Em votação realizada no plenário da Câmara dos Deputados na noite desta terça-feira (30), foi aprovado por 283 votos a 155 o novo marco temporal, que prevê que somente poderão ser demarcados como reservas indígenas os territórios efetivamente ocupados por povos originários em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição. Houve uma abstenção. Deputados rejeitaram os dois destaques apresentados. Concluída esta etapa, o texto vai ao Senado.
Com a aprovação do texto, as terras reivindicadas, ocupadas ou em conflito após 5 de outubro de 1988 ficam proibidas de ser entregues a populações indígenas. Na prática, a tese permite que indígenas sejam expulsos de terras que ocupam, caso não se comprove que estavam lá antes dessa data, e não autoriza que os povos que já foram expulsos ou forçados a saírem de seus locais de origem voltem para as terras (leia mais sobre o que prevê o texto ao fim da reportagem).
Conforme o projeto aprovado, são consideradas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aquelas que, na ocasião da promulgação da Constituição, eram simultaneamente:
- por eles habitadas em caráter permanente;
- utilizadas para suas atividades produtivas;
- imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;
- necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sofreu a primeira derrota na Câmara no início da noite desta terça, quando foi rejeitado o requerimento para retirada de pauta do projeto de lei 490/2007, o chamado PL do Marco Temporal. Por 257 votos a 123, o plenário negou o pedido de retirada. O governo havia orientado a base a votar a favor da retirada, mas conseguiu menos da metade dos votos contra a remoção do projeto.
O texto era uma demanda dos ruralistas e foi votado sob protesto de parlamentares de esquerda e movimentos indigenistas. Grupos de indígenas fizeram atos em Brasília em outros Estados, incluindo o Rio Grande do Sul, durante a terça-feira. Governistas já falam em judicializar a votação em que saíram derrotados.
Se promulgada, a lei vai paralisar todos os processos de demarcação em andamento. Há pelo menos 303 em tramitação. Hoje, o Brasil tem 421 terras indígenas homologadas. Elas somam 106 milhões de hectares e têm cerca de 466 mil indígenas.
Recado ao Supremo
Com a aprovação, o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), e a cúpula da Casa pretendiam passar um recado ao Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte retomará um julgamento sobre demarcação de terras indígenas na próxima terça-feira, 6.
— Tenho certeza que a sinalização da Câmara, aprovando esse projeto de lei, fará com que Supremo reflita e pelo menos paralise essa querela jurídica que está marcada para se julgada em junho — afirmou Arthur Maia (União-BA), autor do texto aprovado. — Estamos mandando a nossa mensagem ao Supremo, a de poder harmônico, mas altivo. Não podemos aceitar que outros Poderes invadam nossa prerrogativa.
Os deputados favoráveis à proposta argumentam que ela foi construída à luz do julgamento do Supremo sobre a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, em 2009. Na ocasião, o marco temporal foi considerado. Para eles, as condicionantes daquele julgamento devem ser tratados como paradigma.
Os contrários ao texto, porém, ressaltam que o debate não foi esgotado pelo Supremo e que há diversos precedentes que afirmam que o marco temporal e as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol são aplicáveis somente para a demarcação daquela terra indígena específica.
Discussão acalorada
Para a deputada governista Juliana Cardoso (PT-SP), o projeto é um retrocesso:
— É o projeto da morte, da perversidade do lucro acima da vida humana. Esse "PL da morte" quer acabar de novo com direito adquirido e promover a injustiça. É um crime contra os povos indígenas.
O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), afirmou que tentou articular o adiamento da votação, mas foi superado.
— Respeitando aqueles que são d governo e votam a favor, mas o governo não tem como encaminhar o voto "não" a essa matéria porque compreende que é um erro votar esse projeto agora — disse, durante a discussão.
Segundo estimativas da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), principal fiadora da proposta, as terras indígenas são cerca de 14% do território nacional. Se todos os processos de demarcação em curso fossem encerrados, seriam 30%. A produção agrícola abrange 24% do território brasileiro.
Apesar de a chamada tese do "marco temporal" ser o principal item do PL 490/2007, ele altera políticas indigenistas que vigoram há décadas. Uma delas reacende a possibilidade de contato com povos que vivem em isolamento voluntário, prática que marcou a relação da ditadura militar com indígenas.
O texto cria a possibilidade de contato com indígenas que vivem em isolamento voluntário para ações de "utilidade pública", inclusive por meio de "entidades particulares, nacionais ou internacionais", contratadas pelo Estado. O projeto não especifica quais seriam as atividades de utilidade pública admitidas.
Por se tratar de expressão genérica, parlamentares e movimentos contrários ao projeto temem que o dispositivo permita o contato forçado até para missões religiosas. O relator, deputado Arthur Maia, afirmou que o texto atrela o contato ao controle da Fundação Nacional do Índio (Funai) e que seu objetivo foi o de apenas evitar que organizações não governamentais estrangeiras acessem povos isolados no Brasil sem a fiscalização do governo.
Veja pontos do texto sobre o novo marco temporal:
Embora a chamada tese do marco temporal seja o principal item do PL 490/2007, o texto também:
- Flexibiliza o uso exclusivo de terras pelas comunidades e permite à União retomar áreas reservadas em caso de alterações de traços culturais da comunidade;
- Proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas;
- Permite contrato de cooperação entre índios e não índios para atividades econômicas;
- Possibilita contato com povos isolados “para intermediar ação estatal de utilidade pública”;
- Determina participação de prefeitos e governadores na demarcação;
- Permite que os proprietários de terras dentro da área demarcada contestem a criação das reservas;
- Determina à União notificar, com duas semanas de antecedência, a visita de peritos às propriedades atingidas pela demarcação;
- Flexibiliza exploração mineral em reservas indígenas;
- Determina indenização aos proprietários pelas terras desapropriadas e pelas benfeitorias existentes.