A expressão pandemia tem origem grega e significa algo como "todo o povo". É utilizada, pelo menos, desde Platão, que a empregou para se referir a qualquer evento capaz de alcançar toda a população.
O médico e filósofo de origem grega Galeno (nascido por volta do ano 130) a teria usado em referência a doenças. Foi incorporada ao glossário médico de vez no século 18 como referência a doenças de larga escala. O novo coronavírus foi classificado como uma pandemia no dia 11 de março pela Organização Mundial da Saúde.
O que a pandemia deve mudar:
Esse período servirá para mostrar que o imponderável pode acontecer
MÁRIO CORSO
Psicanalista
Eventos traumáticos anteriores marcaram o imaginário mundial, deixando como exemplos obras célebres. A Peste Negra inspirou o clássico Decameron, de Bocaccio, enquanto o Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel Garcia Márquez, tem como painel de fundo outra epidemia. Desde o agravamento da covid-19, A Peste, de Albert Camus, voltou à lista dos mais vendidos por abordar essa temática.
O novo trauma provocado pelo coronavírus, com impacto social e econômico inédito para essa geração, também deverá influenciar a produção cultural ao longo dos próximos anos ou décadas.
— Para geração atual, esse período servirá para mostrar que o imponderável pode acontecer — avalia o psicanalista Mário Corso.
Outro efeito será a necessidade de recuperar um nicho da economia marcado pelo fechamento generalizado de teatros, cinemas e afins.
Ainda é difícil antever que tipo de mudanças comportamentais a atual pandemia vai provocar, até porque ainda não se pode estimar sua dimensão final. Mas alguns termos até então sem uso, como distanciamento social, já se tornaram correntes e poderão ter efeito mesmo depois de passado o período agudo da covid-19 — estabelecendo novas práticas com menos proximidade individual.
O psicanalista Mário Corso acredita que a crise atual também poderá aumentar a preocupação com hábitos que preservem a natureza para evitar riscos decorrentes de contaminações por vírus, mas também de mudanças climáticas.
— Estamos vendo que a natureza pode nos trair se entrar desequilíbrio. Vírus podem se proliferar pela nossa proximidade excessiva com os animais — avalia Corso.
Preconceito e restrições
A responsabilidade por outras pandemias foram atribuídas, por parte da sociedade, a determinados grupos convertidos em bodes expiatórios, como judeus e leprosos (no caso da Peste Negra) ou homossexuais (visados no surgimento do HIV/Aids). A facilidade de contágio promovida pela globalização, na opinião do doutor em Antropologia Social e professor da UFRGS Jean Segata, pode levar países desenvolvidos a aproveitar o pânico causado pela disseminação vertiginosa do coronavírus para amplificar restrições nas fronteiras a acessos de populações tradicionalmente mais sujeitas a discriminação como asiáticos, latino-americanos ou africanos.
Saneamento e higiene
Contaminações massivas, mesmo antes da descoberta de que as doenças são provocadas por organismos como vírus e bactérias, levaram a uma crescente preocupação com hábitos de higiene e limpeza nas cidades. A ocorrência da febre amarela no Brasil no século 19, por exemplo, estimulou uma série de medidas de saneamento. Parte delas acabou tendo caráter discriminatório: cortiços foram derrubados no Rio de Janeiro, e a população foi transferida para áreas periféricas. Mais recentemente, pandemias de gripe estimularam o uso de álcool gel e máscaras, principalmente em países asiáticos. Agora, esses hábitos deverão ser intensificados, além da disseminação de práticas de etiqueta respiratória.
Um dos efeitos mais positivos provocados pela recorrência de doenças de larga escala foi o estímulo a um sistema global de saúde, hoje capitaneado pela Organização Mundial da Saúde, com cooperação entre profissionais da área e cientistas, além da padronização de protocolos. Esse sistema ganhou força com a pandemia de gripe A e deverá sair ainda mais reforçado da crise do coronavírus. A doutora em Psicologia Social e professora da Unisinos Marília Veríssimo Veronese acredita que outra consequência será a revalorização de sistemas de saúde pública como o SUS, no Brasil.
— Um dos problemas das últimas epidemias é que esses sistemas têm sido enfraquecidos ou subfinanciados nas últimas décadas. Será preciso investir na securitização da saúde e na cooperação global — avalia Marília.
Papel do Estado
Uma das discussões que deve ganhar força passado o período mais crítico da pandemia é a do papel do Estado na economia, na prestação e na regulação de serviços. No Brasil, a emergência provocada pela covid-19 já levou à flexibilização das regras de responsabilidade fiscal. Em um segundo momento, é possível que o Estado tenha de ampliar ainda mais seu papel como indutor de recuperação econômica e desenvolvimento.
— O livre mercado é muito bom, mas depende de equilíbrio social. Em uma situação dessas, o Estado é quem tem melhores condições para tirar a economia do buraco. Na Europa, já há quem defenda que os governos assumam companhias aéreas — avalia o economista especializado no setor público Eugenio Lagemann.
Relações de trabalho
O atual estímulo ao trabalho remoto deve se refletir na ampliação desse tipo de relação laboral mesmo após a crise da covid-19.
— Muita gente deverá colocar na balança o custo com transporte e, em termos de segurança, de alguém doente contaminar colegas que ficarão dias sem trabalhar, e o custo do trabalho remoto — analisa o antropólogo Jean Segata.
Nesse caso, o modelo que privilegia o cumprimento de determinadas horas de trabalho seria substituído por um sistema de metas de produção via trabalho à distância. Outra possibilidade será rediscutir a situação precária de trabalhadores vinculados a aplicativos, por exemplo — atualmente com pouca ou nenhuma margem de segurança em casos como emergências de saúde pública ou crises econômicas agudas.