hoje, existem os dois, mas o julgamento é só depois de se analisar as provas.
Esse processo pode ganhar ou perder protagonismo conforme as chances do prefeito no processo eleitoral?
Acho difícil que Marchezan consiga construir ponte com quaisquer que sejam os vereadores, porque ele não respeita o parlamento em si. (...) Ele tentou transformar a Câmara em um órgão de chancelaria: só pode dizer sim ou não, não pode mexer nos projetos. Construir, fazer emenda, nunca.
RICARDO GOMES
vereador pelo DEM
Eu acho que o processo eleitoral conta muito, mas a favor do Marchezan. Mesmo pessoas que queriam o fígado do Marchezan podem dizer: “Eu queria ver ele impedido, mas não nesse momento, às vésperas de uma eleição.” Ele soube semear essa visão, se vitimizar e usar isso como argumento. Acho mais provável pessoas deixarem de votar a favor do impeachment pela proximidade do processo eleitoral do que alguém que vote para tirá-lo da disputa.
E na abertura do processo, o quanto a eleição pesou?
Minha visão é que pênalti é pênalti, seja aos cinco minutos do primeiro tempo ou aos 48 minutos do segundo. O processo questiona despesas empenhadas em junho. Não abrir processo em razão da proximidade com as eleições passaria a mensagem de que, nos últimos meses de mandato, pode tudo. E outra: o Ministério Público de Contas acolheu um pedido de investigação sobre essas publicidades. Também pediu ao Tribunal de Contas do Estado que suspendesse a propaganda. Essas instituições também têm candidato a prefeito?
Na sua visão, quais são as chances de o impeachment ser barrado pela Justiça?
O prefeito pode tentar retardar, como já está tentando (ao pedir mais tempo para apresentar sua defesa, no dia 21). Pode conseguir anular etapa, pedir testemunhas de fora para criar empecilhos, chamar ex-presidentes... Mas tudo isso é chicana para ganhar tempo e tentar extrapolar o prazo final de 90 dias. Um dia, ele vai ser julgado.
Perguntei isso ao prefeito e pergunto, agora, ao senhor: caso o prefeito não seja impedido e venha a se reeleger, é possível ter governabilidade depois de uma ruptura desse nível? É possível reconstruir essa ponte?
Não sei responder essa pergunta porque é palpite. Mas acho difícil que Marchezan consiga construir ponte com quaisquer que sejam os vereadores, porque ele não respeita o parlamento em si. A base do governo só conhecia os projetos do Executivo depois de protocolados. Mesmo um vereador da base, para falar com um secretário responsável por um tema específico, precisava de autorização de outro. Marchezan tentou transformar a Câmara em um órgão de chancelaria: só pode dizer sim ou não, não pode mexer nos projetos. Construir, fazer emenda, nunca. O único projeto que o prefeito despendeu energia em aprovar foi o IPTU. O resto ele tocou na Câmara em regime de urgência e disse “votem aí”.