Pauta simbólica para o governo Luiz Inácio Lula da Silva, a demarcação de reservas indígenas está prestes a ser limitada pela Câmara dos Deputados. A medida tem amplas chances de aprovação já nesta terça-feira (30) e reforça a ofensiva do Congresso sobre o Planalto em um momento de desacerto na articulação política palaciana. Em protesto, cerca de 300 indígenas bloquearam na segunda-feira (19) a BR-386, no norte do Estado.
Apoiado pela bancada ruralista, o projeto de lei (PL) estabelece o chamado marco temporal das demarcações. Pelo texto que será submetido ao plenário, somente poderão ser demarcados como reservas indígenas os territórios efetivamente ocupados por povos originários em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição. Terras reivindicadas, ocupadas ou em conflito após essa data ficam proibidas de ser entregues a populações indígenas.
Embora a fixação do marco temporal seja o ponto mais destacado, a matéria tramita em conjunto a outros 14 projetos que legislam sobre temas similares. Desta forma, o relator do PL, deputado Arthur Oliveira Maia (UB-BA) criou ainda mais polêmica. No texto apresentado previamente aos parlamentares, Maia amplia a exploração mineral das reservas, obriga a participação de governadores e prefeitos na demarcação e concede aos proprietários das terras o direito ao contraditório, entre outras mudanças nas regras atuais.
Apresentado inicialmente em 2007 pelo então deputado Homero Pereira (PSD), o projeto original tramitava a passos lentos — o autor morreu em 2013 com o texto praticamente parado havia quatro anos. A discussão foi retomada em 2021, com aprovação de parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, mas de novo não houve avanços.
Somente há 15 dias o assunto voltou à tona, numa ação da oposição articulada com o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). Na ocasião, o deputado Zé Trovão (PL-SC) apresentou à Mesa Diretora requerimento pedindo regime de urgência na aprovação do PL. Levada à votação na última quarta-feira (24), a urgência foi aprovada com 324 votos a favor e 131 contra.
O placar elástico reflete a desorganização da base governista e amplia as desconfianças dos partidos de esquerda em relação aos compromissos ambientais do presidente Lula. No mesmo dia em que a urgência do PL do marco temporal foi aprovada, o Planalto viu o Ministério do Meio Ambiente ser mutilado na votação, em comissão especial, da medida provisória que define estrutura e atribuições do primeiro escalão do governo.
Na ocasião, o texto aprovado ainda retirou do Ministério dos Povos Indígenas o poder de reconhecer e demarcar reservas, repassando a competência para a pasta da Justiça e Segurança Pública. Cobrado pelas duas derrotas consecutivas num tema tão caro à esquerda e justamente no primeiro governo que criou um ministério voltado aos povos originários, os responsáveis pela articulação política alegaram concentração de esforços na votação do arcabouço fiscal, aprovado um dia antes.
Agora, o Planalto corre para reagrupar a base e tentar conter dissidências em partidos que mantém indicados no governo, mesmo sem assegurar fidelidade, como o Republicanos, o União Brasil, o MDB e o PSD. O problema é que a adoção do marco temporal uniu os interesses da bancada ruralista e do centrão. Enquanto os deputados ligados ao agronegócio tentam conter o ímpeto do governo em demarcar novas reservas, o centrão — sob comando de Arthur Lira — aproveita para mostrar descontentamento com a lentidão no pagamento de emendas parlamentares.
A pressa na votação do marco temporal também leva em consideração o julgamento do tema no Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte retoma na próxima semana a análise de um recurso da Funai contra a reintegração de posse de uma área ocupada pela etnia Xokleng em Santa Catarina. O caso foi classificado como de repercussão geral, o que faz da decisão referência para todos julgamentos futuros sobre demarcações. Atualmente, as reservas ocupam 14% do território nacional. Novas áreas reivindicadas correspondem a mais 13,7%.
A ideia dos ruralistas é usar a provável aprovação do projeto como argumento de que o processo no STF terá perdido objeto. Todavia, após passar pela Câmara, o texto ainda precisa de chancela do Senado e vai à sanção presidencial, podendo ser vetado pelo presidente Lula.
É para evitar uma decisão final da Corte antes da tramitação da matéria no Congresso que há uma expectativa de pedido de vista por algum ministro, o que adiaria o julgamento para data incerta. De qualquer forma, a discussão está longe do fim, já que o PSOL adianta que, caso a Câmara aprove o marco temporal, pretende ingressar com uma ação de inconstitucionalidade da iniciativa no próprio STF.
O que diz o projeto de lei do marco temporal
A essência do projeto é restringir a demarcação de terras indígenas aos territórios efetivamente ocupados por povos originários em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição. Veja outras mudanças previstas no texto:
- Proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas
- Determina participação de prefeitos e governadores na demarcação
- Permite que os proprietários de terras dentro da área demarcada contestem a criação das reservas
- Determina à União notificar, com duas semanas de antecedência, a visita de peritos às propriedades atingidas pela demarcação
- Flexibiliza exploração mineral em reservas indígenas
- Determina indenização aos proprietários pelas terras desapropriadas e pelas benfeitorias existentes