"Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças". O verso de Manoel de Barros, no poema Exercícios de ser criança, inspira o leitor a perceber a infância não apenas como a idade da fragilidade, que exige cuidados e tempo de atenção e dedicação. Em um verso, Manoel abre janelas que nos revelam um universo livre, do tamanho do coração de um menino ou de uma menina, cuja alma exala um material tão sensível, que se os adultos souberem desvelar e decifrar, aprenderão a rever a vida com os olhos de uma criança. O olhar delas não vê muros, não vê diferenças, é livre, liberto e, por isso, lírico e lúdico, embevecido de poesia.
Dito isso, é preciso transportar essa vivacidade da infância para o contexto da pandemia. Nesse cenário, as cambalhotas, brincadeiras de pega-pega e esconde-esconde, os risos e gargalhadas, tiveram de ser encaixotados dentro de casa. Para uma criança, ter de ficar em casa, sem o convívio dos colegas da escola, dos amigos e primos, ou seja, dos seus iguais, é como se ela tivesse ganho um presente sonhado e desejado, mas não pudesse tirá-lo da caixa, só poderia observar as figuras da embalagem. Esse é o dilema silencioso, que os pais entrevistados por essa reportagem relataram. Em alguns momentos, com a voz embargada, com sentimentos de culpa, porque está difícil conciliar o trabalho (seja em casa ou fora dela), com as exigências escolares, lúdicas e livres que a infância exige.
Uma casa com crianças deveria ser a metáfora perfeita de um espaço que prima pelo cuidado, pelo afago, pela segurança, enfim, por ser mais do que uma estrutura física, mas um invólucro de amor. Acontece que na pandemia, essa casa tem sido, além de tudo que sempre foi, o escritório dos pais e a sala de aula das crianças. Ah, e também o pátio pra brincar, o parque pra pular e correr. Geralmente esses lares são apartamentos, e feliz de quem tem uma sacada, ou mora em uma cobertura, porque assim pode, pelo menos, simular como é estar ao ar livre.
— Tenho escutado os pais comentarem sobre a restrição dos espaços. Dizem eles, que os filhos ficam sem opção para gastar energia, não só porque há essa restrição, mas também porque já é um espaço conhecido da criança. E tem uma hora, que esses meninos e meninas já exploraram todo esse ambiente e esgota a novidade. Quando esgota a novidade, vem com ela uma ansiedade, que não passa de uma energia contida que não encontra vazão — explica Laina Brambatti, diretora pedagógica.
Essa energia, essa vivacidade, dizem os pais, parece que nunca se esgota. Soma-se a essa percepção, o fato de que nem todos eles puderam desligar-se de suas atividades profissionais e, não raro, aumentaram sua carga de trabalho.
— A maioria dos pais, está trabalhando em casa, pelo menos um deles. E ouço relatos de que não está sendo fácil conciliar a rotina do trabalho, porque são interrompidos a todo instante pelos filhos. Então, muitos desses pais estão trabalhando com culpa, porque, muitas vezes, deixam as crianças na frente da televisão ou de um jogo, para poder seguir com sua rotina profissional. Essa culpa, materna e paterna, aflora por estarem se cobrando por não oferecerem uma atenção verdadeira e integral, e ao mesmo tempo, pela criança ter de ficar um pouco por conta própria — revela Laina.
Os pais que chegaram até aqui, que identificam-se com essa realidade devem estar se perguntando: "O que eu faço pra organizar melhor a vida do meu filho e da minha filha dentro de casa?". Laina sugere que seja estabelecida uma rotina, com horários bem definidos. Isso é importante, defende ela, porque a rotina da escola e do trabalho dos pais, não está mais lá fora, e sim, dentro de casa. Ou seja, para a família adaptar-se a essa nova vida é importantíssimo estabelecer horários para tudo, desde o acordar e dormir, até o tempo reservado para brincar e para trabalhar. Além disso, é importante organizar a casa para a criança, porque, segundo observa Laina, os lares são geralmente preparados para os adultos. Esse espaço de aconchego precisa ter adaptações como bancos para que as crianças usem a pia, e possam até contribuir em atividades domésticas, conforme a idade permite.
A preciosidade, ou a cereja do bolo, como diz Laina, é brincar juntos.
— Os pais podem resgatar as brincadeiras de sua infância e aproveitar para exercitar o corpo correndo pela casa, brincando de esconde- esconde, de caça ao tesouro, quente/frio e dançando. No tempo de brincar juntos, é importante que seja divertido para ambos.
ENTRE PAIS E FILHOS
A seguir, Laina Brambatti, diretora pedagógica da escola Cataventura, sugere atividades para serem realizas entre pais e filhos, para diminuir a ansiedade das crianças. Há ainda dicas de como organizar melhor o tempo, a fim de que pais e filhos passem um tempo de mais qualidade juntos.
- Cada membro da família deve ter um momento especial para si, se permitindo um tempo a sós ou, no caso das crianças, um momento onde ela é o centro das atenções.
- Estabelecer claramente os inícios e fins das atividades familiares. Isso não se refere a cumprir horários exatos, mas, sim, a manter sequências e rotinas. Exemplo: de manhã sempre há um momento para conversar/brincar, de tarde sempre é momento de trabalho, à noite sempre acontece o banho, a leitura e o descanso.
- A casa precisa ser reinventada para que as crianças sejam contempladas. Geralmente, as residências são organizadas a partir da necessidade dos adultos. É necessário incluir as necessidades da criança organizando os móveis para tenham espaço de movimentação seguro, criando um espaço de brincar na sala, tornando as pias acessíveis através de adaptação ou banco, convidando a criança a participar das atividades domésticas de acordo com sua capacidade.
- Para auxiliar na compreensão das emoções a família pode criar um espaço de relaxamento, com almofadas, fotos, onde cada um coloca um objeto que traz uma boa lembrança. Para crianças é interessante oferecer nesse espaço imagens de crianças expressando diferentes emoções, assim, ela tem um recurso para auxiliar na expressão das suas angústias. Os objetos também podem ser utilizados como ponto de partida para iniciar algum diálogo importante.
- Os pais podem resgatar as brincadeiras de sua infância e aproveitar para exercitar o corpo correndo pela casa, brincando de esconde- esconde, de caça ao tesouro, quente/frio e dançando. No tempo de brincar juntos, é importante que seja divertido para ambos.
Caetano finge ser professor, como os pais
O Caetano é um menino de 3 anos. Nessa fase, já se comunicam melhor, se sentem autônomas, e parecem captar tudo que os pais falam. Agora, imagine essa inquietude toda, em casa, sem a convivência e as trocas importantes que estaria fazendo na escolinha, em meio a rotina de pais que são professores e estão dando aula virtual. Quando perguntados pela reportagem qual estava sendo o maior desafio em lidar com o Caetano, Daniel e Maira se entreolharam, inspiraram e silenciaram por três ou quatro segundos, que pareciam uma eternidade. Então, muito cavalheiro, Daniel disse a Maira:
— Quer falar primeiro?
Antes que Maira pudesse falar, Caetano interrompeu. Os pais haviam colocado ele em frente ao computador, próximo a eles, para que pudessem, conceder a entrevista, por vídeo chamada, enquanto pudessem ficar com um olho no repórter e outro, no filho.
— Tá vendo? É assim o tempo todo — desabafa Daniel Dutra, 40 anos, professor de história do Colégio São José.
Caetano observa a tudo, o tempo todo. Em meio a uma rotina que precisou ser estabelecida e que invariavelmente sofre ajustes, conforme há maior ou menor exigência profissional, Caetano chegou a simular que também era um professor.
— Por um tempo, quando eu estava preparando as minhas aulas, ele ficava do meu lado, com um computador de mentira, preparando a aula dele. E à noite, ele nos dava aula. Era assim, terminava a nossa rotina, inclusive com o banho dele, e ele nos levara para o quarto dele. Ele explicava que ia ser pelo Google Meet, fazia a chamada e nos dava aula. Aí percebemos que ele havia ser tornado um espelho da gente — conta Dutra.
Com o sentimento à flor da pele, Maira revela como se sentiu quando se deu conta de que precisaria lidar com os papéis de mãe, esposa e professora.
— Eu repensei a maternidade. Eu me perguntava se eu seria capaz de dar conta do Caetano, do trabalho e da casa, no mesmo espaço. Porque, quando fomos informados pela nossa escola e do Caetano, que mudaria toda a nossa rotina, eu trouxe pra casa, além do meu filho no colo, os meus alunos do São José e a Cataventura, onde ele estuda — explica Maira Miotto, 42, professora de língua espanhola.
Daniel expõe um sentimento que tem afetado a maioria dos pais: a culpa.
— Eu digo que tem sido um tempo de me sentir cansado e culpado. Porque é basicamente como nos sentimos em relação ao Caetano. No trabalho, somos muito cobrados, mas em algum momento podemos compensar…
— Mas a atenção ao Caetano, é difícil de compensar em um outro momento _ complementa Maira.
O casal diz ter a consciência de que são privilegiados, porque moram em um apartamento térreo, com uma área externa. Mas nem por isso, ficaram imunes a toda essa carga sensível que aflora, sobretudo quando estão à sós, e podem rever como foi o dia. Maira compartilha uma cena que sintetiza os dilemas desse tempo pandêmico que expôs as realidades de uma forma, por vezes, cruel. Em dias de calor, diz Maira, ela consegue levar o filho pra andar de bicicleta, próximo de casa, numa área de terrenos baldios. Essa saidinha é importante para o Caetano, mas também, para o Daniel, para que ele possa ficar mais focado na preparação das aulas para o ensino médio.
— Numa dessas minhas voltas, nunca mais vou esquecer, paramos no pé de uma árvore de ameixa silvestre, e encostei a bicicleta. Estava descendo o carro do gás e, me chamou a minha atenção, porque vi ai lado do motorista, duas crianças, que, acredito, eram os filhos dele. E vi uma das crianças debruçada na janela, muito cansada. Enquanto eu tenho a oportunidade de dar ao Caetano a atenção que ele merecia, aquelas crianças tinham de sair com o pai para vender gás.