Em que pesem os argumentos de uso político e a conveniência do processo às vésperas das eleições municipais e em meio a uma pandemia, os questionamentos ao governo Nelson Marchezan que justificaram a abertura de um processo de impeachment na Câmara Municipal na quarta-feira (5) residem nos gastos do governo com publicidade em saúde.
O requerimento de impeachment — assinado por duas empresárias, um engenheiro e uma cidadã que não informou sua profissão — questiona os gastos de R$ 3.122.779,40 da prefeitura que tinham como fonte de custeio o Fundo Municipal de Saúde.
De acordo com o documento, se trata de uma infração político-administrativa por não se enquadrar nas nove finalidades previstas para despesas do fundo em decreto municipal de 1995 (11.317), na gestão Raul Pont.
No documento, o argumento é de que “sacar dinheiro do Fundo Municipal da Saúde para pagar publicidade inaproveitável, ante a exiguidade de recursos materiais notoriamente deficientes na rede hospitalar de Porto Alegre, é incompatível e contradiz as próprias informações disseminadas pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul e prefeitura de Porto Alegre”. Seriam “provas irrefutáveis” de que o dinheiro do fundo fora “utilizado ilegalmente”.
Porém, cabe observar que o inciso oitavo do artigo 4º do referido decreto prevê gasto para “atendimento de despesas diversas de caráter urgente e inadiável, necessárias à execução das ações e serviços de saúde”. Caberá aos vereadores analisar se a publicidade — voltada basicamente à prevenção da covid-19 — pode ser enquadrada nesse entendimento.
A defesa de Marchezan argumentará dois pontos. Primeiramente, que não há desvio da finalidade do Fundo Municipal de Saúde ao usar esse recurso para publicidade em saúde. De acordo com ofício assinado pelo prefeito e enviado ao presidente da Câmara, Reginaldo Pujol (DEM), na segunda-feira (3), o fato de os recursos estarem depositados no fundo ocorre em respeito a legislações e decisões judiciais que obrigam prefeituras, Estados e União a não misturarem recursos da saúde ao caixa único dos governos.
Por fim, a prefeitura argumenta que tanto a cifra quanto o órgão executor desses gastos foram autorizados pela própria Câmara de Vereadores ao aprovar o orçamento para o ano de 2020, com voto favorável de 30 vereadores (com abstenções da bancada do PSOL, de três vereadores, e três ausências). A lei orçamentária autorizaria a prefeitura a gastar até R$ 5.960.000 em publicidade, constando como órgão executor “SMS/Fundo Municipal de Saúde”. O valor empenhado até aqui, portanto, estaria dentro deste limite.
Peças misturam prevenção e realizações
GaúchaZH teve acesso a todas as peças publicitárias feitas e publicadas pela prefeitura de Porto Alegre no ano de 2020 na área de saúde. Para a veiculação delas em veículos de comunicação (TV, rádio e jornal), mídias externas e veículos digitais foram gastos R$ 1,9 milhão da Secretaria Municipal de Saúde e R$ 843,5 mil da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Esporte. A diferença frente ao valor de R$ 3,1 milhões empenhado é, conforme a prefeitura, o custo de criação das campanhas.
O material é basicamente todo voltado à pandemia do coronavírus. Entre elas estão, por exemplo, a campanha do aniversário de Porto Alegre, veiculadas em março. Os comerciais de TV mostravam cenas da cidade vazia com os dizeres: “Nessa semana, Porto Alegre está de aniversário. Obrigado por não visitar a aniversariante. Fique em casa e vamos todos comemorar muitos anos de vida”.
Há peças com conteúdo 100% voltado para medidas de prevenção, como spots de rádio e cartazes ensinando a lavar as mãos e respeitar o distanciamento social, e outras que misturam textos com medidas de prevenção e realizações do governo municipal.
A campanha intitulada “Aqui tem”, por exemplo, veiculada em junho em jornais impressos, lista quatro tópicos de prevenção em “Faça sua parte” e outros quatro em “A prefeitura faz a dela”. Neste último, ressalta a “ampliação da testagem de coronavírus”, “+ de 200 novos leitos”, “tendas de atendimento exclusivo para covid-19” e “Novo hospital para a cidade”. Os comerciais de rádio também misturam medidas de prevenção e realizações da prefeitura.
Anúncios fora de Porto Alegre também são mencionados
O pedido de impeachment não é embasado neles, mas o texto do documento menciona o processo que a prefeitura enfrentou desde dezembro de 2019 por ter publicado propagandas da gestão municipal de Porto Alegre em jornais de São Paulo.
Em junho passado, o Tribunal de Justiça do Estado manteve decisão liminar que suspendia os efeitos dos contratos de publicidade mantidos entre a prefeitura e duas agências de publicidade. Os anúncios, cujos títulos diziam “as reformas que o Brasil precisa Porto Alegre já fez”, foram interpretados como de cunho político e antecipação de campanha eleitoral.
Na sessão da Câmara Municipal que aceitou a abertura do processo de impeachment, diferentes vereadores enfatizaram que fazer publicidade em veículos de fora de Porto Alegre é uma violação da Lei Orgânica do Município, passível de crime de responsabilidade.
No inciso 2º do artigo 116, a lei diz que “ficam proibidas a publicidade e a propaganda de órgão da administração direta e indireta fora do Município, seja qual for o objetivo, exceto aquelas referente a atividade turística”.