Das manifestações pedindo intervenção militar aos ataques do 8 de Janeiro, incluindo a tentativa de golpe envolvendo oficiais do Exército, o Brasil passou nos últimos anos por sucessivos desafios à estabilidade democrática. Para o cientista político Carlos Pereira, a vigilância da sociedade e a robustez das instituições foram o esteio da resistência.
Ao lado do também cientista político Marcus André Melo, Pereira está lançando Por Que a Democracia Brasileira Não Morreu?. Em 248 páginas, eles demonstram como o país resistiu às tentações autoritárias e fez do presidencialismo de coalizão o principal mecanismo de governabilidade.
Carlos Pereira estará em Porto Alegre, no dia 12 de dezembro, participando de um debate sobre a democracia brasileira. Confira a seguir a entrevista concedida a Zero Hora:
Por que a democracia brasileira não morreu?
Não foi por falta de ameaça. A democracia foi muito ameaçada pelo governo Bolsonaro. Desde o início, ele se negou a jogar o jogo do presidencialismo de coalizão. Ele saiu do seu partido, estabeleceu comunicação direta com os eleitores e pressionou o Congresso. Isso é típico de governos populistas, que não fazem mediações institucionais. Além disso, teve confronto com a Suprema Corte e a sociedade. E agora a Polícia Federal acaba de revelar um esquema de golpe, com tentativa de sequestrar e matar o presidente Lula, o vice-presidente Alckmin e o ministro Alexandre Moraes.
Mas como a democracia resistiu?
Graças ao desenho das instituições. Elas geram ineficiência, há uma sensação de que as coisas não funcionam de forma adequada. Mas essas mesmas instituições têm mecanismos inatos de proteção da democracia. Especialmente, o multipartidarismo brasileiro.
A hiperfragmentação gera problemas governativos para o presidente, mas também gera para populistas com ambições antidemocráticas.
Além disso, há organizações de controle independentes e autônomas do Executivo, como o Judiciário, o Ministério Público, tribunais de contas e controladorias, além do próprio federalismo. Tudo isso serve de anteparo institucional a qualquer populista que tenta maximizar uma estratégia não liberal, de ameaça democrática.
O país subestimou os pendores golpistas do bolsonarismo?
Não. A sociedade brasileira é ativa, muito vigilante e as instituições são muito robustas. Sempre houve reações, na imprensa e nas ruas.
Uma ameaça é crível quando os atores políticos têm condições de arcar com os custos de sua implementação.
Eles arquitetaram um plano, inclusive colocaram em execução, mas foram obrigados a abortar. O fato de que vários militares de alta patente estarem diretamente envolvidos nessa tentativa de golpe e não conseguirem implementar é mais um sinal de robustez do nosso desenho institucional.
A democracia não morreu, mas passa mal ou passa bem?
Bom, depende do gosto. As mesmas instituições que sofreram ataques diretos já entregaram políticas públicas de muita qualidade, como o Plano Real, a Lei de Responsabilidade Fiscal, as reformas trabalhista, previdenciária e tributária.
Não é um sistema inoperante. Mas o jogo é moroso, tem excesso de negociações, idas e vindas. Dá a sensação de mal-estar que se confunde com cinismo cívico.
Isso cria espaço para que salvadores da pátria alcancem competitividade eleitoral.
O fortalecimento de autocratas em democracias até então estáveis e a própria presidência de Donald Trump nos Estados Unidos, agora reeleito com chancela popular muito maior, não reflete uma instabilidade que percorre o nosso tempo?
Não resta dúvida. Desde a crise econômica de 2008 a democracia liberal vem sendo testada. A crise gerou desemprego, inflação. A reversão de expectativa trouxe frustração e com ela a eleição de salvadores da pátria no mundo todo. Mas o que a gente destaca no livro é que é preciso observar o outro lado da moeda, como cada uma dessas sociedades e suas instituições reagiram aos seus populistas de plantão. O livro veio como uma resposta ao best-seller Como as Democracias Morrem, que enfatizava esse jogo só pela perspectiva do agressor, como se as sociedades e as instituições fossem vítimas indefesas.
Na realidade, em vários países houve muito mais resistência efetiva do que quebras democráticas. E o Brasil reagiu de forma exemplar aos ataques à sua democracia.
Pode-se dizer que o Brasil tem mecanismos de controle e proteção mais efetivos do que os Estados Unidos, já que aqui há lei de Ficha Limpa e inelegibilidades?
Não resta dúvida. Os Estados Unidos não têm mecanismos de afastar um político por condenação na Justiça. Mesmo criminosos podem disputar a eleição, inclusive da cadeia. O Brasil é muito mais eficaz. Além disso, raramente acontece aqui de o presidente ser eleito com maioria na Câmara e no Senado, como é o caso atual de Trump. Isso só aconteceu em 1986, após o Plano Cruzado. O máximo que o presidente consegue na Câmara é 20% das cadeiras, como ocorreu com Fernando Henrique Cardoso.
O livro contesta a percepção de que o presidencialismo de coalizão é uma excentricidade brasileira e de que está em crise. Como assim?
É porque o presidencialismo de coalizão é dado por uma condição imanente ao desejo dos atores, que é o fato do presidente ser eleito com minoria parlamentar. Como todos os países da América Latina hoje tem presidencialismos multipartidários, faz parte do jogo eleitoral montar coalizão para governar. Mas isso não significa que todos os presidentes governam da mesma forma. Eles decidem quantos partidos vão convidar, quão diferentes esses partidos são entre si, o quanto se vai alocar de poder e recursos em cada partido e se a coalizão vai espelhar o que o Congresso deseja. Cada uma dessas escolhas gera custos maiores ou menores. Tivemos presidentes que souberam entender esse jogo, como o Michel Temer e Fernando Henrique Cardoso, que governaram a custo baixo. Outros, como Bolsonaro, Dilma e Lula enfrentam custo alto.
Qual o erro de Lula?
Lula tem uma coalizão de 16 partidos, extremamente heterogênea. Não compartilha poder e recursos de acordo com o peso político de cada parceiro. O PT tem 22 ministérios, enquanto os principais aliados, que são o PSB, o PSD e União Brasil, têm entre três e dois ministérios cada.
Quem está sendo sub-recompensado vai aproveitar para inflacionar o preço do apoio quando o presidente sinaliza desejo de aprovar algo.
A relação com o Congresso deve ser mais tranquila em 2025, com novos presidentes na Câmara e no Senado e Bolsonaro mais frágil em função do avanço do processo no STF?
Difícil dizer.
As forças de centro são pragmáticas, não são ideológicas. Têm muito mais interesse em garantir sua sobrevivência eleitoral do que em apoiar determinada agenda. E são fundamentais porque impedem que agendas extremas sejam vitoriosas.
Se Lula conseguir fazer uma reforma ministerial que acomode as forças eleitas em 2024, levando em consideração a nova correlação de forças, talvez a relação melhore.
A reforma política diminuiu o número de partidos, mas não os dotou de espinha ideológica. Como tornar os partidos mais orgânicos?
O presidencialismo multipartidário não é o reino dos partidos fortes. A conexão com o eleitor se dá de forma individual. Os partidos só são fortes no Congresso, porque os líderes têm poder de alocar recursos políticos e financeiros que vão impactar na sobrevivência individual de cada parlamentar. Se esses parlamentares não se comportarem partidariamente, terão menos chance de reeleição. Então, esse é o mecanismo claro de sobrevivência política no Brasil.
Nos últimos anos, em toda crise política se aventou a adoção no Brasil de um sistema misto, o semipresidencialismo. Daria certo?
Acho pouco viável. O presidencialismo multipartidário está no DNA do nosso arcabouço institucional. A história tem inúmeras tentativas de alterar esse arcabouço, todas malogradas. A chance de que reformas dessa natureza se viabilizem são baixas.