Foram os 25 anos como professor que levaram o filósofo e escritor Luiz Felipe Pondé, 61, a produzir um livro no qual defende a ideia de que estamos em uma “era da ansiedade”. O contato com os jovens (e com os pais deles) reforçou progressivamente sua impressão de que gerações atuais vivem problemas cada vez mais acentuados como narcisismo, solidão e uma sensação crescente de incompletude, em um cenário que culmina com esse mal contra o qual, como ele próprio diz, “não há solução”.
Coordenador do curso de Comunicação Social da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), docente também na PUC-SP, autor de mais de uma dezena de obras sobre filosofia, amor, felicidade e ressentimento, entre outros temas, ele trabalhou no texto de Você É Ansioso? Reflexões Contra o Medo desde antes da pandemia do coronavírus. Aproveitou a quarentena – que potencializa a ansiedade – para finalizar o livro. E reforçar a reflexão diante do “desafio extra” representado pelo isolamento social. A seguir, analisa a midiatização da covid-19, lembra de quando era estudante de Medicina, critica os profissionais de coaching e pondera sobre realização pessoal e a obsessão das pessoas pela felicidade – um ponto fundamental, defende, para entender a era atual.
O senhor associa a ansiedade à dificuldade de encontrar sentido para a vida – daí a citação inicial ao clássico literário O Apanhador no Campo de Centeio, ícone de um niilismo contemporâneo que perpassa várias gerações nas últimas décadas. O que tem feito essas gerações não encontrarem sentido para a vida?
A humanidade pensa sobre isso há muito tempo, mas de fato os estudos se fortaleceram no século 19 com obras como as de Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche. Esses filósofos e outros posteriores – o que inclui Bauman – direcionam seu pensamento para a sensação de que o mundo voltado só para a produção e para a eficácia não satisfaz o ser humano. Um dos fatores que reforçam essa sensação é o de que as pessoas se sentem pressionadas pelo sucesso, o que gera a ansiedade. Quanto mais veloz e exigente o mundo vai ficando, mais ele te cobra, deixando claro que, se você não for produtivo o tempo todo, vai ficar obsoleto. Isso já está acontecendo há algum tempo. Do ponto de vista histórico, a ansiedade contemporânea seria fruto de uma ruptura com um momento em que as coisas estavam no seu devido lugar e, devido à aceleração da vida, as pessoas começaram a ser forçadas a fazer movimentos, sempre mais e cada vez mais enlouquecidos, levando-as, no fim das contas, para lugar nenhum.
Traumas coletivos como uma pandemia não ajudam a encontrar o sentido eventualmente perdido?
Não escrevi Você É Ansioso? na pandemia ou sobre a pandemia, quero deixar claro. Eu já vinha trabalhando nele desde antes. Acertei com a editora que produziria um livro sobre ansiedade no ano passado. Apenas finalizei o texto no isolamento, mais rapidamente do que estava previsto, inclusive, mas quero ressaltar que a questão da ansiedade é anterior. A quarentena potencializa essa sensação, traz um cenário propício para acentuar o problema, mas não cria um cenário novo, não. Agora, tem o seguinte. Não sei se estamos diante de um trauma coletivo tão grande. Por mais que a pandemia esteja o tempo todo no noticiário e nos afete, sua mortalidade não é alta. A gripe espanhola (1918-1920) e a grande peste da Idade Média (1346-1353) ceifaram muito mais vidas. O que o coronavírus tem é uma mídia muito grande. É a pandemia mais famosa da história da humanidade, isso sim. Poderia ganhar um Oscar de protagonista entre as pandemias que a humanidade já viu.
Tem um povo 'chiquinho', metido a inteligente, que está dizendo que a humanidade vai sair (da pandemia) dando valor ao que é essencial. Pelo amor de Deus. Como é que alguém inteligente pode cair nessa? Não há dado histórico que embase esse tipo de raciocínio.
O fato de se falar mais sobre o problema não potencializa o impacto desse problema?
Acho que se trata de um trauma, sim. Mas a tendência da espécie é superar esse tipo de coisa rapidamente. Imagina quantos de nós já pararam para ficar pensando sobre a gripe espanhola, sobre as vidas ceifadas por ela. Antes de chegar o coronavírus, ninguém dava mais bola para a gripe espanhola, e isso há décadas, há gerações. Pouco depois daquele trauma, o povo já estava vivendo loucamente sem maiores preocupações sanitárias. Os anos 1920 foram loucos, inclusive, the crazy twenties, como se diz. Se olharmos historicamente, fica comprovado que as grandes epidemias têm impacto na gestão pública, no campo econômico, na organização da força de trabalho, na ciência e tecnologia. Do ponto de vista moral, elas não nos mudaram em nada. Se quisermos encontrar alguma mudança nesse sentido, será negativa: as pessoas ficaram mais desconfiadas, egoístas e agressivas. E as relações profissionais, mais exploratórias. É, inclusive, o que acho que vai acontecer agora: os ricos ficarão mais ricos, os pobres, mais pobres, e a classe média, mais pobre. O que vamos mudar dentro de nós pode ser consequência disso.
Há quem acredite que poderemos ficar menos individualistas. O senhor não concorda, pelo jeito.
Não mesmo. Já andei lendo por aí. Tem um povo “chiquinho”, metido a inteligente, que está dizendo que a humanidade vai sair dando valor ao que é essencial. Pelo amor de Deus. Como é que alguém inteligente pode cair nessa? Não há dado histórico que embase esse tipo de raciocínio. Pode acontecer um milagre, aí sim. A pandemia de fato está tendo impacto, mas na política, na economia, no trabalho. Você fica muito tempo trancado em casa, de repente não sabe mais se vai continuar tendo emprego, descobre que não conhecia tão bem a pessoa que vive com você, o convívio com filhos pequenos vira um tormento. A vida pode colapsar, sim. Há todo um ecossistema, para usar um termo da moda, que é impactado. Mas acho que nosso aprendizado com isso virá em campos como o da tecnologia, que vai evoluir pressionada pela falta de respostas imediatas na saúde, por exemplo. Moralmente? Não há indicativo de que vamos aprender coisa alguma.
No seu livro, há uma longa lista, que inclui mais acesso à informação, maior longevidade, melhor medicina, tudo nos ajudando a evoluir, porém, indicando o quanto ainda há de incompletude na vida. É um paradoxo, que está presente há muito tempo no pensamento ocidental – Freud, citado pelo senhor, escreveu que, quanto mais conhecimento, maior pode ser a paranoia. O que faz a era atual diferente?
Olha, é difícil comparar nossa ansiedade atual com a de uma pessoa indo para Auschwitz. Por isso inclusive faço um reparo metodológico no início do livro. Uso a expressão “era da ansiedade”, mas deixando claro que há essa impossibilidade de comparação com outras eras. Baseio-me em coisas concretas para falar do tempo presente: há muita solidão entre os idosos, consumo acentuado de medicamentos por parte de jovens, entre outros fatores que levam a constatar que há uma situação psicológica precária da população. E a pressão do sucesso está ligada a isso. O sucesso parece que nunca é suficiente; quanto mais sucesso, mais vontade de sucesso. A eficácia parece obrigar a ser ainda mais eficaz. E isso vai delineando uma ansiedade muito própria da atualidade, uma ansiedade que é moldada pelo progresso, pelo avanço da sociedade. Quanto mais você vive, mais ansioso você fica na tentativa de encontrar sentido para a vida. Além disso, há outro fator: a humanidade não está acostumada a viver tanto tempo. Isso também é importante no panorama do avanço da depressão. Vivemos bastante, e ao longo da vida vamos cada vez mais nos aprofundando nesse jogo que envolve a pressão pelo sucesso. Vamos nos isolando. Nós vivemos uma epidemia de solidão. Pessoas de várias idades e gerações estão sendo afetadas. Um exemplo real de agora, da pandemia: o quanto cada um de nós já leu e descobriu coisas sobre imunização, medicamentos, sintomas da covid-19. É tanta informação especializada disponível. E não há solução para o vírus, apesar disso. Tem gente que absorveu tanta informação que acha que, se respirar na rua, vai morrer. Até as maçãs são inimigas – é preciso lavá-las com Pinho Sol, segundo se lê por aí, para livrá-las do vírus. Imagina o nível de ansiedade.
Qual a solução para ficar menos ansioso?
Em primeiro lugar, ler menos essas bobagens como a do Pinho Sol. Mas não há solução, não há fórmula. Temos de encarar do jeito que dá – com elegância, de preferência, como defendo no fim do livro. A ansiedade está inscrita no laço social. Não ter ambições de popularidade, não perseguir o sucesso incansavelmente ajuda a não ser tão ansioso. O livro é de sociologia da ansiedade, aborda a questão a partir de marcos como a desestruturação política e as redes sociais e como tudo isso nos afeta. Esses marcos estão aí. Vai da nossa capacidade de resistir à fúria do desejo de querer mais, que hoje nos estimula o tempo todo. Ou seja, ser elegante. Na pandemia fica mais difícil, porque, para enfrentá-la, você teria de ter construído ativos anteriores: estrutura financeira, possibilidade de trabalhar remotamente, harmonia em casa, relações menos alienadas. Sem isso, a ansiedade é despertada, tem mais estímulos. Há um desafio extra.
Não há solução, não há fórmula. Temos de encarar do jeito que dá – com elegância, de preferência. A ansiedade está inscrita no laço social. Não ter ambições de popularidade, não perseguir o sucesso incansavelmente ajuda a não ser tão ansioso.
Ler menos bobagens é um primeiro passo, então.
Ler menos, eu diria. Eliminar todos os vídeos infernais de redes sociais, além de desconsiderar as recomendações que preveem cura e prevenção milagrosas para o vírus. Ter como fonte de informação o que nos é transmitido pela mídia mais profissional, ainda que essa mídia esteja nos deixando em pânico diariamente... A mídia é o seguinte. Ela tem como principal função nos informar, então é natural que, em uma pandemia como essa, nos bombardeie com entrevistas com epidemiologistas, nos apresente estudos de médicos e cientistas, e isso o tempo todo. E como a gente, que é leigo nesse campo, reage diante de uma pessoa superespecializada e cheia desses repertórios? Fica com medo. Pode observar: quando um médico fala sobre saúde, quem não é médico fica com medo. Tenho uma história sobre isso. Eu estudei Medicina. Casei quando estava na faculdade. Sempre que saía para jantar com minha mulher, quando começava a falar sobre questões dessa área, procedimentos que via, rotina de pronto-socorro, ela desmaiava. Aconteceu várias vezes. Até que, num belo dia, nos demos conta. E parei de contar. Ela não desmaiou mais.
A alienação nem sempre é o melhor caminho.
A mídia fica em uma saia justa, de fato. Ela tem de informar. Ao mesmo tempo, sabe que o receptor é mórbido. Ele fica com medo, mas se interessa. O sujeito vive na merda e, quando vê que todos estão na mesma merda, ele sente um certo conforto: não é só a vida dele que é assim. Você conhece gente mais feliz do que hipocondríaco? Tenho um amigo hipocondríaco que está radiante agora: posta selfie de máscara, fica combinando roupa, está toda hora com álcool gel. Está curtindo o atual momento.
O senhor cita muito os profissionais de coaching no livro. Classifica-os como “um fator ansiogênico” porque “vendem um produto falso”. O que acha dessa atividade que se tornou um marco dos últimos tempos?
O coaching gera ansiedade, ao contrário do que promete. Você vai para o coaching para ser assertivo e ter prosperidade, mas, na maioria dos casos, não alcança isso. O que vai acontecer com você? Fica mais ansioso. Imagina, vender sucesso hoje em dia. Qualquer pessoa que faz isso está fadado a entregar fracasso. Obter sucesso dificilmente é possível a partir de metodologias tão rasas e fórmulas tão prontas, aplicáveis a tanta gente.
O senhor escreve que os jovens são mais ansiosos e “arriscaria dizer que a esperança de futuro está nos mais velhos”. Gerações atuais lidam mal com as dificuldades?
Sim, acho que sim. Essa frase eu ouvi de um jovem em uma aula. Dou aula na graduação há 25 anos. Fui vendo um processo de fragilização acontecer. Hoje os jovens não conseguem nem fazer avaliação oral. Têm dor de barriga. Passei a vida inteira fazendo prova oral e tive de parar há dois anos, porque alunos caíam no chão de medo. É sério. E não é só a minha experiência. Há literatura especializada sobre isso. Tem gente que diz, cheia de orgulho, “meu filho está estudando em Barcelona, ele é ótimo”. Pode ser, mas provavelmente ele está deprimido em Barcelona. A frase que você cita na pergunta tem um efeito, um peso retórico, justamente para ressaltar isso: se depender dos jovens, com sua ansiedade e insegurança, com sua dificuldade de manter vínculos e diante de um mercado de trabalho difícil, que exige mais do que eles podem dar e recompensa menos do que deveria financeiramente, o futuro será difícil. Os jovens, hoje, são filhos únicos, por isso convivem mais com adultos e tendem a ser solitários, frequentam escolas piores, não assumem responsabilidades familiares. Se a esperança for os jovens, ela está comprometida.
Os jovens, hoje, são filhos únicos, por isso convivem mais com adultos e tendem a ser solitários, frequentam escolas piores, não assumem responsabilidades familiares. Se a esperança for os jovens, ela está comprometida.
Mas depois o senhor afirma que “vivemos uma epidemia de imaturidade nos adultos”.
São esses jovens se tornando adultos. Eles já se tornaram. Esse diagnóstico vem desde pelo menos 1979, com o livro A Cultura do Narcisismo, de Christopher Lash (antropólogo norte-americano). Ele aponta que o narcisismo virou uma epidemia, e uma de suas consequências é a dificuldade de assumir responsabilidades. Todo mundo quer ser adolescente a vida inteira. Há 40 anos já era possível identificar isso. Imagina de lá para cá. Esse processo vem se intensificando, ainda mais nas famílias de classes mais altas, que só têm um único filho. Imagina a carga sobre esse filho! Os pais, hoje, vão à universidade reclamar que o filho tirou nota baixa. Isso não acontece mais apenas nos níveis inferiores de ensino. Sob certo aspecto, a universidade virou um jardim de infância. Isso está gerando estudos, livros. Lembro de dois, bem recentes, ainda sem tradução: The Coddling of the American Mind (algo como “o mimar da mente norte-americana”), de Jonathan Haidt e Greg Lukianoff, e What Happened to the University? (“o que houve com a universidade?”), de Frank Furedi. Ambos analisam o que acontece com as universidades sob essa perspectiva, abordando a pressão dos pais sobre professores que não dão notas boas aos seus filhos.
O senhor escreve, citando Zygmunt Bauman, que os afetos estão em processo de dissolução, indicando ser uma consequência do fato de as crianças serem muito mimadas. É tudo isso mesmo?
Sim. Quando você mima muito uma pessoa, querendo fazer com que tenha uma autoestima alta, ela tende a sofrer um grande impacto quando vai para o mundo e recebe uma voadora na testa. É isso que o mundo faz conosco, mesmo, o mundo é uma máquina de tortura, nosso desafio é estar preparado para isso – o que não acontece quando somos mimados. Ficamos frágeis, despreparados. A educação virou uma usina de autoestima. A pedagogia atual é legitimar o que as crianças sentem, o tempo todo. Resultado: ao tomar a voadora do mundo, a criança crescida não confia mais em ninguém. Virou um adulto narcísico, que só olha para o próprio umbigo, achando que a obrigação do mundo é amá-lo. E o segredo dos afetos é você ser capaz de amar o outro para além de si próprio.
Todo mundo quer ser adolescente a vida inteira. Esse processo vem se intensificando, ainda mais nas famílias de classes mais altas, que só têm um único filho. Imagina a carga sobre esse filho! Os pais, hoje, vão à universidade reclamar que o filho tirou nota baixa. Isso não acontece mais apenas nos níveis inferiores de ensino. Sob certo aspecto, a universidade virou um jardim de infância.
Filhos únicos e crianças mimadas existem mais nas classes média e alta. Isso não se aplica exatamente aos desfavorecidos, certo?
Certo. Meu raciocínio – assim como o próprio livro – é voltado para a classe média, daí para cima. Inclusive porque é onde estão as pessoas que leem esse tipo de publicação. É claro que a ansiedade existe também na pobreza. Mas, nesse caso, você está tão paralisado pela falta de perspectiva que entra no subemprego, ou no crime, ou na gravidez precoce, e aí você tem outros problemas mais urgentes. O fenômeno que descrevo é fruto do enriquecimento, da evolução a partir do enriquecimento.
Jovens mais pobres também sonham em ter celular, viajar etc.
Sim, mas precisar produzir sua vida material, porque você não ganhou isso de ninguém, muda o cenário. Vou contar uma coisa. Escrevi uma coluna para a Folha de S.Paulo, uns anos atrás, intitulada Sociologia Selvagem do Metrô, na qual fiz uma analogia com as cores das linhas paulistanas: disse que, dos jovens da linha verde, que passa por zonas mais nobres, não deveria se esperar nada, porque não passavam, grosso modo, de uns molengas; e que a esperança estava naqueles que andavam nas linhas azul e vermelha, que passam por zonas mais pobres. Logo depois que o texto foi publicado, quatro adolescentes vieram até mim em um evento e se apresentaram assim: “Nós somos da linha azul”. Bem orgulhosos. Na linha verde estão os jovens que acham que vão mudar o mundo com sua alimentação vegana. Mas eles sequer sabem o preço das coisas. É claro que ser como os jovens mais ricos é algo a que os mais pobres aspiram. Mas a formação é outra, o comportamento é outro, as preocupações são outras.
No fim das contas, onde reside a esperança na “era da ansiedade”?
Onde a gente seja menos pretensioso com a realização pessoal. Eu disse antes que não há fórmula, mas dá para eu ser bem sintético: é só querer ser menos feliz. Não ser obsessivo com a felicidade. Qualquer reflexão a sério sobre felicidade feita nos últimos 2.500 anos sabe que essa busca tem de ser feita com uma dosagem ponderada e equilibrada. Querer o máximo de felicidade, sempre, só pode nos levar a problemas.
Como ficou a sua ansiedade neste período de pandemia?
Olha, continuo trabalhando bastante, o que ajuda. Minha ansiedade, na quarentena, está associada à vontade de que ela acabe, porque gosto da vida real, do encontro com os outros. Trabalhar remotamente tem muitas limitações.