Francisco Bosco, 46 anos, é o que se pode chamar de um intelectual versátil. Intelectual por conta da formação e do estofo que demonstra ao refletir sobre os temas mais complexos de seu tempo. Versátil porque atravessa bolhas à esquerda e à direita e a própria redoma que por vezes isola o pensamento e a pesquisa acadêmica. Filho do músico João Bosco, é mestre e doutor em Teoria Literária, dirigiu a Rádio Batuta (do Instituto Moreira Salles), foi colunista da Cult e de O Globo e presidiu a Fundação Nacional das Artes (Funarte). Tornou-se mais conhecido do grande público ao assumir uma das cadeiras do Papo de Segunda, programa de debates do canal GNT. Seu novo livro, O Diálogo Possível, resume uma bandeira que levantou nos últimos anos: a luta pela reconstrução do combalido debate público no Brasil. Foi sobre isso que ele falou recentemente no Fórum da Liberdade, em Porto Alegre, e é sobre isso que responde as questões a seguir.
O que fez a sociedade brasileira chegar ao ponto em que é preciso haver um apelo pela existência de diálogo?
Foram processos justapostos, de temporalidades diferentes. O primeiro, claro, é de longo prazo: o Brasil é um país que fez uma transição sem ruptura do seu passado colonial para a República e a democracia. Isso perpetuou o trauma da escravidão na subalternização das pessoas negras e manteve o país como muito hierárquico e desigual. Mais recentemente, já durante a redemocratização, apesar das conquistas institucionais, econômicas e sociais, houve práticas que mistificaram o debate público e práticas que tornaram a democracia liberal mais liberal do que democrática. Refiro-me, respectivamente, às representações distorcidas que os principais partidos, PSDB e PT, fizeram um do outro, e que contribuíram para sua derrota mais tarde; e ao presidencialismo de coalizão exercido de forma fechada, corporativa, eleitoral, sistematicamente deixando de lado o interesse de vastos grupos sociais. E, numa temporalidade ainda mais recente, a partir de 2013 deu-se início a um processo quase generalizado de tentar resolver os problemas do país por meio de atalhos, de uma justiça sem direito, de uma submissão dos meios aos fins. Com isso, perdemos as referências institucionais, ideológicas e morais mais estáveis, capazes de produzir consensos, ou ao menos de mediar conflitos. A sociedade se esgarçou até o ponto em que nos encontramos hoje, em que não há qualquer solo comum entre as perspectivas em jogo.
Já na Apresentação O Diálogo Possível contém uma síntese do que seria uma maneira de aliviar o clima bélico do debate público atual e torná-lo mais producente: com “desalienação” e “desidentificação” para reconhecer como legítima a posição do outro. O quão distantes estamos disso?
Muito. Chamo de “desalienação” e “desidentificação” a tentativa de desativar as lógicas de grupo, que hoje dão o tom do debate público no Brasil. Lógicas de grupo são um fenômeno bem estudado pela psicanálise. As pessoas obtêm prazer com a confirmação de suas ideias e de suas identidades – ideológicas, partidárias, morais, estéticas etc. – e assim tendem a recusar enfrentar a realidade caso ela possa colocar em xeque essas ideias. O narcisismo do pertencimento tende a sacrificar o diagnóstico mais preciso da realidade, quando esse se mostra complexo e exige criticar as perspectivas do próprio grupo ou reconhecer a pertinência dos argumentos e das evidências apresentadas pelos adversários. Isso não apenas falsifica o debate como deteriora a confiança em suas próprias condições.
Qual foi o papel dos protestos de 2013 nessa degradação do debate público brasileiro?
Considero que os atos de 2013 são irredutivelmente ambíguos. De certo modo, a emergência massiva da sociedade civil foi a saída possível que se vislumbrou num momento em que a sociedade brasileira passava pelo que os cientistas políticos Chantal Mouffe e Ernesto Laclau chamam de “pós-democracia”: o estado das democracias liberais geridas, na melhor das hipóteses, por um reformismo fraco, incapaz de promover as reformas estruturais de que as sociedades necessitam para alcançar algum equilíbrio sustentável. O povo nas ruas deu um choque na soberania que respirava por aparelhos. Mas o fato de que se tratava de um movimento anti-institucional, tendo como principal tema a crise de representação política, portanto tendo caráter negativo e difuso, permitiu que a imensa quantidade de energia mobilizada fosse capturada por grupos cuja ação viria a fragilizar a democracia em vez de fortalecê-la. Assim, a Lava-Jato canalizou a revolta e tentou fazer justiça com as próprias togas, solapando princípios fundamentais do direito, da Justiça como instituição. Movimentos sociais que surgiram na esteira das ruas, como o MBL, estabeleceram uma linguagem infantilizante e agressiva, que degradou – e degrada até hoje – o debate público. Em suma: não penso que se pode estabelecer uma relação causal direta entre 2013 e o ponto em que chegamos, mas também não penso que podemos avaliar 2013 sem considerar que foi a esse ponto que chegamos. Parece-me que a questão que 2013 nos deixa é se vale a pena arriscar a liberação de energias massivas sem sentido definido e convergente. E ainda: se, apesar da lentidão e das limitações dessa via, não seria preferível firmar um pacto de reforma institucional por dentro, a partir de um debate eleitoral erguido sob premissas mais honestas em relação à realidade. Utopia por utopia, prefiro essa.
A ascensão de minorias, que passaram a ocupar espaços antes não ocupados, deixou o debate público mais plural, mas ao mesmo tempo provocou reações das parcelas mais conservadoras da sociedade. O quanto esse tensionamento colaborou para essa degradação?
Penso que um bom caminho para se entender esse problema é separando as posições antipreconceituosas do que se costuma chamar de “identitarismo”. Em outras palavras, uma coisa é ser antirracista, defender e praticar igualdade de gêneros e afirmar plenos direitos a indivíduos que têm identidades de gênero ou orientação sexual não normativas. Outra coisa é ser “identitarista”, isto é, adotar certas premissas (por exemplo, a de que relações heterossexuais são constitutivamente violentas, como sustentam as feministas radicais) e certos métodos de luta política (por exemplo, a prática do cancelamento) que são equivocados e inaceitáveis até para quem é igualitarista em termos de cor da pele, gênero e sexualidade. Feita essa distinção, posso responder à pergunta. A ascensão das minorias, produzida em boa medida por premissas e métodos identitários, despertou a reação de grupos conservadores mais radicais, como era esperado, mas também despertou uma reação de pessoas progressistas, identificadas com a esquerda. No primeiro caso, a reação é contra a igualdade; no outro, é a favor da igualdade, mas contra premissas e métodos que, ao tentar obtê-la, produzem muitos efeitos colaterais indesejados.
A degradação do debate público é mais afetiva do que intelectual, como você defende. Só uma grande terapia coletiva nos livraria da ânsia narcísica pelo triunfo. Estamos dispostos a isso?
Certamente quem está obtendo muito prazer narcísico com essa situação não está disposto a mudar, mesmo que esse prazer imaginário venha acompanhado de prejuízos materiais. Mas me parece razoável apostar que uma parte significativa da sociedade não produziu identificações grupais tão consistentes, e outra parte produziu mas está cansada dessa dinâmica, que é muito ruim em termos de convívio social. É difícil medir isso empiricamente, mas me parece que há alguma margem de manobra para desativar as lógicas de grupo, comendo-as pelas beiradas. Se não for dessa maneira, poderá ser pela via desgraçada das catástrofes políticas, como aconteceu com a ditadura pós-1964. Muita gente foi torturada, assassinada, exilada; toda a sociedade perdeu direitos políticos e liberdades individuais fundamentais por mais de 20 anos, até que se produzisse um consenso democrático e reformista, expresso na Constituição de 1988.
O que as pesquisas têm mostrado é que os fanáticos são cerca de 10% a 15%. O que faz parecer que são maiores é que outros grupos aderem a eles, mas de forma mais circunstancial. Não estão ‘soldados’, no duplo sentido da palavra. Essas pessoas é que devem ser ‘disputadas’. Mas uma forma de perdê-las é confundindo-as com as outras. Sair chamando todo mundo de fascista não ajuda.
Por que a pauta de costumes é tão importante em um país com tanta desigualdade social e índices de pobreza e fome altos e hoje crescentes?
Porque nós somos humanos, e a espécie humana se define precisamente por transcender a dimensão material. É claro que a fome, o abrigo, a saúde serão sempre questões fundamentais e urgentes. Mas as pessoas têm outras necessidades fundamentais também, entre elas o senso de comunidade, de pertencimento. A religião, a família, a tradição, essas são instâncias imateriais fundamentais para muitas pessoas. O paradoxo da sua pergunta se situa aqui: quanto mais precarizado materialmente, mais o indivíduo precisa dessas instâncias fortalecedoras, mais elas têm centralidade em suas vidas. A religião oferece pertencimento espiritual e social, numa sociedade com pouco sentido comunitário. A família é o laço incondicional num país em que o Estado falha no processo de reconhecimento de grupos sociais vulneráveis. A tradição protege psiquicamente num mundo em que tudo que é sólido se desmancha no ar. Portanto não é difícil entender o porquê da força da pauta de costumes – difícil é descobrir como conciliar os valores conservadores com a legitimidade moral dos grupos que reivindicam seus plenos direitos políticos e sociais, como o dos indivíduos LGBTQIA+. Esse é um nó difícil de desatar. Minha sugestão, neste livro, é que o caminho deve ser sobretudo indireto: melhores condições materiais, moradia digna, cidadania digna, acesso à boa escolaridade; tudo isso tende a aumentar a secularização da sociedade, tudo isso tende a enfraquecer a centralidade da religião na vida das pessoas. Ora, por mais que existam muitos cristãos liberais, ou apenas moderadamente conservadores, é também verdade que o núcleo do reacionarismo brasileiro é cristão. Com uma maior secularização, a agenda progressista teria melhores condições de prosperar.
Qual foi o papel do impeachment de Dilma Rousseff na degradação do debate público do país?
Foi um papel central. Estou entre aqueles que consideram que o impeachment foi uma espécie de golpe. Um impeachment que foi encorajado pelo derrotado na eleição (Aécio Neves). Um impeachment que foi deflagrado na Câmara por um bandido notório, Eduardo Cunha, e em ato aberto de chantagem contra o PT. Um impeachment assim deflagrado tendo como pretexto jurídico práticas fiscais irresponsáveis num país que sempre as praticou. Um impeachment que entronizou um presidente sem legitimidade popular (Michel Temer) e que, entretanto, tentou tocar reformas estruturais como se tivesse essa legitimidade. Um presidente, aliás, cercado por um núcleo duro de políticos sobre os quais pesavam suspeitas muito mais graves do que aquelas que derrubaram Dilma Rousseff. E assim por diante. O conjunto da obra deixou boa parte da sociedade em estado de anomia. E não há terreno mais propício para o triunfo de um populismo desgraçado como o bolsonarista do que o estado de anomia.
Como debater civilizadamente com quem é contra vacinas e despreza o conhecimento alcançado pela ciência?
Meu livro talvez seja mais exatamente sobre como estabelecer condições para o debate público de modo a evitar que pessoas sejam contra vacinas mesmo diante de evidências científicas e empíricas de que elas salvam vidas e não possuem efeitos colaterais minimamente graves. Mas, claro, já estamos na lama, então não posso me furtar a tentar responder essa pergunta. Considero que é sempre importante fazer distinções. É por definição muito difícil, senão impossível, conversar com pessoas ultraideologizadas, porque o pertencimento ao grupo ideológico produz muito prazer e elas não querem abrir mão desse prazer. Então os argumentos e mesmo as evidências vão ser derrotados, justamente porque não se trata de uma disputa argumentativa. Mas o que as pesquisas têm mostrado nesses anos é que os fanáticos ideologizados são cerca de 10% a 15% – do lado da direita. Esses aí estão fora do alcance argumentativo. Mas são uma minoria, apesar de estridentes, também por definição – ponderados não gritam. O que faz parecer que são maiores é que outros grupos aderem a eles, mas de forma mais circunstancial. Não estão “soldados”, no duplo sentido da palavra. Essas pessoas é que devem ser “disputadas”. Mas uma forma de perdê-las é confundindo-as com as outras. Sair chamando todo mundo de fascista não ajuda. É preciso tentar reconhecer a legitimidade dos problemas das pessoas, tentar estabelecer com elas algum solo comum, desarmar um pouco as resistências para, a partir daí, procurar conversar. Ou seja, entrar em registro argumentativo, debater sobre a realidade em estado de abertura recíproca.
Você está na televisão, lança livros que buscam dialogar com o grande público, ou seja, é um intelectual com uma atuação propositiva e não tão restrita, como ocorre com alguns de seus pares. Com a pandemia, os chamados divulgadores da ciência apareceram mais. Não faltaria à intelectualidade ser mais participativa no debate público?
Eu não vejo desse modo. A pesquisa acadêmica é fundamental, mas exige outra temporalidade, outra densidade, é natural que permaneça mais restrita, ao menos em um primeiro momento. Ao mesmo tempo, há muitos intelectuais públicos no país. A diferença histórica é que agora os espaços de prestígio se democratizaram bastante. Há mais intelectuais públicos negros, mulheres, pessoas trans, indígenas. Nesse sentido, o debate público melhorou muito nos últimos anos.
“A internet deu voz a uma legião de imbecis.” Você caracteriza essa célebre frase de Umberto Eco, que abre o livro, como uma demonstração de “demofobia”, ou seja, uma aversão à massa, ao povo. É um rótulo que costuma ser colado a parcelas da elite. Não faltaria um mea culpa ao menos à elite?
“Elite” é uma noção sociologicamente vaga. Há, por exemplo, uma elite cultural no Brasil que é em grande maioria progressista, de esquerda. E há uma elite financeira que é, na maioria, liberal de direita. A escolha que muitos desses liberais fizeram, ao votar em Bolsonaro, deveria ser motivo de vergonha e arrependimento. É legítimo que não considerem Lula a melhor alternativa, mas não pode haver comparação entre um governo Lula e um governo Bolsonaro, sobretudo um eventual segundo governo Bolsonaro, que deverá seguir o script de outros populismos de direita mundo afora. A retórica farsesca da “terceira via” alimenta a possibilidade de repetição do desastre, legitimando-o. A polarização entre Lula e Bolsonaro é profundamente assimétrica: eles não são dois polos equidistantes no espectro. Lula é de centro-esquerda, e Bolsonaro é um amálgama de direita radical com extrema-direita. Portanto, Bolsonaro ocupa sozinho uma via, a via da miséria material e cultural e da ameaça à democracia. Todos os demais candidatos minimamente factíveis, Lula entre eles, ocupam diversos pontos dentro do espectro da democracia liberal. A escolha não é entre Lula e Bolsonaro, e sim entre reconstrução e ruína.