Enquanto conversa com GZH, Carlos Ayres Britto caminha pelo jardim de casa, em Brasília, citando de cor trechos inteiros da Constituição e sua exata disposição numérica em artigos, parágrafos e incisos. Aos 79 anos, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal é não só um dos juristas mais respeitados do país, mas também um dos mais ferrenhos guardiões da Carta Magna. Ao longo dos 74 minutos de entrevista, ele citou 64 vezes a palavra Constituição – limitada a 21 repetições no texto a seguir –, sempre salientando seu princípio democrático e a imposição de ter no STF a voz derradeira nas controvérsias jurídicas. Autor de seis livros de poesia e cinco de Direito, Ayres Britto torna o debate de questões urgentes uma prosa fácil e escorreita, sem deixar de ser contundente. Para o ex-ministro, ataques ao Supremo e à democracia, ameaças de intervenção militar, abusos do Congresso ou do próprio STF são facilmente remediados. Basta ter respeito ao livro das leis.
Há 10 anos, o senhor presidia o STF às vésperas do julgamento do mensalão e, para sintetizar as pressões sobre a Corte, disse que “o Supremo está sangrando”. Como está o Supremo hoje?
O Supremo está se assumindo como a Constituição quer, deseja e até impõe: a última instância decisória do Estado. A última instância decisória é o Poder Judiciário, e no âmbito do Judiciário, o Supremo. Basta lembrar que temos 91 tribunais judiciários, quatro superiores, porém um único Supremo Tribunal Federal. Ele é a chave de abóbada do sistema, aquela pedra-chave que completa a arquitetura jurídica brasileira. De maneira que ele, Supremo, internalizou corretamente essa vontade normativa da própria Constituição e está se assumindo assim.
Mas nunca foi tão questionado, tão colocado à prova. O senhor vê uma degradação do respeito ao tribunal?
Nunca vi o Supremo tão questionado e até ofendido, ameaçado. Porém, no âmbito de uma democracia para valer, ela mesma, a democracia, não consegue se blindar de todo contra ameaças de sua própria abolição. Recentemente tivemos a condenação do deputado federal Daniel Silveira (PL-RJ) pelo crime de tentar abolir o regime democrático usando de violência e grave ameaça. Foi o Supremo que teve a coragem e o discernimento para bem aplicar a Constituição. A liberdade de expressão é plena, mas nos marcos da democracia. A imunidade parlamentar é plena, mas nos marcos da democracia. Se um parlamentar, a pretexto de fazer uso de sua imunidade, e um indivíduo, a pretexto de fazer uso de sua liberdade de expressão, cortarem mortalmente os pulsos da democracia, a democracia vai morrer por assassinato e a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar morrerão por suicídio.
Defensores da democracia também questionaram essa decisão, alegando que a pena de nove anos de prisão teria sido pesada.
O Supremo vem interpretando e aplicando a Constituição. É uma Constituição comprometida, antes de tudo, com a afirmação de seu princípio maior, que é a democracia. Então a democracia tem no STF seu maior garantidor, a sua última palavra, a última voz imperativa. Quem decide por último não são as Forças Armadas, não é o Poder Executivo, não é sequer o Parlamento. É o Poder Judiciário, e, no âmbito do Judiciário, o STF. Basta lembrar que não existe o Supremo Congresso Nacional nem o Supremo Presidente da República.
No dia seguinte à condenação de Silveira, o presidente concedeu um indulto, anulando os efeitos. Como o senhor viu esse gesto?
O indulto foi inconstitucional. Vale dizer, a democracia não pode dispor – e não dispôs na Constituição – sobre seus próprios funerais. Ela não está prometida ao túmulo, não pode se permitir o haraquiri, o suicídio. Se fosse possível indultar quem atenta contra a democracia, seria fácil o presidente da República chegar para qualquer um dos seus apoiadores e dizer: “Você pode atentar contra a democracia que eu vou indultar você”. Percebeu o absurdo? Um eminente jurista sul-rio-grandense, Carlos Maximiliano, dizia que não se pode dar ao Direito uma interpretação que desemboque no absurdo, no disparate, no nonsense. E pode haver nonsense, disparate, absurdo maior do que atentar contra a democracia impunemente? Então, se o presidente fizer uso do indulto para exculpar quem atentou contra a democracia, ele, presidente, por interposta pessoa, está atentando contra a democracia. Nesses casos, o indulto é pré-excluído, não pode ser manejado. Não se trata de abusar do indulto, de desvio, de uso descomedido, é pior. É descabimento.
O senhor diz que é inconstitucional, mas foi aceito. O deputado está livre e no exercício do mandato.
Isso vai voltar para o Supremo no seu devido tempo.
Se fosse possível indultar quem atenta contra a democracia, seria fácil o presidente da República chegar para qualquer um dos seus apoiadores e dizer: 'Você pode atentar contra a democracia que eu vou indultar você'. Percebeu o absurdo?
Marcos constitucionais não vem sendo afrouxados? Os limites da lei não estão cada vez mais alargados? Agora mesmo o Congresso aprovou uma PEC que distribui benesses às vésperas da eleição.
Nesse caso, a legislação eleitoral tem de ser interpretada tanto logicamente como sistemicamente. Mas quem explica isso numa frase genial é Bertolt Brecht, que nos anos 1950 foi dramaturgo, poeta e filósofo. Ele disse: “Há quem prepare cuidadosamente seu próximo erro”. Ele foi mais incisivo do que Shakespeare, em Hamlet, quando ali está dito que “há método demais nessa loucura”. Brecht foi além, e no caso brasileiro, há quem prepare cuidadosamente seu próximo erro. Mas qual é o erro? O de atentar contra a Constituição e as leis. Percebeu? Um atentado após o outro, após o outro, para naturalizar os atentados.
Não falta uma resposta das instituições?
A resposta quem tem dado é o Supremo. Ele é o desaguadouro. Em última análise, essa emenda é compra de votos disfarçada. Ela molha o bolso do eleitor e fere cláusula pétrea da Constituição, portanto, não pode sequer ser objeto de deliberação. A Constituição diz que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir voto direto, secreto, universal e periódico”. Voto secreto é voto dado livremente, conscientemente, sem pressão ou coação, sem compra ostensiva ou disfarçada. Em época de eleição, você chegar para um eleitorado pobre e despejar no bolso dele 30 moedas, para lembrar a imagem bíblica, é atentar contra a liberdade do voto. Ele não pode ser livre e consciente se às vésperas da eleição o eleitor mais sacrificado economicamente é socorrido por um modo assim tão surpreendente quanto expressivo. Tem mais. A proposta em questão beneficia caminhoneiros e taxistas. A Constituição não concede a eles tratamento diferenciado, não abre exceção ao princípio da igualdade em matéria de profissões privadas. Porque se você passa a remunerar caminhoneiros e taxistas, ainda que por três ou quatro meses, você está remunerando sem prestação de serviço público, sem que essa pessoa seja exercentes de cargo, empregou ou função pública. E isso é proibido.
Hoje os ministros evitam aparições públicas e andam com segurança reforçada. Como se criou esse caldo de ressentimento com a Justiça?
É uma rebeldia à ordem constitucional e à democracia. A ordem constitucional está, como olho e pálpebra, associada à democracia. E essa ordem constitucional democrática fez do Supremo Tribunal Federal a instância decisória derradeira. Quem não aceita isso está criando esse clima de tensionamento, de estresse coletivo nas alturas, para tomar partido eleitoral.
Bertold Brecht explica em uma frase genial: ‘Há quem prepare cuidadosamente seu próximo erro’. Mas qual é o erro? O de atentar contra a Constituição e as leis. Um atentado após o outro, após o outro, para naturalizar os atentados.
O senhor acha que há responsabilidade do Supremo, os ministros colaboraram para criar esse ambiente de tensão?
Os ministros têm sido alvo de críticas majoritariamente infundadas. Uma ou outra até pode proceder. Mas no geral são infundadas porque feitas numa ambiência tecnicamente equivocada, talvez até industrialmente equivocada. É a confusão que se fez no Brasil entre ativismo judicial e pró-atividade interpretativa. O Supremo tem sido acusado de ativismo judicial. Isso é quando o Judiciário decide acrescentando à lei angulações normativas que não estavam nem nas leis nem na Constituição. Acontece que, no caso do Supremo, a característica central tem sido a pró-atividade interpretativa, e não o ativismo. Qual a diferença? Pela pró-atividade, o Judiciário tem o dever de não ficar aquém do potencial normativo, deve exaurir o conteúdo normativo. Quando o Supremo desentranha da Constituição e das leis angulações normativas de desagrado de certos grupos, passa a ser acusado de usurpador de função legislativa. Não é o caso.
Boa parte dessas acusações de ativismo não deriva do excesso de liminares e decisões monocráticas?
É nesse ponto que o Supremo tem merecido críticas procedentes. Sobretudo onde a matéria atina com o princípio da separação dos poderes. Ali o Supremo deve fugir das decisões individuais. Há uma tensão normal entre os poderes, e o Supremo tem decidido com frequência monocraticamente, quando devia decidir colegiadamente, prestando uma deferência prudencial aos outros poderes. Não que a decisão monocrática não tenha vigor jurídico. Tem. Mas, como se trata de matérias que estão no limite das competências, é prudente que as decisões sejam colegiadas, de preferência pelo pleno, onde há 11 vocações jurídicas, 11 experiências, os debates travados com todos os membros. Agora, não é necessário que a decisão seja unânime. Uma decisão majoritária é tão imperativa quanto uma unânime.
Há no Congresso uma tentativa de permitir aos parlamentares revisar decisões do Supremo que não sejam unânimes.
Isso é inconstitucional. A vida do Direito não é um jogo de pingue-pongue. Não volta. Começa no Legislativo, passa pelo Executivo, termina no Judiciário. É uma dinâmica lógica e cronológica, todo povo civilizado e de democracia consolidada faz isso. Quem quiser que recorra das decisões judiciais. Mas, uma vez transitado em julgado, elas são imperativas. O Judiciário é o ponto terminal das coisas, o ponto de encerramento das controvérsias. Se não houvesse Judiciário, os dissensos sociais se perderiam no infinito, desvelariam para o interminável, e há de haver um ponto de chegada em tudo. Esse ponto é o Judiciário. No âmbito do Judiciário, é o Supremo.
O STF é uma corte que julga questões constitucionais, exclusivamente. Por que se tornou tão presente no cotidiano das pessoas?
Esse clima de dissenso acirrado, muitas vezes industriado, planejado, tem abarrotado as pautas de julgamento do Supremo. Os índices de litígio cresceram muito no Brasil porque há uma perigosa indistinção entre pluralismo e divisionismo, feita para sectarizar o país, antagonizá-lo permanentemente. É um país fracionado, dividido, com gosto de sangue na boca, fígado azedo, derramamento de bílis. Isso não favorece a produção de neurônios. Pelo contrário.
A transmissão televisiva das sessões colaborou para essa onipresença no debate público?
Decidir publicamente é uma exigência da democracia. Norberto Bobbio já dizia sabiamente que um dos elementos conceituais da democracia é a publicidade. Ele afirma: “Democracia é o governo de poder público em público”. Ou seja, as instâncias estatais têm de decidir publicamente, com toda a visibilidade. O melhor desinfetante nas coisas do poder é a luz do sol, disse Louis Brandeis, ministro da Suprema Corte norte-americana. A Constituição consagrou nas coisas do Estado o princípio da publicidade, excomungou a cultura do bastidor, da coxia, do camarim, e canonizou a cultura do sol a pino, do desnudamento do poder. As coisas do poder são, por definição, públicas.
Mas temos um orçamento secreto. Não é uma contradição?
Uma das maiores heresias dos últimos tempos em todo o mundo é a figura do orçamento secreto. Se o orçamento é público, como pode ser secreto? E mais, está lá na cabeça do artigo 85 da Constituição: “São crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição, e especialmente contra” – depois vem o inciso sexto – “a lei orçamentária”. As leis mais importantes do país, porque se violadas acarretam crime de responsabilidade, são a Constituição e a lei orçamentária. E como pode haver uma lei orçamentária secreta? Olhe, que fase da vida. Mas ninguém vai jogar a toalha.
Não há contradição também em sucessivas decisões do Supremo? Na prisão em segunda instância não se mudou uma vírgula no texto constitucional, mas o STF adotou três entendimentos distintos em 10 anos: contra a prisão em 2009, a favor em 2016 e contra de novo em 2019. Isso não abala a credibilidade da Corte?
Concordo. Quando esse entendimento é alterado até radicalmente em curto espaço de tempo, é ruim para a credibilidade da instituição e a estabilidade das coisas, inclusive para o prestigio social do Supremo. A última decisão, a meu juízo, é a correta. A Constituição diz que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Isso é cláusula pétrea. Faz parte dos direitos e garantias individuais. A Constituição não consagra o princípio da inocência, vai além. Às vezes se vê juristas e a imprensa falando de princípio da inocência. Isso não existe. Para proteger ainda mais e melhor as pessoas, a Constituição consagrou o princípio da não culpabilidade. Ou seja, mesmo que eu não seja inocente coisa nenhuma no plano dos fatos, se a minha culpa não for processualmente formada, ainda assim serei absolvido por falta de provas. Então não pode ser condenado. Prisão até pode, desde que estiverem presentes os pressupostos da prisão cautelar, aí sim. Mas, sem os pressupostos, aguarda-se em liberdade os recursos. Então o Supremo errou quando relativizou a absolutez desse direito.
As Forças Armadas não exercem poder moderador. Isso é erronia técnica. Numa república federativa presidencialista, não há poder moderador. Há um equilíbrio entre os poderes estatais. E as Forças Armadas não são sequer um poder. São um órgão da União.
O país vive também uma tensão em relação ao papel das Forças Armadas. Elas são um poder moderador, como preconizam?
As Forças Armadas não exercem poder moderador. Isso é erronia técnica. Numa república federativa presidencialista, não há poder moderador. Há um equilíbrio entre os poderes estatais. E as Forças Armadas não são sequer um poder. São um órgão da União.
Como o senhor vê as ameaças de não haver eleição, de não aceitar resultado, fazer auditoria?
Isso é um disparate constitucional. Não cabe às Forças Armadas dizer que não aceita resultado da eleição. No artigo 142 da Constituição, elas foram regradas no âmbito de um título cujo nome explica tudo, inclusive suas funções: da defesa do Estado e das instituições democráticas. Ou seja, a Constituição só se dispôs a armar um organismo estatal para a defesa da democracia, e não para abolir, varrer do mapa a democracia.
O senhor acredita num levante?
De jeito nenhum. As Forças Armadas são organizadas e empregadas sob os princípios da hierarquia e da disciplina. Destinam-se à defesa da pátria, no sentido geográfico do termo, para defenderem por terra, ar e mar a incolumidade do país. As outras duas funções são a garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem. A lei é a Constituição, e a ordem é a democracia. É inconcebível um golpe de Estado. Um ataque das Forças Armadas à democracia seria uma traição.
O que esperar da gestão Rosa Weber na presidência do Supremo?
Tudo de bom. Ela é uma jurista por vocação, encarna exemplarmente a qualidade mais característica de um membro do Judiciário, que é a equidistância, a imparcialidade. E ela é tão estudiosa quanto corajosa ao assumir os entendimentos técnicos que, ao juízo dela, devam ser proferidos. É experiente, passou por um tribunal superior antes de chegar ao Supremo, e tem dado mostras de ser uma magistrada exemplar. Sabe fazer um casamento perfeito entre poder e pudor, postura e compostura.