Se há cinco anos um boêmio porto-alegrense previsse que alguns dos bares mais interessantes da cena cultural e gastronômica da Capital estariam a poucos metros da Avenida Voluntários da Pátria, é provável que o aconselhassem a parar com a bebida por aquela noite. Por motivos que vão das novas tecnologias até a coragem dos empreendedores de arriscar bares fora dos padrões, foi justamente o que aconteceu com os estabelecimentos do 4º Distrito, região que perpassa os bairros Farrapos, Floresta, Humaitá, Navegantes e São Geraldo.
Hoje, estabelecimentos de diferentes perfis irradiam principalmente pelas transversais da Avenida São Pedro atraindo desde o público universitário alternativo – habitués da Cidade Baixa e do Bom Fim – até os mais maduros e engomadinhos, tradicionalmente mais chegados ao eixo Moinhos de Vento-Auxiliadora. GaúchaZH conversou com proprietários e frequentadores de bares da região para entender o segredo do sucesso. Chegou a seis itens, que se interrelacionam e se completam, e a um problema ainda presente.
1. Revolução dos apps
É unanimidade entre os empresários que a boemia naquele local seria impossível sem a popularização do transporte por aplicativo, a partir do final de 2015. Não à toa, o fenômeno começa em 2016. As corridas guiadas por GPS propiciaram uma opção prática, segura e barata de chegar à região ainda fortemente estigmatizada após décadas de escuridão, abandono e prostituição de rua nos arredores da Avenida Farrapos, mesmo por motoristas que a desconheciam. Também fez as pessoas se darem conta do quanto o 4º Distrito está próximo.
– Não é surpreendente. É típico do porto-alegrense não conhecer a cidade além do bairro dele – opina Gabriel Salomão, um dos sócios do Gravador Pub, um dos bares pioneiros na região.
O próprio Gabriel faz mea-culpa. Publicitário workaholic e morador da Zona Sul, só descobriu o bairro ao abrir o bar. Eduardo Fontana fez os cálculos antes de inaugurar o Agulha, em 2017: são raros os bairros populosos a mais de R$ 10 de distância do seu bar. Portanto, não é tão mais caro ir para o São Geraldo do que ir ao Rio Branco, por exemplo, onde ele mantém outro estabelecimento, o Vasco 1020.
2. Imóveis baratos e diferentões
Embora a logística seja importante, o grande atrativo da região são os imóveis amplos e diferentes do que Porto Alegre está acostumada. A decoração industrial que muitos bares se esforçam para simular, nas casas da região ganham legitimidade em antigos galpões, fábricas e depósitos. É o caso do Distrito Brewpub, integrado aos tanques de cerveja, do Fuga, aberto em janeiro passado, e do 4Beer, união de duas cervejarias que desejavam ampliar atividades e operar como bar.
A casa onde estamos é de 1914. Me apaixonei à primeira-vista por ela e reformamos inteira. Não é como em outras regiões de Porto Alegre que, para decorar um bar, basta uma lata de tinta preta na fachada
GABRIEL SALOMÃO
Gravador Pub
– Onde mais a gente encontraria um local tão legal com 600 metros quadrados? Na Cidade Baixa, nem existe. Em outros bairros, o custo ficaria proibitivo – avalia Caio de Santi, sócio do 4Beer, um dos primeiros a fincar a bandeira na região, em 2016, na Rua Polônia.
Além dos galpões, casarões antigos também se converteram em bares inusitados, como o recente Capincho e o "veterano" Gravador Pub, vizinhos a metros um do outro.
– A casa onde estamos é de 1914. Me apaixonei à primeira-vista por ela e reformamos inteira. Não é como em outras regiões que, para decorar um bar, basta uma lata de tinta preta na fachada – alfineta Gabriel, do Gravado Pub.
3. Segurança além das aparências
Olhando para um bar como o Agulha por fora – um portinhola que dá para um galpão, nos fundos de uma rua sem saída, ao lado de alguns cones meio empoeirados – ninguém apostaria que um dos principais motivos de os empresários fincarem o pé ali é a segurança. No caso do Agulha, a própria geografia do beco impede fugas rápidas em caso de tentativa de assalto.
Aqui, as distâncias e o pouco movimento nas ruas não compensa o crime de oportunidade. O assaltante deve pensar em vir pra cá e desistir
EDUARDO FONTANA
Agulha
– Pesquisei, na época, e o bar com o maior número de arrastões em Porto Alegre ficava no Moinhos de Vento. Aqui, as distâncias e o pouco movimento nas ruas não compensa esse tipo de crime de oportunidade. O assaltante deve pensar em vir pra cá e desistir. "Fico por aqui mesmo que tem mais iPhones" – brinca Eduardo.
Cláudio Nery, um dos sócios do Fuga, faz coro. Segundo ele, os índices de segurança da região não são piores do que no restante da cidade e definitivamente são melhores do que o bairro, ainda ermo em muitos pontos, por vezes aparenta. O que não impede que os bares se resguardem bastante da porta para dentro. No Fuga, por exemplo, a revista inclui até detector de metais.
4. Política da boa vizinhança
Reparando no horário de funcionamento das casas, fica claro que uma das preocupações é evitar incomodação com a vizinhança. Todas abrem relativamente cedo e quase nenhuma delas fica aberta além da meia-noite. Mesmo casas como o OCulto, onde ocorrem festas mais dançantes, os eventos têm hora para acabar. A ideia é evitar que a proliferação de bares ganhe a antipatia dos moradores e que isso se reflita, mais tarde, em autuações e interdições da prefeitura, como virou rotina na Cidade Baixa.
– Fazemos questão de abrir somente até as 23h30min. Até para que o cara não fique tão alcoolizado. Se a bebida continua e entra a madrugada, o sujeito quer beber a noite inteira. Aí, se você fecha, ele segue bebendo na rua e incomodando os vizinhos – avalia Santi, do 4Beer.
Fazemos questão de abrir somente até as 23h30min. Até para que o cara não fique tão alcoolizado. Se a bebida continua e entra a madrugada, o sujeito quer beber a noite inteira.
CAIO DE SANTI
4Beer
A cervejaria, inclusive, tenta conquistar os trabalhadores da região, como das empresas DuFrio, Ferramentas Gerais e ThyssenKrupp. Para isso, passa a tarde aberta e oferece almoço executivo. Até aqui, a receptividade dos moradores é elogiada. Eduardo, do Agulha, conta que já houve casos de um carregamento de bebidas chegar e um vizinho receber em seu lugar.
5. Bares e público sem rótulos
Outra estratégia dos bares da região foi evitar direcioná-los a apenas um público. Não desejam os rótulos que, com o tempo, colaram em outras zonas boêmias, como ser o destino dos engomadinhos ou dos alternativos, dos sertanejos ou dos roqueiros. Para isso, uma das medidas é diversificar o máximo possível as atrações musicais.
Eu vejo pelos aniversários realizados aqui. Em uma das mesas as velinhas do bolo mostram "23", na outra tem um balão de 42
CLÁUDIO NERY
Fuga
Gabriel, do Gravador Pub, se orgulha de ter realizado mais de 500 apresentações desde 2016 que vão do blues ao punk rock. No Agulha, as atrações no palco podem variar de um tecnobrega goiano a um jazzista norueguês na mesma semana, o que fez o bar se tornar referência para descobrir e divulgar novos artistas.
Também colabora para isso a geografia dos bares, amplos o suficiente para abranger diferentes públicos e faixas etárias. Na noite em que a reportagem de GaúchaZH visitou o Fuga, por exemplo, era como se pequenas minifestas ocorressem em volta das mesas, próximo ao palco, nos food trucks da área aberta ou próximo ao bar, onde passava um jogo do Inter em um telão.
– Eu vejo pelos aniversários realizados aqui. Em uma das mesas as velinhas do bolo mostram "23", na outra tem um balão de 42 – conta Cláudio Nery, um dos sócios Fuga.
6. Apostas de grifes e expansão
De certa forma, trocamos uma região em que havia a expectativa de revitalização, próxima ao viaduto da Borges de Medeiros, por outra em que isso já é realidade.
FLAVIA MU
Capincho
A abertura de um estabelecimento em 13 de março foi bastante simbólica da consolidação do 4º Distrito. O renomado chefe de cozinha Marcelo Schambeck fechou o Del Barbieri, no Centro Histórico, e se uniu a outra grife da Capital – Fred Müller, proprietário do Olivos 657 e famoso pelo conhecimento de drinks – para abrir o Capincho. Mistura de bar e restaurante, ele funciona em um casarão de esquina na Rua São Paulo, no São Geraldo. Segundo a jornalista Flavia Mu, sócia da dupla e esposa de Schambeck, foi uma decisão pra lá de "bem pensada e estudada".
– De certa forma, trocamos uma região em que havia a expectativa de revitalização, próxima ao viaduto da Borges de Medeiros, por outra em que isso já é realidade. Claro que isso aliado a outros fatores. Aqui, mudamos um pouco o perfil do restaurante e temos o dobro de lugares – analisa Flavia.
Atração de profissionais de renome é um exemplo do ciclo virtuoso do bairro. Outro é a expansão dos negócios: pioneiro na região, o 4Beer se tornou uma franquia e expandiu para a Zona Sul, na Wenceslau Escobar, onde antes era uma revenda de carros. O Agulha é outro que ganhou um irmão caçula – o Linha, mais dedicado às artes plásticas. Depois de aprender, chegou a hora dos empreendedores do 4º Distrito verem o sucesso replicado.
E um problema...
No balcão do Capincho, Flavia costuma ouvir perguntas como: "Oi, o Fuga é aqui perto, né?". O bar, no caso, fica a apenas um quilômetro do restaurante. Porém, mesmo estando todos esses bares em um raio de, no máximo, dois quilômetros um do outro, é raro quem se arrisque a fazer trajetos a pé pela região durante a noite. A escuridão e as quadras amplas de calçadas depredadas intimidam, e mesmo moradores das cercanias recorrem ao carro.
Melhorar a "caminhabilidade" do bairro depois do pôr do sol é um dos principais desafios da prefeitura – especialmente com o fim do horário de verão, que não ocorrerá neste ano.
Já há iniciativas do poder público nesse sentido. Parte de um projeto que pretende transformar algumas quadras do 4º Distrito em laboratório de ideias para a cidade – chamado Hands On 4D – representantes da prefeitura têm se reunido com empresários da região. Não à toa, as primeiras providências foram trocar a iluminação a vapor por lâmpadas de LED em trechos das ruas São Paulo, São Pedro, Farrapos e Moura de Azevedo, o que aumentou em três vezes a visibilidade nesses locais.