A pandemia do coronavírus expôs nossas fraquezas, intensificou nossas angústias, acelerou nossa ansiedade e alimentou nossas incertezas. De quebra, a peste tem marcado nossas vidas com chagas, morte e pânico. Pobre ou rico, jovens ou velhos, ateus ou religiosos, não importa. A covid-19 ceifou a gregos e troianos, impiedosamente. Ao mesmo tempo, provocou o caos nas finanças pessoais e globais. Aniquilou empregos, empresas e setores inteiros da economia têm sido impactados pela pandemia.
Nos livros de histórias, seremos referenciados como a geração pandêmica. Mas apesar dessa marca social, como desejamos marcar a nossa trajetória nesse tempo, nessa era? Engana-se quem enxerga nessa narrativa um roteiro pretensamente heroico ou dantesco. Trata-se, na verdade, de como cada um de nós pretende atravessar essa fase. De que maneira desejamos sair desse estranho cenário rumo ao tal mundo novo que se descortinará depois que a praga cessar?
Nessa reportagem há relatos de especialistas na mente humana e também de pessoas que reconhecem como a pandemia lhes impôs um peso extra sobre os ombros. A ideia não é apontar apenas um caminho, mas caminhos possíveis para que cada um encontre a melhor forma de lidar com suas angústias. E esse não é um fenômeno local, aqui de Caxias do Sul. É mundial.
Em recente pesquisa do Instituto Ipsos, encomendada pelo Fórum Econômico Mundial, verificou-se que 53% dos brasileiros reconhecem que sua saúde mental piorou em um ano de pandemia. Nesse ranking dos mais afetados emocionalmente, só perdemos para a Itália (54%), Hungria (56%), Chile (56%) e Turquia (61%).
O resultado contempla respostas de 21 mil pessoas (sendo mil delas no Brasil) de 16 a 74 anos, que foram entrevistadas online, entre 19 de fevereiro e 5 de março deste ano. Cerca de 34% dos brasileiros consultados, considera que sua saúde mental mudou pouco nesse período. E a minoria, 13%, diz que tem sentido melhora no bem-estar emocional.
No final das contas, por mais difuso que pareça, as dores da alma têm muito a ver com a forma como lidamos com o tempo. Pois angústia tem sintonia com estreiteza, com aniquilação de espaço ou de tempo, ou ainda, com a falta de algo, ou de alguém. Da mesma forma que a incerteza tem a ver com a falta de convicção, que pode se referir tanto a dúvida com o dia seguinte ou se haverá tempo futuro para realizar tantos sonhos. Sobretudo em um período em que tantos sonhos têm sido ceifados.
No romance Lavoura Arcaica, lançado há 46 anos, o autor Raduan Nassar escreveu: "O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim".
Dar sentido ao absurdo
Há mais de cem anos, a pandemia da gripe espanhola trazia de volta à cena o horror de um passado de pragas e pestes, que assolava a humanidade com parcos recursos científicos e medicinais. O tempo avança e coloca em cheque um artista visual, em pleno século 21, em um apartamento central de Caxias do Sul. Isolado com a namorada Clariana Fioreze, Vinícius Guerra, aos 40 anos, estava diante de uma cruzada particular. Produzir o que, para que, se não se sabe quando será possível expor suas obras ao público?
Apesar da ansiedade, uma fagulha de inquietude fez com que ele retomasse a ideia de tocar um projeto que havia deixado em segundo plano. Em 2019, Vinícius havia feito um ensaio ainda tímido, dessa travessia do artista em busca de suas origens, em uma viagem de pesquisa em Montevidéu, cidade para onde migraram Estanislawa e o marido Juan Rudzewicz, depois de saírem da Polônia. Mas o projeto, na época de um documentário, não prosseguiu, porque Vinícius não se sentia confiante.
Então veio a pandemia do coronavírus, e o tempo de isolamento e de incertezas, que realmente estava lhe deixando perturbado emocionalmente, acabou servindo também de ligação entre as gerações. Ao contemplar uma fotografia antiga, em preto e branco, único registro da sua bisavó Estanislawa Hermman Rudzewicz, segurando no colo o filho Estanislau, com poucos meses de vida, Vinícius percebeu que era tempo de realmente mergulhar nesse mar de memórias turvas da família.
— Quando me percebi vivendo em isolamento tive um insight e me dei conta de que estamos vivendo o mesmo temor que minha família viveu há mais de 100 anos. Porque a minha bisavó Estanislawa morreu de gripe espanhola. A foto que mostra ela segurando meu avô no colo, provavelmente é de 1917. Então comecei a resgatar, de forma consciente esse projeto — explica Vinícius.
A exposição Poeira das Memórias, com curadoria de Cristine Tedesco, que envolve pinturas, vídeos, fotografias e objetos, será apresentada entre os dias 1º e 30 de julho, no Museu do Imigrante, em Bento Gonçalves.
— Durante a pandemia tu viu como explodiu o consumo de álcool? No meu caso, eu fui pra pintura, usei muita tinta — brinca Vinícius.
Para o artista, não há um lado bom da pandemia, mas reconhece que dentro do seu exílio no atelier, conseguiu resignificar esse tempo.
— Tem sido frutífero para a minha sanidade, para a minha saúde mental. Acho que consegui dar um sentido a esse absurdo. A saúde mental equilibrada é isso, poder amarrar os tempos do presente ao passado, trabalhando para em um futuro breve expor as obras — ensina.
Exposição
Poeira das Memórias, de Vinícius Guerra
De 1 a 30 de julho, no Museu do Imigrante, em Bento Gonçalves.
Projeto executado com recursos do Edital Criação e Formação Diversidade das Culturas, Lei n° 14.017/20.
Nomear o indizível
A percepção da maioria das pessoas é a de que os dias têm menos horas, as semanas e meses menos dias, e os anos parecem avançar de dois em dois. A psicanalista, professora e escritora Adriana Antunes, 44, explica que a pandemia acelerou não apenas as tomadas de decisão e a revisão dos processos nas empresas ou antecipou avanços tecnológicos, ela embaralhou a nossa estrutura. Porque, apesar da inércia do nosso corpo, em grande parte focado diante das telas, nossa mente precisa assimilar todas as mudanças, tentando organizar nosso novo cotidiano, com angústias que se multiplicam diariamente.
— A angústia sempre existiu, seja do trabalho, do marido ou da morte. Mas a pandemia trouxe a urgência para resolver essas coisas. As pessoas buscam a terapia para conseguir uma resposta rápida. Na psicanálise, por exemplo, vamos aprender a suportar, a lidar com a dor. Porque não tem uma receita, não é como uma lista de supermercado. Cada um vai aprender a lidar e a suportar as suas dores — explica Adriana.
Por ser também escritora, ela desenvolveu uma oficina não com finalidades literárias. Mas para que cada um possa ser o autor da sua própria história.
— Escrever é mexer com nosso suor, com nosso sangue, com nossas lágrimas. É mexer com o que temos de mais humano e primitivo dentro de nós. A palavra, nesse sentido, também como um processo psicanalítico, vem como um sentimento que possa ser nomeado e, por isso, se torna possível de ser suportado — garante.
Adriana ensina ainda que precisamos aprender a discernir o desconforto que sentimos.
— O desconforto revela que algo dentro de mim não está bem. E, a partir do momento em que eu sinto isso, e não consigo lidar sozinho, preciso buscar ajuda. Porque o desconforto não vai desaparecer. A tendência, aliás, é que aumente.
A importância dos grupos de afeto
Um dos elos fundamentais do processo educativo é o afeto. No entanto, a voracidade do contágio do coronavírus impôs novas regras para o relacionamento de alunos e professores. Nesse pouco mais de um ano de enfrentamento da pandemia, as crianças e adolescentes estiveram mais em casa, assistindo as aulas por meio das telas, do que sentados em suas classes na escola.
— Dando aula a partir de casa, a gente não tem o olho no olho. Só que a educação precisa te afetar. E a palavra “afetar” vem de afeto, que se constrói nessa relação olho no olho — explica a professora de história Aline Marques de Freitas, 35, que dá aula em duas escolas privadas de Caxias do Sul.
Aline concedeu essa entrevista antes de o governo do Estado mudar as regras do jogo, a fim de autorizar as aulas presenciais. Mas ela confessa que o afastamento das atividades na escola ao lado dos alunos, não lhe fez bem. Ainda em julho do ano passado, precisou fazer uso de antidepressivos. Além de estar sendo acompanhada por um psiquiatra, acredita que sua fortaleza tem sido o que ela chama de “grupos de afeto”.
— Resolvi fazer dois grupos de afeto. Um com a minha família e, outro, com duas amigas, que conheço há mais de 20 anos. Com minhas amigas, tenho encontros, eventualmente, presenciais, que é o nosso escape — explica.
E complementa:
— Eu diria que os meus grupos de afeto fizeram com que eu conseguisse sublimar minha situação. Mesmo assim, resolvi buscar ajuda médica, porque nem sempre conseguimos sozinho lidar bem com a nossa saúde mental.
Além disso, Aline diz que a pandemia tem lhe ensinado que nem sempre damos conta de tudo. E haja tempo para administrar as demandas que não param de surgir o dia todo, reconhece.
— Aprendi que não preciso ser superprodutiva, temos é que dar conta do recado. Recebo em média uns 100 e-mails por dia, dos alunos, com notificações de tudo que eles fazem na plataforma, além disso, participo de vários grupos de professores. E outro dia perdi uma reunião, mesmo tendo anotado esse compromisso na minha agenda — resigna-se.
Em meio a isso tudo, ela e o companheiro, Mário Tomazoni, ajustaram em suas agendas o compromisso semanal de pelo menos três jantares a dois, sem a interferência de nada, nem ninguém. Um brinde à Aline que tem aprendido que o tempo é o maior tesouro de que alguém pode dispor.
A pulsão da vida
O título dessa reportagem é uma referência à expressão cunhada pela psicóloga e psicoterapeuta Analiz Carmen Zoppas, 60. Ela se refere a nossa geração, dos que estão a viver sob o temor da covid-19, como "sujeitos pandêmicos".
— A pandemia foi um golpe duro no nosso narcisismo, na nossa ilusão de domínio, porque achávamos que dominávamos tudo. A pandemia ainda tem sido um luto na nossa liberdade, ficamos com medo de morrer e com medo de perder as pessoas que amamos. A pandemia fez um sequestro relâmpago em planos presentes e futuros, deixando um trauma em cada um. Se vai ser com maior ou menor intensidade, vai depender da estrutura de cada um — avalia.
Uma das palavras chave dessa pandemia tem sido a reinvenção, reconhece Analiz. E ela precisa atravessar os quatro alicerces das nossas vidas.
— Precisamos valorizar os laços afetivos, familiares, sociais e profissionais. E, por meio da pulsão de vida, descobrir em pessoas próximas, características positivas. Porque durante a pandemia tivemos de fazer muitas renúncias. Mas não podemos renunciar ao amor e ao afeto — ensina.
Essa valorização à vida, por meio das pessoas que convivem conosco, também acaba por ser uma lição de como enfrentar o tempo que nos consome. Raduan Nassar nos provoca a mesma reflexão ao escrever: "pois só a justa medida do tempo, dá a justa natureza das coisas".
Analiz sustenta que, no fundo, só há duas alternativas: seguir o curso da pulsão da vida, ou da morte. Encarar nossos medos, aflições, angústias e incertezas, despidos das vestes de super-heróis, é escolher pela pulsão da vida.
Ou ainda, entendermos que a vida é como nos revela Nassar: "rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo".