A conquista do Globo de Ouro pela atriz Fernanda Torres potencializa a visibilidade do filme Ainda Estou Aqui, do diretor Walter Salles, que aborda o célebre episódio da história recente do país em que o ex-deputado Rubens Paiva é sequestrado por integrantes do regime militar de 1964 e nunca mais volta para casa. O prêmio internacional não apenas faz justiça ao talento da protagonista, à valentia da família Paiva e à dramaturgia nacional, mas também ajuda a refrescar a memória coletiva dos brasileiros sobre os malefícios da ditadura na antevéspera do segundo aniversário da tentativa de golpe do 8 de janeiro.
O reconhecimento é oportuno num momento em que muitos brasileiros, por ignorância ou radicalismo político, continuam flertando com o autoritarismo sob a falsa premissa de que “naquela época era melhor”. Não era. O retrato de uma família de classe média destroçada pelo arbítrio, revelado sem retoques na produção do Globoplay, mostra o quanto é degradante para uma sociedade a supressão da democracia e das liberdades. Os regimes democráticos também têm os seus problemas, evidentemente, mas possibilitam aos cidadãos oportunidades para corrigi-los por meio de participação nas decisões, escolhas de governantes, fiscalização ativa sobre eles e, especialmente, pela liberdade de se expressar e se manifestar.
O prêmio internacional não apenas faz justiça ao talento da protagonista, à valentia da família Paiva e à dramaturgia nacional, mas também ajuda a refrescar a memória coletiva dos brasileiros sobre os malefícios da ditadura
Defender o arbítrio, portanto, não é uma inocente manifestação da liberdade de expressão. É, na verdade, um crime passível de responsabilização penal, principalmente quando o equivocado posicionamento deriva para ações violentas como a invasão às sedes dos três poderes da República ocorrida em janeiro de 2023. O regime militar que vigorou no país entre 1964 e 1985 também foi respaldado pela boa fé de brasileiros que temiam a implantação de uma ditadura comunista no Brasil. Acabou se transformando naquilo que pretendia combater: repressão política, torturas, prisões e mortes de opositores, supressão de direitos constitucionais, censura prévia e mais de 400 mortos e desaparecidos.
A adaptação cinematográfica do livro escrito por Marcelo Rubens Paiva mostra de forma insofismável como essa barbárie autoritária atinge o âmbito familiar. Em compensação, o reconhecimento a Fernanda Torres — que se estende aos demais protagonistas do filme, entre os quais sua mãe, Fernanda Montenegro, e o ator Selton Mello, que interpreta o parlamentar sequestrado — é também a comprovação de que nossos artistas, livres de censuras e perseguições, representam melhor a brasilidade do que os autodenominados salvadores da pátria.
O Brasil não precisa de tutores, sejam eles de esquerda ou de direita. Precisa, isto sim, de governantes responsáveis, honestos e comprometidos com a democracia, assim como de instituições republicanas que cumpram efetivamente os preceitos constitucionais. Há muito o que aperfeiçoar na democracia brasileira, isso é inquestionável. Mas, sem ela, sempre será pior — como mostram as cenas dolorosas do filme premiado e as imagens ainda recentes do vandalismo de dois anos atrás na Praça dos Três Poderes.