Se você não é indígena nem agricultor, pode achar que o debate sobre "marco temporal" é uma abstração e nada tem a ver com isso. Engano. O que está em jogo é a instabilidade no campo, que pode ampliar a tensão entre agricultores e indígenas e impactar na produção de alimentos. O questionamento parece simples: qual é a data limite para a demarcação de terras indígenas? O projeto que está para ser votado na Câmara estabelece o dia da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, como limite para que a terra estivesse ocupada por indígenas para garantir o direito à demarcação.
Como o assunto está sendo discutido no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2009, sem julgamento, a insegurança em relação ao futuro levou tensão ao campo no Rio Grande do Sul, sobretudo na Região Norte. O julgamento, suspenso em 2021, deve ser retomado no dia 7 de junho. Famílias de pequenos agricultores que moram a vida inteira em determinado local e tiram o sustento da terra temem ser afastadas para dar lugar a comunidades indígenas porque ali teriam vivido seus antepassados.
Essa tensão tira a paz das comunidades e pode impactar na produção de alimentos. Em geral, no caso do Rio Grande do Sul, são regiões de minifúndios, com alta produtividade pelas famílias.
Em tese, toda a terra brasileira um dia foi dos povos originários. Sem o marco temporal, a qualquer momento os indígenas podem reivindicar a ocupação de um território.
Se considerar o Brasil inteiro, as terras demarcadas são suficientes para abrigar os povos originários remanescentes, mas os líderes alegam que o marco temporal ameaça a sobrevivência de muitas comunidades indígenas e de florestas. Dizem que se prevalecer a tese de que a data-limite para a ocupação é 5 de outubro de 1988, haverá um caos jurídico, porque estará aberto o caminho para a revisão de reservas demarcadas após essa data. Há controvérsias em relação à possibilidade de revisão de áreas demarcadas nos últimos anos.
O ministro Edson Fachin, relator da matéria, votou contra o marco temporal. Justificou que a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que os indígenas tradicionalmente ocupam "independe da existência de um marco temporal e da configuração de renitente esbulho". O ministro também afirmou que a Constituição reconhece que o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário, ou seja, anterior à própria formação do Estado.
Tudo começou em 2009, com a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, quando a Advocacia-Geral da União usou como base a data da promulgação da Constituição. Em 2003, foi criada a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, mas uma parte dela, ocupada pelos indígenas Xokleng e disputada por agricultores, está sendo requerida pelo governo de Santa Catarina no Supremo Tribunal Federal (STF). O argumento é que essa área não estava ocupada em 5 de outubro de 1988.
O que os ministros decidirem sobre o caso de Santa Catarina firmará o entendimento do STF para a validade ou não do marco temporal em todo o país, afetando mais de 80 casos semelhantes e mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas que estão pendentes.