Dois anos atrás, uma horda de verde e amarelo invadiu e depredou as sedes dos três poderes, em Brasília, exigindo intervenção militar e a remoção do recém-empossado Luiz Inácio Lula da Silva da Presidência. O 8 de janeiro de 2023 passou à história como o dia em que pessoas comuns decidiram destruir símbolos da República por não concordarem com o resultado da eleição. A democracia resistiu ao golpismo e também a planos desvendados mais recentemente pela Polícia Federal, como a intenção de militares de sequestrar e matar Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.
Embora tenha se mantido de pé, a democracia está fragilizada e continua correndo riscos, avalia Silvana Krause, professora do programa de pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Para a analista, o momento do país tem similaridades com o vivido às vésperas do golpe civil-militar de 1964.
Em entrevista a Zero Hora, Silvana comenta a manipulação do conceito de liberdade e a punição dos envolvidos em tentativas golpistas como forma de evitar janelas de oportunidades para novas agressões antidemocráticas. Confira os principais trechos:
Dois anos após o 8 de Janeiro, a temperatura baixou no Brasil e a democracia resistiu ou ainda há ameaças?
Até agora, a democracia resistiu. Não significa que a temperatura baixou. Estamos numa situação de impasse no sistema de governo. Oficialmente, temos um sistema presidencialista, mas o Executivo praticamente não consegue governar. Temos um Legislativo que disputa com o Executivo e o Supremo Tribunal Federal (STF). Essa experiência não tivemos nem no pré-64: uma disputa entre três instituições que estão querendo demarcar a sua legitimidade. Não acho que a fervura baixou.
O que mais preocupa é a construção de discursos dúbios daqueles que lideraram o processo que a gente viu há dois anos (8 de janeiro). É um discurso incentivado em nome da liberdade. Uma manipulação do que é a liberdade.
A liberdade é construída a partir de um contrato, a partir das instituições. Liberdade não é fazer o que se quer. Liberdade não é a destruição das instituições.
Estão dizendo que há perseguições e que o Brasil não está num regime democrático. É uma forma bastante perigosa de dar espaço para que atitudes autocráticas e de derrubada das instituições sejam vistas como uma iniciativa de liberdade. A extrema direita quer destruir as instituições. E o eleitor leigo tem muita dificuldade de se situar. Afinal, estamos num regime de exceção?
A deturpação do conceito de liberdade pode servir para legitimar uma ruptura?
Isso foi usado pré-64. O regime de 64 não disse que veio para destruir a democracia. Ele veio porque dizia que a democracia estava ameaçada.
Uma coisa é ter críticas às instituições da democracia, o que é salutar, e outra coisa é querer destruí-las para construir outra coisa que não seja o Estado de direito democrático.
As bandeiras que a gente viu nesses movimentos, no ápice de 2022, não eram de um Estado de direito democrático.
A crise do Brasil não é única. Ela é internacional. A ciência política precisa ser humilde e reconhecer que ainda não sabe o que isso vai dar. Às vezes, tenho a impressão que estamos com vários elementos dos anos 30, no pré-Segunda Guerra Mundial. Você percebe no eleitorado uma grande insegurança. Medo. O medo mobiliza e, quando se tem medo, o que se quer? Segurança. Um braço forte.
Estamos vivendo hoje uma paralisia decisória. Não sabemos o sistema de governo em que estamos. Não estamos num sistema presidencialista de coalizão ou multipartidário. Não estamos no parlamentarismo. São gabinetes que estão governando. É um gabinetarismo Pix. Cada gabinete tem soberania sobre o orçamento que recebe. Um empoderamento dos gabinetes.
A direita radical quer a anistia dos processados e condenados pelo 8 de janeiro. O ex-presidente Jair Bolsonaro apelou por anistia como pacificação. Qual o melhor caminho? Anistiar ou punir com rigor?
A pacificação também exige responsabilização. Se é constatado que houve um crime, tem que ser julgado e punido, de acordo com as normas. Uma pacificação com crimes feitos e não responsabilizados é uma janela de oportunidade para novos crimes, novas tentativas de fragilização, de agressão às instituições da democracia. É um grande desafio. Os militares (envolvidos no 8 de janeiro e em fatos históricos anteriores) nunca foram responsabilizados. Estamos num momento fundamental: pela primeira vez, encarar de frente crimes políticos.
A radicalização no Brasil avançou para atentados de cunho terrorista. O último deles foi de Francisco Wanderley Luiz, que se suicidou na Praça dos Três Poderes e antes explodiu bombas em um carro. O que isso nos diz?
É um sintoma de anomia. A ação dele pode ser totalmente voluntária enquanto indivíduo, mas as motivações são mobilizadas pela extrema direita nas redes sociais e nos discursos. São vários exemplos de instigação ao uso da violência. Muito foi dito que era um sujeito com problemas pessoais e psicológicos. Não é só isso. Sujeitos que têm problemas psicológicos se suicidam de várias maneiras. Mais do que isso, foi canalizado a uma instituição política. É um sujeito que está mal psicologicamente, mas ele canalizou o problema numa violência em frente a uma instituição da democracia.
Na Europa, a crise das instituições parece estar ligada aos efeitos da globalização, à imigração e ao empobrecimento da classe média. Existem semelhanças com o Brasil? Ou temos causas distintas?
Eu diria que são as duas coisas. Lá (Europa) a ideia é a do pertencimento em relação à nação. A extrema direita usa muito a ideia do nacionalismo, da imigração como um elemento que precisa ser resolvido. No Brasil, também temos um problema de pertencimento. Somos um país de imigração, não é um discurso anti-imigração. É um sintoma de não pertencimento porque nos sentimos cada vez mais segmentarizados.
São ativismos de tudo que é tipo. Os eleitos são muito segmentados e não se tem um projeto universal de país. Os sujeitos procuram essa segmentarização para se sentirem pertencentes. O movimento dos neopentecostais deixa isso muito claro.
O desenraizamento do sujeito faz ele procurar algo para pertencer. É o segmento de especulação imobiliária, de LGBTQI+, de cotas afrodescendentes. Todos são legítimos. Mas cadê o projeto? A política, por natureza, é a busca do que há em comum para se construir. Aqui tem emergido muito a questão religiosa. Se continuar a tendência que o IBGE mostra, o Brasil não vai mais ser católico em 2030. Isso é um sintoma de que o eleitor procura um pertencimento. Ele não vê nos partidos e não vê nas instituições. Ele vai nas igrejas. O movimento pentecostal substitui e integra. Não dá para desprezar isso.
A extrema direita, aqui e na Europa, se utiliza muito do medo de não pertencer a algo.
Os protestos de 2013 cumpriram o papel de iniciar o descrédito das instituições democráticas e de organizar a extrema direita no Brasil?
Foi o início do processo. Isso já é consenso na ciência política brasileira. Um movimento extremamente heterogêneo, à esquerda e à direita. Tinha jovens com bandeiras mais à esquerda, criticando a esquerda que estava no poder. E tinha movimentos como o do MBL (Movimento Brasil Livre), que apoiaram a extrema direita logo após. As jornadas de junho anunciaram movimentos autônomos, desorganizados, sem claras lideranças. Era a negação de uma organização hierarquizada.
O que resultaram os movimentos de 2013? Nem conseguiram construir um partido, seja à esquerda ou à direita. Eles não queriam isso. Lideranças do MBL, por exemplo, estão em tudo que é tipo de partido. Das lideranças da esquerda, muitas nem foram a nenhum partido e desapareceram. Eram antissistema, anti a forma tradicional de fazer política. Isso mostrou não dar efeito.
O que vimos em 2014? Uma eleição polarizada. O PSDB querendo discutir, já em 2014, o resultado da eleição. A gente estava vendo que fugiria do controle. Em 2018, a eleição disruptiva.
Eu diria que 2022 é uma resistência, mas que está muito mal compreendida. Com a crise do orçamento, o Executivo não tem mais as ferramentas que tinha do presidencialismo de coalizão. Eu (se referindo ao cidadão) preciso achar um responsável. Como é que eu vou achar um responsável entre 513 deputados? Não vou pesquisar 513 deputados e o que eles estão fazendo. Eu olho o presidente Lula. Ele é o chefe. É um problema para a liderança do Lula.
Esse governo não ganhou por ser do PT. Era uma frente ampla para evitar a consolidação da extrema direita, mas isso não está aparecendo na comunicação do governo. Estamos num momento delicado. Não se sabe aonde vai tudo isso.
A democracia continua bastante fragilizada e enfrenta ameaças reais?
Está fragilizada. Continua sob ameaça e precisa encerrar um ciclo de transição de 1985 com relação ao papel dos militares na política. Esse é um elemento fundamental. Vai conseguir? Não sei.
A democracia está num momento frágil com alguma semelhança ao pré-64, mas com uma diferença: agora são três instituições do Estado Democrático que estão na disputa sobre quais decisões devem ser tomadas para o futuro da democracia.
Uma melhora da economia seria um remédio? Ou isso não resolve mais?
O desemprego diminuiu, a economia pode estar com dados positivos, mas o eleitor não vê isso como um efeito do governo. Essa foi uma perspectiva que o governo (referência às gestões do PT) teve em vários momentos, de que as melhoras econômicas trariam um voto imediato, mas não é necessariamente assim. O eleitor não vê isso como resultado de políticas públicas, mas de iniciativas individuais. A direita usa muito isso. Se eu consegui emprego é porque me profissionalizei em alguma coisa, investi na minha microempresa ou no meu Uber. Sou eu que estou fazendo isso. Cada vez mais é assim.
É possível dizer que a extrema direita tem como objetivo, ainda que não admitido publicamente, a substituição da atual democracia liberal?
É difícil afirmar. Ela tem dificuldade de entender o pluralismo político. A extrema direita aprendeu muito com a esquerda dos anos 80 e 90, mas a esquerda não está aprendendo nada com a extrema direita. Hoje, o que se vê são lideranças empresariais, conectadas com lideranças da extrema direita, com um projeto de hegemonia, um modelo de sociedade e de cidade. A direita não tinha isso muito claro no Brasil. E aprendeu com a esquerda a ter um projeto e uma concepção.
Não é simplesmente ganhar a eleição. A esquerda não quer só ganhar a eleição. Na sua tradição, quer ganhar a eleição para implementar um projeto. A tradição da nossa direita era garantir a manutenção do status quo. Hoje, ela não é só isso. Ela está construindo uma visão do que é uma smart city e do que é uma cidade pós-moderna.
Os empresários, articulados por intelectuais, se sustentam numa argumentação mais bem preparada para a construção de um projeto de país. Isso é uma novidade. Uma extrema direita articulada intelectualmente e conectada com atores econômicos importantes.