A historiadora Cybele Crossetti de Almeida, professora de História Medieval no Departamento e no Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sustenta que epidemias e pandemias contribuíram para grandes mudanças sociais ao longo dos séculos desde o Império Romano, além de gerar frequentemente a busca por bodes expiatórios. Confira a entrevista concedida por e-mail a GaúchaZH.
Que mudanças significativas outras epidemias ou pandemias provocaram no mundo?
Alguns exemplos são relativamente bem conhecidos. Um deles ocorre no Império Romano do século 2, quando a peste denominada antonina ou peste dos Antoninos afetou todo o mundo romano. Somada a outros problemas internos e externos, essa epidemia contribuiu para a famosa crise do século 3, quando as estruturas do império foram abaladas, gerando a necessidade de uma série de reformas políticas, econômicas e militares.
Apesar de todos os esforços, a parte oriental do império se desintegrou ao longo do século 5. O caso mais conhecido e com efeitos mais próximos e diretos é o da chamada Peste Negra, que entre cerca de 1346 e 1353 teria dizimado algo em torno de 25 milhões de habitantes da Europa — cerca de um terço da população da época.
Claro, isso ocorreu porque a peste havia sido precedida por algumas décadas de más colheitas relacionadas a mudanças climáticas no período e à fome endêmica que enfraqueceu a maioria da população. Mas, curiosamente, nem todos os efeitos da peste foram desastrosos: após contribuir para lançar a Europa em uma crise profunda, a peste e a queda da população modificaram as relações de trabalho e de poder. O resultado foi, na Europa ocidental, um acelerado processo de afrouxamento das relações de servidão que culminaram no fim da servidão e, portanto, em maior liberdade para os camponeses.
Atribuir culpa a outros é a fórmula fácil por excelência.
CYBELE DE ALMEIDA
Professora de História Medieval no Departamento e no Programa de Pós-Graduação de História da UFRGS
Epidemias também costumam gerar bodes expiatórios, como, em casos anteriores, judeus ou leprosos. Agora há relatos de preconceito contra chineses. Por que isso ocorre?
A questão de buscar bodes expiatórios está profundamente arraigada na natureza humana. Durante o Império Romano, quando ainda era pagão, cristãos foram apontados como culpados de vários desastres, como o famoso incêndio de Roma na época de Nero. Mas, na Idade Média, o quadro se inverte, e os cristãos vão culpar judeus e leprosos pela Peste Negra, embora tanto judeus quanto leprosos também adoecessem e morressem como ocorre atualmente com a China e o coronavírus.
As razões para isso vão desde questões políticas a elementos da psique humana, provavelmente um traço infantil que permanece em alguns indivíduos mesmo durante a idade adulta como uma forma de tentar explicar o inexplicável, ou o dificilmente explicável, através de fórmulas fáceis e falsas.
Atribuir culpa a outros é a fórmula fácil por excelência. Lembro que quando meu filho era pequeno e por vezes se batia em algum móvel, geralmente na mesa, ficava brabo, às vezes chutava a mesa e dizia: "A mesa me bateu"... Um dos exemplos mais conhecidos e duradouros de geração de bodes expiatórios foi a caça às bruxas, que teve seu auge nos séculos 16 e 17, mas que seguiu fazendo vítimas até bem mais tarde. As "bruxas" eram consideradas culpadas por más colheitas, tempestades, geada, doenças que matavam o gado, impotência masculina, mortes de mães e bebês durante o parto e de crianças em geral.
No caso atual, a acusação de que a China teria "fabricado" o vírus por motivos econômicos é fruto de ignorância ou má-fé. Ignorância porque casos assim existem e são registrados desde a Antiguidade e, já naquela época, muitas epidemias vieram de lá.
Por que tantas epidemias historicamente surgem naquela região?
Por uma razão simples, que não tem nada a ver com teorias da conspiração: muitas doenças surgem do contato próximo entre humanos e animais — típico de sociedades agrícolas — e se espalham mais rapidamente onde há maior concentração de humanos. Desde a antiguidade esse é o caso da China, e é por isso que a maior parte das epidemias vem de lá. Não podemos deixar que o medo acabe com a racionalidade.
Grandes epidemias ou pandemias sempre provocam mudanças culturais, comportamentais ou econômicas, ou isso varia conforme a gravidade e o alcance?
"Sempre", assim como "nunca", são palavras que nós historiadores preferimos evitar, mas é bem comum que grandes epidemias provoquem mudanças culturais, comportamentais ou econômicas. Nos exemplos do Império Romano do século 2 e na Peste Negra do século 14, essas mudanças inclusive se desdobram em períodos posteriores.
Em Roma, a peste agravou um quadro de crise que mudou gradualmente a composição do próprio exército, que vai cada vez mais incorporar soldados não romanos — especialmente germanos — gerando aquilo que Cyro Rezende Filho chama de "a germanização do exército imperial", para dar um exemplo.
No caso da Peste Negra, além das mudanças nas relações econômicas e de poder já mencionadas, geralmente associadas com o que grande parte dos historiadores chama de crise do feudalismo, nos séculos 14 e 15, uma mudança importante também ocorreu na forma como os medievais pensavam sua relação com a Igreja. Embora a Peste não tenha sido a única causa, certamente contribuiu para um enfraquecimento da Igreja enquanto instituição, e esse é um dado importante para compreender o porquê de um indivíduo como Lutero ter tido sucesso no século 16, quando outros como Wycliff e Jan Huss fracassaram nos séculos anteriores.
Que efeitos práticos se pode esperar da atual crise do coronavírus?
Como historiadora, só posso esperar que a experiência com o coronavírus deixe alguma lição como melhores hábitos de higiene, por exemplo. Há pesquisas que indicam que substituir papel por secadores de mãos automáticos tem um efeito danoso para a proliferação de vírus, que acabam se espalhando mais, mas também sabemos que esses aparelhos foram adotados não apenas para poupar papel e o meio ambiente, como é proclamado nos locais que os utilizam, mas também por cálculos econômicos que frequentemente não priorizam a saúde pública.