Até quem não leu O Pequeno Príncipe conhece a frase “tu és eternamente responsável pelo que cativas”, de Saint-Exupéry. A ideia é que, ao conquistar o afeto de alguém, nos tornamos responsáveis pelo que a pessoa sente. Em Eu Controlo como me Sinto (Planeta), a neurocientista Claudia Feitosa-Santana, 51 anos, defende que não há ninguém responsável pelo emaranhado de sentimentos que carregamos além de nós mesmos. Ainda que outra pessoa tenha provocado situações negativas.
Professora e palestrante com doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pela Universidade de Chicago, ela explica como funciona nosso circuito emocional, do surgimento de uma emoção até a transformação em sentimento - que precisa da ação da razão. Ao apresentar um manual sobre o nosso processo emocional, a intenção de Claudia é fazer com que a gente se aproprie do que acontece dentro de nós.
“Tu és eternamente responsável por aquilo que sentes”, escreve ela. É um chamado para assumirmos o poder sobre as nossas emoções.
Você afirma que emoção e sentimento são coisas distintas e que é importante reconhecer um e outro para ter autocontrole. Pode explicar as diferenças?
Emoção e sentimento correspondem a dois estágios do nosso processamento emocional. A emoção é o que vem primeiro e se refere ao que acontece no corpo, ao nosso estado físico. É o batimento cardíaco, a boca seca, a mão suada, a tremedeira, a náusea. É a primeira pista para entender o que estamos sentindo. E o que é o sentimento? É a junção dessas emoções com a razão. Ou seja, você precisa de razão e emoção para entender como se sente. É por meio da razão que você interpreta suas emoções, ou seja, o que acontece no nosso corpo. O sentimento é o que você vai nomear de tristeza, raiva, indignação, incômodo, felicidade, esperança.
Sempre se entendeu sentimento como algo puramente emocional.
O sentimento junta as duas pontas: emocional e racional. Precisamos destruir a separação entre racional e emocional, ou unir essas duas pontas, porque o sentimento depende do racional, e vice-versa. Precisamos da razão para interpretar nossas emoções, e dos sentimentos e das emoções para realizar nossas escolhas racionais. No fundo, está tudo ligado. Nós é que temos mania de separar. E muitas vezes a gente pode escolher o que a gente sente – o que é algo importante dos últimos estudos da neurociência. Em que sentido? O do autocontrole, em como eu decido interpretar minhas emoções. Assim como as emoções acontecem somente no nosso corpo, o sentimento acontece só na nossa mente, não fora. Se só acontece ali, eu tenho o poder de escolher o que estou sentindo. Se vem uma aposta do cérebro me dizendo “olha, você está triste”, eu tenho como checar. É tristeza mesmo o que estou sentindo, ou é raiva, ou é incômodo?
Segundo você, quando conseguimos elaborar um sentimento positivo para uma situação negativa, devemos repetir o processo até que o cérebro aprenda. Como se faz isso?
Isso se esse sentimento positivo for o mais adequado e benéfico para você. Não quero dizer que escolher o que estamos sentindo é sempre buscar um sentimento positivo. Porque existem pessoas que são otimistas num nível irrealista. Inclusive, elas até podem ser irresponsáveis com elas mesmas. Quanto mais você for realista entre o que vive e o que está acontecendo dentro de você, mais benéfico será.
Então não se deve transformar todas as experiências, incluindo as negativas, em algo positivo.
Imagina que você tenha um chefe assediador e sinta um incômodo que não consegue identificar. Você depende desse emprego, então não quer enxergar seu chefe como assediador, concorda? Você quer vê-lo com bons olhos. Mas não é benéfico ser irrealista e só ter sentimentos positivos em relação ao seu chefe assediador. Se você consegue identificar que ele é um assediador, pode escolher a maneira como vai interpretar seu sentimento e que decisão tomar a partir disso. Você pode ficar indignada, deprimida, com raiva. E, daí, decidir pedir demissão, fazer uma denúncia, por exemplo. A escolha sobre o que se sente é muito importante para ajudar a enfrentar a situação.
Precisamos destruir a separação entre racional e emocional, ou unir essas duas pontas, porque o sentimento depende do racional, e vice-versa. Precisamos da razão para interpretar nossas emoções, e dos sentimentos e das emoções para realizar nossas escolhas racionais. No fundo, está tudo ligado.
Você diz que sentimentos que responsabilizam o outro, como injustiçado, desprezado, mal tratado, desvalorizado, fazem com que a gente fique dependente da outra pessoa. Entendi que você procurava abdicar da ideia de vítima.
Pelo contrário. Vivemos em um mundo extremamente desigual, em que as diferenças de poder são marcantes. Temos poucas pessoas com muito poder e muitas pessoas com menos poder. Isso, infelizmente, nos mostra que há milhões de situações em que seremos vítimas. Isso é um fato. Ser vítima, ser assediado, é um fato, não é sentimento. Agora, como você se sente quando é assediado é outra coisa. Com o tempo, e aprendendo a lidar com o que aconteceu da melhor maneira possível, você pode deixar de ser vítima e se tornar uma sobrevivente. Isso porque o fato é diferente do sentimento. Então, por exemplo, uma mulher vítima de assédio sexual: ela foi vítima. Isso é um fato. Com o tempo, ela pode decidir que não quer se manter sempre vinculada a essa tragédia, que é um evento ruim que experimentou, mas que sobreviveu. Outro exemplo é o traído em uma relação amorosa. A traição é o fato. Então você se identifica com a classificação “traído” por um momento e sofre. Mas esse rótulo não é quem a pessoa é. Ela pode se desvincular do episódio para refazer ou criar novos laços amorosos.
A pessoa assediada, se ficar sempre vinculada ao que aconteceu com ela, acaba se tornando emocionalmente dependente do algoz?
Se ela sempre se vincula ao fato do qual foi vítima, sem conseguir lidar com o trauma, ela acaba, o tempo todo, dando certo poder ao criminoso sobre seu estado emocional. E não pode depender dele para se sentir melhor. Em geral, os criminosos não assumem a culpa e muito menos ajudam a vítima. A pessoa tem que interpretar seus sentimentos sem se tachar como “a assediada”, como se isso fosse tudo o que ela é. Se você fica amarrado no “assediada” e não faz nada para se sentir melhor, perde o poder sobre si mesma. Por outro lado, tem pessoas que insistem em ter sentimentos positivos e não querem enxergar um assédio. É importante notar que há muitas relações desiguais de poder com uma vítima e um culpado. Há histórias de pessoas que viveram situações de racismo horrorosas, por exemplo. Essas nunca vão deixar de ser vítimas. Mas, todos os dias, pessoas negras buscam não se deixar definir pelo racismo que sofrem. E a neurociência corrobora essa atitude, mostrando que podemos ser agentes da nossa vida.
Pessoas que têm menos autocontrole estão acostumadas a explodir para liberar a raiva. Mas depois vem o arrependimento. Como podem vencer essa situação que se repete?
É preciso aprender a antever a situação. E planejar uma postura diferenciada. Eu, por exemplo, detesto falar com atendentes de telemarketing. Então, quando preciso ligar para a companhia de água, por exemplo, já traço uma estratégia, penso no melhor horário, evito resolver meus problemas com fome ou sono, e por aí vai. Agora, se não é possível traçar uma estratégia, a pessoa vai repetir o comportamento e explodir. O corpo vai reagir como sempre reage, e o cérebro vai processar do jeito de sempre. Inicialmente, você fica aliviado, mas depois vem o arrependimento, porque você não teve autocontrole. Tem gente que não se arrepende, mas, se for alguém que quer melhorar, provavelmente vai ficar arrependido. Tem que treinar, se conhecer melhor e ir aprendendo a lidar consigo.
Então o autocontrole também tem a ver com se preparar para as situações desafiadoras, em vez de só tentar dominar os sentimentos na hora em que o desafio se apresenta?
Exato. Até porque, veja bem, se as emoções são reações do corpo, não tem como controlá-las. O sentimento é uma interpretação, como você processa por meio da razão as suas emoções. No fundo, autocontrole é sobre autoconhecimento e a capacidade de escolher como lidar com suas emoções. E o autocontrole profundo é uma via de mão dupla: se você respeita mais o outro, o outro vai acabar te respeitando mais.
O primeiro capítulo do seu livro se chama “Tu és eternamente responsável por aquilo que sentes”. Mas desde crianças ouvimos a máxima de Saint-Exupéry: “Tu és eternamente responsável pelo que cativas”. Na prática, qual é a diferença?
Como você vai ser responsável pelo que cativa se você nem sabe o que sente? Acho que o que a gente precisa realmente é lembrar da máxima da emergência do avião: você primeiro coloca a máscara em você para depois colocar no outro. Primeiro, você tem que se responsabilizar pelo que você sente e não entregar para o outro a responsabilidade pelos seus sentimentos, nem tomar os sentimentos do outro como responsabilidade sua.
Em relações amorosas, muito se fala da responsabilidade afetiva. Basicamente, o parceiro precisa informar a outra pessoa quais são suas pretensões dentro da relação. E se agir diferente disso será um irresponsável afetivo. Parece uma tentativa de racionalizar algo muito movediço: os afetos.
Não acho que seja uma tentativa de racionalizar. A gente nem precisaria dizer que dentro de uma relação amorosa precisa ter responsabilidade afetiva; basta ter responsabilidade. Só você ser responsável pelo que sente não te exime de uma responsabilidade social, no sentido de responder pelas suas ações. Posso não ter como determinar como o outro se sente, mas ações e atitudes têm consequência. Onde está o problema? Muitas pessoas não conseguem ser transparentes ou se colocar na situação em que estão porque não têm uma conexão profunda consigo mesmas. As pessoas têm vergonha de falar: “Eu quero isso, o que você quer?”. Muita gente sequer sabe o quer ou admite para o outro que não sabe o que quer. Se você não sabe o que sente, como vai informar à outra parte sobre suas pretensões?
Ouvi muito sobre o Tinder e as relações mais casuais. As pessoas estão cobrando do outro uma responsabilidade afetiva, mas o outro não é responsável sobre como elas se sentem, muito menos se elas não sabem o que querem.
O parceiro não é obrigado a saber o tempo inteiro o que quer. E a outra pessoa fica apostando nessa responsabilidade afetiva para encaminhar a própria vida.
Muito bom você ter trazido isso. Antes, falamos sobre quando a pessoa é uma vítima de fato. Nas relações amorosas, só existe vítima se existir violência, seja psicológica ou física. Mas, falando de relações amorosas em que não há a ocorrência de um crime, você tem que se responsabilizar pela sua parte. Ouvi muito sobre o Tinder e as relações mais casuais. As pessoas estão cobrando do outro uma responsabilidade afetiva, mas o outro não é responsável sobre como elas se sentem, muito menos se elas não sabem o que querem. Se começa a paquerar com uma pessoa que não parece ser legal e não te trata bem, você tem que se lembrar que pode pular fora. E é importante lembrar desse poder. Isso não significa que não se pode cobrar dos outros que sejam honestos, transparentes e leais, mas que, no fundo, você interpreta suas emoções da maneira que achar melhor e, a partir disso, realizar escolhas mais interessantes e saudáveis para a sua vida.
Fica parecendo que responsabilidade afetiva é coisa de adulto infantilizado, que coloca na mão do outro a condução da relação.
Em muitos casos, pode ser infantil mesmo. A pessoa quer que o outro seja responsável por ela, mas não quer ser responsável por si mesma. Porque primeiro precisa se conhecer, entender o que sente. No fundo, pode até ser que se procura errado de propósito, porque, se der certo, você não vai conseguir bancar. Ou ficamos feridos porque nos relacionamos com pessoas que não sabem o que querem, mas não usamos do nosso poder de decisão para dizer “quer saber? Mereço coisa melhor” e ir embora.
Outra palavra da moda é empatia. Você defende que, hoje, parece que temos que ser empáticos com o outro o tempo inteiro, mas que isso demanda um gasto energético enorme. Que, na verdade, a gente só consegue ser empático com quem nos interessa.
Não é com quem nos interessa, mas com quem a gente escolhe. Em geral, nossas relações mais próximas demandam muita empatia. Sobra pouco para o resto. E a sociedade vende a ideia de que, para sermos melhores, basta sermos mais empáticos. É mentira. Não temos como fazer isso. E isso nos leva a uma ideia pior, a de que, para sermos melhores para os outros, precisamos empatizar com eles. Ou seja: só vou respeitar o outro se eu empatizar com ele? Precisamos respeitar o outro independentemente de empatizarmos com ele. A polarização política é um bom exemplo. As pessoas não vão empatizar umas com as outras, mas precisam se respeitar. A ideia de que o respeito demanda empatia é um veneno, não um remédio. A empatia pode melhorar muitas relações. Mas demanda muita energia, muita dedicação. Inclusive, é biologicamente impossível, porque despende energia e, se tivéssemos empatia com todo mundo, não teríamos como fazer nenhuma atividade. Por isso também é absurdo ensinar na escola que as crianças precisam ser empáticas toda hora com todo mundo.
A melhor equação, então, é ser empático com alguns poucos e respeitar todo mundo.
Exato. Ser empático com quem pode, com quem dá, e respeitar todo mundo.
A ideia de que o respeito demanda empatia é um veneno, não um remédio. A empatia pode melhorar muitas relações. Mas demanda muita dedicação. Se tivéssemos empatia com todo mundo, não teríamos como fazer nenhuma atividade.
Você é doutora em neurociência e mestre em psicologia experimental. Mas é adepta do zen budismo e da meditação. Como isso beneficiou sua vida?
Na verdade, sou adepta do zazen, que é a meditação zen-budista. Mas não tenho uma relação espiritual com o zazen. Eu faço essa meditação há mais de 20 anos. Antigamente, eu achava que o zen budismo não tinha nada de religioso. Eu vejo a meditação como um mecanismo de silêncio. Melhora a minha concentração, mas não é para todo mundo.
O que a neurociência diz sobre a meditação?
Quando a gente faz metanálise, que é pegar centenas de estudos e avaliar o quanto a meditação é benéfica, o resultado em geral é o seguinte: o benefício da meditação é de nível pequeno a, no máximo, moderado. Quando as pessoas fazem a meditação, no geral, elas não fazem só isso. Elas também praticam exercícios, cuidam da alimentação, têm um estilo de vida saudável. Então, não tem como dizer que o resultado vem só da meditação. Com atividade física, alimentação e boas noites de sono, você consegue ter uma saúde melhor. Assim como a empatia não resolve os problemas da humanidade, a meditação, sozinha, também não resolve os problemas de ninguém.
A espiritualidade é uma busca que remonta há milênios. Como a neurociência avalia essa necessidade do ser humano de se conectar com um sentido que vai além do material?
É horrível ter consciência que nossa vida é única e dura muito pouco. Dá para entender porque tem tanta gente busca um sentido maior para a vida. Mas não interessa se há reencarnação ou se há vida eterna. O que interessa é que ter uma crença religiosa ou espiritual, que é como se fala ultimamente, traz o benefício da redução do estresse. E o estresse é altamente maléfico para saúde. O estresse crônico faz mal para o sistema imunológico e faz com que o corpo viva como se estivesse enfrentando uma guerra. Portanto, cultivar uma relação religiosa ou espiritual ajuda o corpo a sofrer menos. No aspecto neurocientífico, não interessa se aquilo no que você acredita é verdadeiro ou falso. É benéfico para a sua saúde.
Em uma sociedade cada vez mais voltada para o que acontece fora da gente – as redes sociais, o Instagram, a televisão –, conseguir controlar o que sentimos e até escolher o que vamos sentir parece uma espécie de superpoder.
Não é que você sempre tenha que buscar um sentimento positivo. Não é isso. Mas é o poder de dominar o que você sente. Eu dava uma aula antigamente sobre grandes artistas cujo superpoder estava em sua própria deficiência, dificuldade ou transtorno. Sabe a Yayoi Kusama, artista plástica japonesa? Ela não é uma das artistas contemporâneas mais famosas? Ela transformou o transtorno dela em seu superpoder. O TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) dela era tão forte que ela passou a usar sua obsessão por bolinhas em sua obra de arte. Tem mais, o Chuck Close, outro artista contemporâneo famoso. Ele só faz retratos. Especula-se que ele tenha problemas em memorizar o rosto das pessoas, porque talvez ele tenha prosopagnosia (incapacidade de reconhecer de forma parcial ou mesmo totalmente o rosto de conhecidos). Cada detalhe parece ter sido feito com uma lupa gigantesca. Todo mundo que é retratado por ele fica incomodado. Ele transformou essa característica em seu superpoder. Tem outros exemplos. A Evelyn Glennie é considerada uma das melhores percursionistas do mundo. Mas ela é surda. Ou seja, quando nos autoconhecemos e sabemos o que sentimos, até nossas dificuldades podem ser um superpoder.