Ainda é cedo para saber que estragos a onda de covid-19 fará em todo o planeta, mas a ocorrência de outras grandes epidemias ou pandemias ao longo da história deixa uma certeza: o mundo será um lugar diferente depois que a maré do coronavírus refluir.
Em séculos anteriores, a disseminação explosiva de doenças ajudou a abalar impérios e alterar modelos econômicos, redesenhou cidades e favoreceu mudanças de comportamento. A dimensão inédita da crise atual para uma geração inteira, segundo especialistas, deverá trazer consequências culturais e práticas, como a rediscussão do papel do Estado a fim de resgatar economias esfaceladas, a valorização de sistemas públicos de saúde e transformações no regime de trabalho — com estímulo ao desempenho de atividades à distância. A sociedade pós-pandêmica poderá apresentar mais restrições à circulação de pessoas entre fronteiras, mas também uma busca ainda maior por cooperação científica internacional.
— Vai ser um choque no sentido de que, em países como o Brasil, as últimas gerações ficaram longe de guerras ou crises econômicas brutais. Os mais jovens não lembram nem de hiperinflação. Agora, viveremos a lógica do cisne negro, a de que o imponderável acontece — afirma o psicanalista Mário Corso, fazendo referência a uma crença consolidada de que só existiam cisnes brancos no mundo, antes de ser descoberta a variação de penas escuras.
Esses sustos, embora não tão frequentes, acompanham a humanidade há eras. Há indícios de que uma variante da bactéria da peste bubônica se alastrou há cerca de 5 mil anos, conforme um estudo de cientistas franceses, suecos e dinamarqueses publicado em 2018. O primeiro evento mais bem documentado mostrou o potencial que têm as pandemias: no ano de 165, a disseminação de uma doença que poderia ser a varíola desorganizou o Império Romano e contribuiu para, tempos depois, a desintegração de sua fração oriental. O trauma já provocado pelo novo coronavírus tem potencial para alterar mais uma vez o curso da história, embora seja precipitado dizer o quanto.
— Essa pandemia se comporta como um choque que ocorre em uma conjuntura prévia da economia internacional de desaceleração econômica configurando, no atual momento, a emergência de uma tempestade perfeita, quando existe a conjugação de diferentes forças negativas — avalia o professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima Elói Martins Senhoras, autor do ensaio Coronavírus e o Papel das Pandemias na História Humana.
Quando determinadas pestes deixam de ser locais, o conhecimento também atravessa fronteiras.
JEAN SEGATA
Doutor em Antropologia Social e professor da UFRGS
O tamanho do estrago, segundo Senhoras, vai depender de como os governos atuarem para frear o vírus e os seus efeitos. No passado, a ocorrência de epidemias como a de febre amarela, no Brasil do século 19, levaram até a novas configurações nas cidades.
— No Rio, Barata Ribeiro (ex-prefeito) derrubou cortiços no centro do Rio e refez a paisagem urbana. Pereira Passos deu continuidade e queria até derrubar morros e aterrar a baía de Guanabara por acreditar que eram fontes de contaminação — afirma o doutor em Antropologia Social e professor da UFRGS Jean Segata.
Hoje, como já existem condições de saneamento e conhecimento científico muito mais avançados, mudanças tendem a ser menos visíveis. Uma consequência provável, segundo Segata, será a intensificação de outro processo decorrente das epidemias: a união global de esforços na área da saúde.
— A adoção de padrões comuns e a tentativa de produzir uma saúde global se deu a partir de epidemias. Quando determinadas pestes deixam de ser locais, o conhecimento também atravessa fronteiras — afirma o antropólogo, que também estuda epidemias.
Impactos econômicos também costumam ser consideráveis em emergências globais de saúde. O impacto da Peste Negra no século 14, quando eliminou um terço da população europeia, foi tão forte que favoreceu o fim do regime de servidão que vigorava sobre os camponeses. O cenário atual ainda é incerto, embora o Brasil já tenha reduzido a perspectiva de crescimento do PIB de mais de 2% para próximo de zero. Mas tudo indica que a necessidade de recuperação levará a uma rediscussão do papel do Estado como indutor do desenvolvimento.
— Quem está comandando as ações são os governos nacionais, regionais e municipais. Acredito que essa crise trará um deslocamento forte (de protagonismo) para o Estado, que deverá ter um papel dominante e investir em políticas públicas para vencer esses efeitos negativos — analisa o economista Alfredo Meneghetti Neto.
Para a doutora em Psicologia Social e professora da Unisinos Marília Veríssimo Veronese, com atuação na área de Saúde Coletiva, isso resultará em uma obrigatória revalorização do SUS:
- Essas epidemias expõem a necessidade de criar ou aperfeiçoar a institucionalidade da saúde pública.