Como diretor de mobilidade do instituto de pesquisas World Resources Institute (WRI), o advogado curitibano Sérgio Avelleda tem a missão de desenvolver projetos em todo o mundo que garantam uma circulação de pessoas e veículos menos poluente, mais segura e inclusiva. Para conseguir isso, a partir de seu escritório em Washington (EUA), o ex-secretário municipal de Mobilidade e Transporte de São Paulo e ex-presidente do metrô paulista aposta em uma fórmula que substitui obras viárias por planejamento urbano a fim de evitar a necessidade de deslocamentos e por investimentos que estimulem a circulação a pé, de bicicleta ou transporte coletivo.
Para Avelleda, é melhor garantir calçadas mais confortáveis do que construir viadutos. O especialista acredita que o uso indiscriminado do carro faz parte do passado das grandes cidades. Na entrevista a seguir, concedida por telefone dos EUA, ele aborda essas questões, repercutindo o debate promovido por GaúchaZH neste especial de mobilidade urbana.
Por que a mobilidade urbana permanece um problema ao longo de décadas em cidades como Porto Alegre?
Uma cidade com problemas de mobilidade é como um paciente que tem febre. A febre não é a doença, é o modo como o corpo diz que há algo errado. A cidade é um organismo vivo. Quando está congestionada, é como se dissesse “olha, meu desenvolvimento urbano foi feito de maneira equivocada”. As cidades, especialmente nos países em desenvolvimento, cresceram de forma muito acelerada, sem planejamento. Por razões econômicas, preferiu-se buscar residências novas em terrenos mais baratos, cada vez mais distantes, e se desenharam esses bairros sem se pensar em criar outras centralidades econômicas. Ou seja, a centralidade econômica ficou em poucos lugares, normalmente no Centro das cidades, e as moradias foram levadas cada vez mais para longe.
Isso é um problema porque exige muito deslocamento entre casa e trabalho?
Sim. Por isso, se a gente atacar o problema do deslocamento só no mundo da mobilidade, vamos retroalimentá-lo. Se eu tenho um eixo congestionado em Porto Alegre e ofereço uma linha de metrô, o que vai acontecer? Vou tornar mais atrativo morar mais longe, e a linha de metrô vai superlotar em pouco tempo. Por isso, precisamos atuar ao mesmo tempo em soluções de mobilidade, mas também de planejamento urbano. Se vou fazer uma linha nova de metrô ou de BRT, preciso fazer com que, ao redor dela, haja residências e também, fundamentalmente, atividades econômicas. Se criarmos novas centralidades econômicas, vamos reduzir a demanda por viagens.
Como fazer isso?
Nenhuma prefeitura deveria aceitar um novo bairro só residencial. Todos os bairros deveriam vir com uso misto. Ou seja, tendo residência, comércio, serviços, tudo no mesmo lugar.
O melhor instrumento é o plano diretor?
Os planos diretores são as principais ferramentas para redesenhar o desenvolvimento urbano. No caso do Brasil, a gente precisa trazer moradores para o Centro. Aí é preciso haver uma intervenção do setor público mesmo, porque não é uma lógica do mercado. O setor público precisa atuar para inverter a lógica e transformar o Centro em lugar de moradia. Nas cidades do Brasil, as ruas do Centro são vazias à noite.
As obras para resolver problemas de trânsito, como ampliação de vias e construção de viadutos, amenizaram o problema ou contribuíram para mantê-lo?
São uma das raízes do problema, que nós chamamos de “carrocentrismo”. As soluções de mobilidade sempre foram de infraestrutura para o automóvel. Em São Paulo, os automóveis são responsáveis por apenas um terço dos deslocamentos, outro terço é feito exclusivamente a pé, e o terço restante são viagens no transporte público. Mas o espaço reservado para o automóvel é muito maior. Sempre se teve em mente que uma maneira de resolver engarrafamento é construir novas ruas. Mas resolver congestionamento construindo novas ruas é como lidar com a obesidade fazendo novos furos no cinto. Em seguida, esse espaço vai ser ocupado. São Paulo construiu um túnel embaixo do Parque Ibirapuera para resolver engarrafamento. O engarrafamento foi para debaixo da terra.
Precisamos atuar em soluções de mobilidade, mas também de planejamento urbano. Nenhuma prefeitura deveria aceitar um novo bairro só residencial. Todos os bairros deveriam vir com uso misto, comércio, serviços, tudo no mesmo lugar.
O ex-prefeito de Bogotá (Colômbia) Henrique Peñalosa costuma dizer que novas vias criam novo tráfego...
Sim. E novos congestionamentos. O que resolve, mesmo, após a questão do planejamento urbano, que é de longo prazo, é investimento no que chamamos de “mobilidade ativa”: a imensa maioria das viagens de carro nas cidades é inferior a cinco quilômetros. São distâncias que a maior parte das pessoas podia fazer andando ou de bicicleta.
E por que não fazem?
Além do fato de que as pessoas não estão acostumadas a pensar dessa maneira, as cidades não estão desenhadas para isso. A gente se preocupa muito em recapear asfalto, mas não em deixar as calçadas confortáveis e seguras. Sonegamos políticas públicas para pedestres. Se houvesse a política de criar calçadas confortáveis e seguras, aumentaria o fluxo de pessoas, o que melhoraria também a segurança pública. Onde tem muita gente caminhando, os índices de violência se reduzem, e cria-se um ciclo positivo de mais pessoas caminharem. Outra infraestrutura importante é da bicicleta. Ela é ainda mais eficiente do ponto de vista energético do que a caminhada, mas carece de infraestrutura, de ciclovias.
Porto Alegre está fazendo um esforço para aumentar a rede de ciclovias, mas nem todos concordam em retirar espaço dos automóveis.
Mas é um caminho necessário. A bicicleta é muito eficiente, transporta mais rápido do que andar a pé e sem emissão de gás contaminante. É mais barata do que ter automóvel e mais saudável para quem utiliza. Quando eu era secretário em São Paulo, tinha gente que dizia “mas tem ciclovia em que não passa ninguém”. Em primeiro lugar, não é verdade. Diferentemente do carro, a bicicleta não se faz notar. Ela não faz barulho, não buzina, não faz engarrafamento. Segundo, é natural que, quando você comece a oferecer infraestrutura, pouca gente utilize. Você está convidando as pessoas a usar. Só tenho uma certeza: se não houver ciclovia, pouca gente vai usar bicicleta. Tendo ciclovia, ao longo do tempo, você vai ver pessoas começando a usar. É assim em todas as cidades. Amsterdam não era uma cidade amigável para o ciclista. Se olhar fotos dos anos 1970, era desenhada para o automóvel. A construção da infraestrutura cicloviária fez hoje que 36% das viagens sejam por bicicletas.
Uma geografia acidentada como a de Porto Alegre limita o uso da bicicleta?
Amsterdam é plana, mas tem vento, chuva e frio que não troco pelas subidas. Em relação a isso, a bicicleta com apoio elétrico está chegando, então as pessoas sem grande preparo físico vão também poder pedalar porque haverá cada vez mais equipamentos acessíveis.
E qual o papel do transporte público?
Fundamental. O deslocamento de longa distância pode ser feito no transporte público. Ele é mais eficiente do ponto de vista energético, mais democrático, ocupa muito menos espaço do que o automóvel e é mais seguro. Quanto mais as pessoas se deslocarem no transporte público, menos acidentes no trânsito vamos ter. Por que as pessoas resistem a usar o transporte público quando têm a opção de usar o automóvel? Porque falta oferecer atratividade.
E o que atrairia usuários?
Em primeiro lugar, confiabilidade. As pessoas gostam de metrô porque é confiável. Se eu prometo que um trem vai sair às 14h, na ferrovia eu consigo cumprir isso em 99% das vezes. No ônibus, para eu alcançar esse nível de eficiência, preciso ter infraestrutura exclusiva para não competir por espaço com automóveis. Construir corredores ou implantar faixas exclusivas melhora a eficiência do sistema e o torna mais atrativo. O motorista do carro, parado no congestionamento, olha para o lado e vê o ônibus passando. Um dia, dirá: “Será que não era melhor eu estar no ônibus?”. Outra coisa importante é informação. Usar a tecnologia para prover o usuário de informação sobre sua viagem, para que ele possa gerenciá-la.
Como sistema de GPS, que Porto Alegre começou a utilizar?
GPS, aplicativos pelos quais eu possa ver o horário em que o ônibus vai passar no ponto para diminuir o meu tempo de espera. O tempo de espera é um fator importante para o transporte público ser atrativo. Se vou para o ponto e não sei quando o ônibus vai passar, isso me desincentiva. A infraestrutura do ponto de ônibus deve ser protegida, segura, acolhedora. E é preciso entender que o transporte público não começa no ponto de ônibus, na calçada. Nunca o ônibus vai me levar da porta da minha casa para a porta do meu trabalho. Sempre vou ter de caminhar um pouco. O cliente chega por uma rede de serviços. Um conceito importante em mobilidade é a multimobilidade. Quem usa transporte público também tem de caminhar. A calçada faz parte da rede. Investir em calçada é investir em transporte público.
A gente vê municípios competindo com o Estado na gestão de linhas de ônibus. Isso diminui a eficiência e aumenta o custo. Do ponto de vista do tecido urbano, trata-se (o transporte metropolitano) de algo integrado.
A prefeitura de Porto Alegre apresentou um pacote de medidas que inclui taxas a aplicativos para subsidiar o transporte público. É um caminho para melhorar a competitividade do ônibus?
Há a necessidade de buscar novas fontes de financiamento para o transporte público. Essa discussão é urgente em todo o mundo em desenvolvimento. O transporte público tem um custo, e alguém precisa pagar essa conta. Quando cobro tudo do usuário, estou dizendo que ele é o único que se beneficia. Mas na verdade isso é um erro. Porque o transporte público tem uma capacidade de gerar externalidades positivas – ou seja, benefícios que não atingem apenas seus usuários ou operadores – mais do que qualquer outro negócio. Transporte público gera redução de congestionamentos, de poluentes, de custos com acidentados e mortos no trânsito, de custos de seguro, de gastos com doenças respiratórias. E aumenta a produtividade da cidade. São benefícios para todos. Não há como o transporte público captar tudo isso somente pela tarifa. Então, quando Porto Alegre e outras cidades do mundo dizem “vamos buscar outras fontes de financiamento”, querem dizer “vamos tentar nos apropriar de parte da externalidade positiva que nós geramos”. O que me parece corretíssimo. Quanto mais barato for o transporte público, mais usuário eu atraio, e mais externalidade positiva eu gero. Quando temos uma pessoa que decidiu deixar o carro em casa para usar o transporte público, ela está se beneficiando, mas está, principalmente, beneficiando a sociedade. Por isso, é justo que a sociedade de alguma forma ajude a custear o sistema.
Uma das propostas despertou muita polêmica ao prever pedágio para veículos de outros municípios. É uma ideia razoável?
Tem de se atuar em várias frentes ao mesmo tempo. Londres já faz isso com uma taxa de 29 libras para você acessar o centro da cidade. Nova York vai começar no ano que vem após muitos anos de discussão. Um dos nossos problemas é que não sabemos contabilizar o custo do automóvel. O transporte público em São Paulo, por exemplo, custa 35% do sistema. Está em uma linha orçamentária única, “subsídio para o transporte público”. Mas, se você quiser descobrir quanto custa o carro para a cidade de São Paulo, não tem essa linha orçamentária. Você tem de descobrir quanto custa a companhia de engenharia de tráfego, com 4 mil funcionários, os recapeamentos de via, a despesa com acidentados de trânsito – sendo que 60% das vagas em UTIs no Brasil são para vítimas de acidentes de trânsito, sem contar as doenças respiratórias decorrentes da poluição. Se você é usuário de carro e gera essa externalidade negativa, você deveria contribuir para reduzir os efeitos disso. É como a sobretaxação do cigarro: se você fumar muito, você contribui para doenças respiratórias, então você paga uma taxa mais alta para o produto. Então, do ponto de vista conceitual, é uma tendência, sim.
No Brasil, o automóvel sempre esteve associado a status pessoal e a uma liberdade individual. Não há uma barreira cultural a ser transposta para colocar essas ideias em prática?
Sim, mas já avançamos muito nesse sentido. Nas novas gerações, já observamos uma redução do desejo de ter carro. O carro não é mais o presente para quem entrou na universidade, entre a classe média, como era no passado. Ninguém é contra o automóvel. O problema é que, nas cidades, usamos o carro de maneira muito ineficaz. Se você pegar uma pessoa que usa o carro todo dia para trabalhar, meia hora para ir, meia hora para voltar. Ela compra um carro para usar uma hora por dia. Se você fosse dono de uma empresa, você jamais compraria uma máquina para usar uma hora por dia. Você compraria o serviço. Se preciso imprimir uma quantidade de pastas, você não compra uma impressora, você contrata um serviço. Muita gente está fazendo isso hoje. Em vez de eu comprar carro, eu uso um carro. Estamos mudando a maneira de usar o automóvel. Esse novo uso precisa ser mais sustentável.
Seu cargo na WRI prevê a promoção de modelos “disruptivos” de mobilidade. O senhor poderia dar exemplos práticos disso?
Uma coisa disruptiva é o uso de dados. Hoje você tem capacidade de produzir dados no mundo da mobilidade como nunca teve antes. Há muitos usuários com smartphones que registram todos os deslocamentos. Antigamente, para descobrir isso você tinha de fazer uma pesquisa enorme chamada Origem e Destino, que em São Paulo era feita a cada 10 anos, então você ficava uma década esperando chegarem esses dados. Não que sejam coisas idênticas, mas hoje você consegue ter isso praticamente online. Onde as pessoas estão indo e como elas estão indo. Para medir engarrafamento, por exemplo, você precisava colocar pessoas com binóculo, contando quantidade de carros, hoje qualquer cidadão abre o Waze, o Google Maps e vê onde está congestionado. Precisamos usar isso para gerenciar e resolver os problemas. O uso de meios compartilhados como os aplicativos, bicicletas e patinetes de aluguel, geram outra gama de dados. Hoje, as empresas de aplicativo podem dizer para a prefeitura onde há mais violações de trânsito, onde as pessoas passam em mais alta velocidade... Apenas deixando o aplicativo ligado elas conseguem medir isso. Você consegue atuar de maneira científica e mais eficiente. Isso é disruptivo. Em segundo lugar, soluções de micromobilidade que a gente nem imaginava que existiriam. Sistemas compartilhados, você não ser mais proprietário, mas usar as coisas é outra perspectiva disruptiva. Meios de pagamento cada vez mais modernos, usando o celular ou identificação biométrica, concentrando todos os meios de pagamento em um só. Isso possibilita fazer integrações tarifárias.
Faz cinco anos que vendi o meu último carro. Não é porque estou em Washington, não: em São Paulo, já me deslocava de bicicleta.
A integração tarifária é uma das grandes barreiras para um sistema de transporte mais integrado e eficiente nas cidades brasileiras, não?
Sim. É um grande desafio. Mas faz uma revolução. Quando São Paulo criou o bilhete único, e depois integrou com o governo do Estado, o metrô e os trens metropolitanos (CPTM), o uso do metrô aumentou expressivamente porque as pessoas viram que podiam ir mais rápido sem gastar tanto dinheiro. Você ofereceu qualidade de vida. Outro desafio é a criação de autoridades metropolitanas de transporte. É muito ineficiente a gestão municipalizada em regiões metropolitanas brasileiras. Do ponto de vista de tecido urbano, trata-se de algo integrado. Não faz sentido ter gestão de transporte que não seja única. E a gente vê hoje municípios competindo com o Estado na gestão de linhas de ônibus... Isso diminui a eficiência e aumenta o custo. Se o sujeito mora na periferia de uma cidade como Guarulhos e quer ir para o centro, precisa ter um cartão e pagar uma tarifa. Se quer ir desse local em que vive para o centro de São Paulo, tem de ter um segundo cartão e pagar uma segunda tarifa. Se quer ir para um bairro de São Paulo, já é um terceiro cartão e uma terceira tarifa. O que estamos dizendo para esse usuário? Compra uma moto ou um carro. Falta integração.
Mas não é fácil fazer esse tipo de integração...
Não, porque implica deslocar o poder dos municípios para um órgão só. Mas foram tantos os benefícios das cidades que fizeram isso ao redor do mundo que essa é uma discussão urgente de ser feita no Brasil.
O senhor poderia citar algum exemplo?
Madri fez isso ainda nos anos 1980. Reduziu em 30% o custo do transporte coletivo e aumentou em outros 30% a participação do transporte coletivo na matriz de transporte.
Em São Paulo, o senhor enfrentou uma acusação de improbidade, da qual acabou absolvido. Isso teve influência na decisão de trabalhar fora do país?
Em outro período, sim, entre 2013 e 2014 eu vivi na contingência de ter de buscar oportunidade de trabalho fora. Agora, não. Eu era secretário municipal de São Paulo, estava muito satisfeito, mas recebi esse convite e o aceitei porque a WRI me oferece oportunidade de trabalhar em escala global, e acho que posso contribuir bastante.
Como o senhor se desloca no seu dia a dia?
De bicicleta. Faz cinco anos que vendi o meu último carro. Não é porque estou em Washington, não: em São Paulo, já me deslocava de bicicleta. Faço todos os meus deslocamentos de bicicleta, ou transporte público. Quando preciso, uso táxi ou sistemas de aplicativo.