Um projeto capaz de provocar alto impacto no Rio Grande do Sul está em análise pelo governo estadual e sob uma ruidosa polêmica entre a sociedade gaúcha. A dúvida, que motiva divergências entre ambientalistas, empreendedores, acadêmicos e autoridades, é se o resultado seria positivo ou negativo: um novo rumo para a economia ou uma ameaça à qualidade de vida na Região Metropolitana e à busca por fontes de energia sustentáveis que orienta políticas internacionais hoje.
A razão da controvérsia é a possível instalação de uma mina de carvão a céu aberto e de uma planta industrial sob promessa de captar bilhões de dólares em investimentos, mas com risco de poluir e comprometer uma área de preservação natural tão importante que ajuda a manter a água do Guaíba potável: o Parque Estadual Delta do Jacuí.
O plano é escavar a mina e, em seguida, erguer uma estrutura complexa destinada a converter as reservas carboníferas em gás natural sintético (GNS), fertilizantes e metanol entre os municípios de Charqueadas e Eldorado do Sul, como se fosse um polo petroquímico à base de carvão em vez de nafta. Pelo potencial poluidor do carvão, críticos da iniciativa receiam uma tragédia natural enquanto seus defensores sustentam que novas tecnologias permitem uma exploração cada vez mais segura do mineral.
Iniciativas similares em outros países sugerem que empreendimentos desse tipo não são sinônimo de desastre ambiental, mas colocam em xeque as promessas de "uso limpo" do carvão e de viabilidade financeira do projeto. Indústrias de gaseificação localizadas em países de referência nesse mercado – Estados Unidos e China – têm histórico de impactos na natureza, dificuldades tecnológicas e instabilidade econômica.
No caso do Rio Grande do Sul, a preocupação com eventuais percalços é reforçada pela área a ser atingida. A Mina Guaíba ficaria a 240 metros de uma área de preservação, a 535 metros do parque estadual e a 1,5 quilômetro do Rio Jacuí, onde seriam despejados efluentes após tratamento.
O Plano de Manejo do parque (documento que traz as normas de uso e zoneamento de unidades de conservação) descreve as águas do delta como "um imenso filtro natural, contribuindo para manter a potabilidade das águas do Guaíba e os bons níveis de produtividade do pescado".
A dimensão do projeto capitaneado pela empresa gaúcha Copelmi Mineração levou o Ministério Público Estadual (MP-RS) e o Federal (MPF) a abrirem procedimentos de investigação sobre possíveis consequências. Os inquéritos seguem em andamento.
– Analisamos pontos como possíveis impactos no Jacuí e no Guaíba, a remoção de cobertura vegetal em área de banhado e riscos de alteração na qualidade do ar – diz a promotora do Meio Ambiente do MP em Porto Alegre, Ana Marchesan.
Por que fizemos esta reportagem?
O projeto de implantar uma mina de carvão e um polo carboquímico na Região Metropolitana tem alta relevância por possibilitar um estímulo à economia gaúcha, mas sob riscos ambientais comuns a empreendimentos de grande porte – principalmente quando se encontram próximos a uma área de preservação como o Delta do Jacuí. Além disso, o carvão é um mineral com alto potencial poluidor, o que leva a um esforço por parte de diversos países para reduzir seu uso. Por isso, é importante avaliar os prós e contras da iniciativa.
Quem foi ouvido para o conjunto de textos da reportagem?
GaúchaZH procurou entrevistar especialistas associados a entidades com credibilidade e conhecimento na área, além de representantes da empresa e do governo. Principais fontes ouvidas: promotora do Meio Ambiente do MPE em Porto Alegre, Ana Marchesan; diretor de Novos Negócios da Copelmi, Roberto Faria; secretário estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura, Artur Lemos; CEO da Gas Energy, Rivaldo Moreira Neto; gerente de comunicação da Dakota Gasification Company, Joan Dietz (EUA); engenheiro-visitante do MIT (EUA), Chi-Jen Yang; analista do setor energético chinês Colin Shek (China); presidente do Sindicato da Indústria de Adubos no RS, João Mário Darós, e representantes das quatro principais empresas do setor no Estado; geólogo e professor da UFRGS Rualdo Menegat; líder do Projeto Global de Água, Clima e Energia do Greenpeace Asia, Gan Yiwei (China); professora de Engenharia Ambiental e Assuntos Internacionais de Princeton, Denise Mauzerall (EUA); doutor em Ecologia e ex-diretor da Fepam Jackson Müller. A embaixada da China em Brasília foi procurada, mas não se manifestou.
Por que foram buscados exemplos nos EUA e na China?
Especialistas brasileiros e internacionais consultados por GaúchaZH apontaram esses dois países como as principais referências no mundo para o tipo de empreendimento que está em discussão no RS.
Que cuidados foram tomados para o equilíbrio deste conteúdo?
A reportagem procurou não se basear em declarações de defensores ou críticos do empreendimento, mas em evidências concretas publicadas em estudos acadêmicos, textos especializados, documentos ou casos concretos nos EUA e na China. Os representantes da Copelmi, responsável pelo projeto da carboquímica, preferiram não ser citados em entrevista, mas foram ouvidos, e suas ponderações foram acrescentadas ao longo dos textos.
A Copelmi sustenta que segue todos os requisitos legais para a obtenção das licenças e prevê o uso de tecnologias capazes de aproveitar o carvão com mais segurança do que no passado.
Estimativas da companhia indicam que a construção do complexo industrial no Estado, onde estão 90% das reservas de carvão do país, poderia atrair US$ 4,4 bilhões em investimentos. A expectativa de encorpar a frágil economia gaúcha faz o Piratini defender o aproveitamento das jazidas minerais no subsolo.
– A ideia do polo é criar uma nova cadeia produtiva. Para isso, ainda durante a gestão do governador José Ivo Sartori, foi aprovada uma política estadual para o setor – afirma o secretário estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura, Artur Lemos.
A Lei 15.047, de 2017, criou a política estadual do carvão com regras para esse mercado e previu a construção de dois "complexos carboquímicos" para converter o mineral em outros produtos: um na Campanha e outro no Baixo Jacuí, o qual se encontra em estudo.
Uma das dificuldades para avaliar a viabilidade e a segurança do empreendimento é que boa parte dos possíveis desdobramentos depende do tipo de tecnologia utilizada, da excelência técnica de construção e operação e de detalhes que ainda não são conhecidos porque o processo de licenciamento em curso na Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) se limita à abertura da mina, e não à posterior instalação da indústria (que exige outro trâmite para obter autorização). Durante o licenciamento, podem ser exigidas medidas de segurança mais rígidas do que o previsto.
Por isso, o exame do que ocorreu em países que já apostaram na gaseificação é um elemento relevante. Leia, ao lado e nas próximas páginas, as possíveis vantagens e desvantagens do projeto e o que experiências internacionais têm a revelar sobre a aposta que pretende transformar o carvão em uma espécie de ouro negro para o Rio Grande do Sul.
Os prós e os contras
Localização
A favor
O Rio Grande do Sul tem cerca de 90% das jazidas de carvão do país. Um dos pontos onde o mineral está concentrado é no Baixo Jacuí, na área entre os municípios de Charqueadas e Eldorado do Sul. Por esse motivo, uma lei estadual prevê a possibilidade de exploração do carvão nessa área.
Contra
O empreendimento ficaria próximo de uma área de grande importância ambiental, ao lado do Parque Estadual Delta do Jacuí e a 1,5 quilômetro do rio que dá nome à unidade. Além disso, estaria a 16 quilômetros da Capital. Qualquer descuido ou acidente poderia ter impacto significativo.
Questão ambiental
A favor
O complexo carboquímico converteria o carvão em um gás (chamado gás de síntese) e, a partir dele, poderia gerar diferentes produtos, como combustíveis e fertilizantes, em vez de queimá-lo como em uma termelétrica. Isso permite o lançamento de menos partículas poluentes na atmosfera. Tecnologias seguem em desenvolvimento, com menor potencial de poluição.
Contra
Indústrias norte-americanas e chinesas, mesmo construídas nos últimos anos e com tecnologia mais recente, registram episódios de poluição do ar, do solo e da água, além de um grande consumo de energia e água para funcionar. Como o complexo gaúcho ficaria localizado próximo a áreas de preservação e da Região Metropolitana, o risco em caso de problemas aumenta.
Aspecto econômico
A favor
Hoje, o Rio Grande do Sul precisa trazer de fora gás natural e insumos para fertilizantes. A carboquímica seria um meio de substituir essas importações e melhorar o desempenho da balança comercial. Um estudo encomendado pela Fiergs aponta possibilidade de acréscimo de R$ 23 bilhões à economia gaúcha até 2042, com criação de 7 mil empregos.
Contra
O estudo da Fiergs foi feito com base em uma projeção fixa de preços e de mercado, explica o autor, Alexandre Porsse. Se os preços variarem ou não houver mercado para os produtos, o resultado não se concretiza. Há dúvidas entre especialistas sobre a viabilidade econômica de se produzir GNS e fertilizantes a partir de carvão a preços competitivos.
Método de exploração
A favor
Em vez de depositar os rejeitos da mineração em uma barragem, como a que se rompeu em Brumadinho (MG), o método de lavra em tiras a ser usado prevê a colocação das sobras no fundo das cavas (buracos abertos para extração do mineral), que serão posteriormente cobertas. Segundo a Copelmi, isso regeneraria a paisagem original após a retirada do carvão.
Contra
Especialistas como o geólogo e professor da UFRGS Rualdo Menegat acreditam que o depósito dos rejeitos no fundo das cavas não elimina o risco de contaminação do solo e do lençol freático, por avaliar que camadas rochosas sobre as quais os rejeitos seriam depositados não são completamente impermeáveis.
Questão energética
A favor
Fontes menos poluentes de energia como a eólica, a solar ou a hidrelétrica dependem de condições favoráveis de vento, sol ou chuva que podem variar. A disponibilidade de GNS produzido a partir do carvão gaúcho representaria um recurso seguro e constante para o abastecimento do Estado.
Contra
Há hoje, em boa parte do mundo, um esforço para se reduzir o uso de combustíveis fósseis. A Alemanha pretende abandonar o carvão até 2038, por exemplo, e fundos de investimento ligados ao governo da Noruega não investem em projetos ligados a esse mineral. No mundo, o uso do carvão aumentou 3% em 2018, principalmente na China e na Índia. Nos Estados Unidos, caiu 5%, e na Europa, 2%.