Professor titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o psicólogo porto-alegrense Christian Kristensen, 52 anos, atuou como consultor em um comitê formado por especialistas para orientar e revisar um relatório conduzido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o impacto da pandemia na saúde mental. Uma das principais conclusões destacadas no documento é o aumento de cerca de 25% nos quadros de ansiedade e de depressão.
A partir da experiência clínica e como pesquisador, Kristensen fala, nesta entrevista, sobre outras consequências da crise sanitária do coronavírus, como a sobrecarga dos serviços de saúde e repercussões futuras.
– Não é que estejamos todos no mesmo barco. Estamos todos no mesmo oceano, mas em barcos diferentes. Algumas pessoas têm mais recursos para lidar com isso do que outras. Ainda que a pandemia afete todos, não afeta todos da mesma forma – reflete o psicólogo.
O impacto da pandemia na saúde mental foi muito severo. O que se pode destacar nesses mais de dois anos?
O principal é compreender o impacto da pandemia em dois polos: ela levou a uma enorme demanda por questões de saúde mental e impactou na oferta, nos serviços existentes para atender a essa demanda – negativamente, no sentido de afetar o funcionamento da maior parte dos serviços de tratamento para saúde mental no mundo. É a tempestade perfeita: um aumento enorme da demanda e um impacto tão grande quanto na capacidade de atender essa demanda. Pessoas começaram a ter problemas de saúde mental em função da pandemia e outras tiveram agravamento de uma condição pré-existentes. No início, quando ninguém sabia muito bem com o que estávamos lidando, como as formas de contágio, houve aumento significativo de ansiedade, medo, preocupação, sintomas obsessivo-compulsivos. Com as medidas de distanciamento e isolamento, redução das atividades e das relações sociais, teve uma alteração importante na rotina e – consequentemente – nas questões mais ligadas à depressão. O relatório mostra que houve aumento em torno de 25% nos quadros de ansiedade e de depressão no mundo. Esses dados são mais confiáveis em países desenvolvidos e menos confiáveis em países em desenvolvimento, mas não há razão para pensar que isso seja menos prevalente.
Que outros fatores foram preponderantes? Adoecimento, morte de familiares, perda de renda, mudança de padrão de vida, falta de perspectivas... Você vê momentos bem marcados ou tudo foi se misturando?
É como se fossem tintas que foram se misturando. As questões de medo e suas variações, ansiedade e angústia, estavam mais presentes no início. Depois, à medida que ficamos tendo mais conhecimento sobre como se dava a transmissão, as pessoas foram se habituando. Temos um mecanismo de habituação ao medo, que foi diminuindo. Mas as medidas de isolamento e distanciamento levaram a alterações na rotina das pessoas com impactos diferentes em diferentes grupos etários. O impacto foi muito pesado para idosos, e segue sendo assim, e também para as crianças em idade escolar. Ainda é difícil mensurar o efeito disso na vida delas. Óbvio que uma criança que estava em um colégio particular que, em uma semana, começou a ter aula integralmente online e tudo funcionou é muito diferente do impacto para uma criança que passou 2020 inteiro sem ter aula. Não é que estejamos todos no mesmo barco. Estamos todos no mesmo oceano, mas em barcos diferentes. Algumas pessoas têm mais recursos para lidar com isso do que outras. Ainda que a pandemia afete todos, não afeta todos da mesma forma.
O atraso no acesso a tratamento e acompanhamento pode ter representado consequências a mais?
Sim, e isso é muito evidente. Temos um agravamento dos pacientes com quadros crônicos de transtorno mental pré-existentes ao início da pandemia. Em geral, houve agravamento importante na saúde mental dessas pessoas pela dificuldade de acesso e pelas alterações que você comentou, como perda de emprego, diminuição de renda, estresse aumentado, diminuição dos vínculos e das relações interpessoais. Tudo isso impactou enormemente os quadros de doença mental já existentes.
Quem foi mais abalado: aqueles que já sofriam de algum problema de saúde mental ou os que não tinham nenhum comprometimento anterior e acabaram desenvolvendo um transtorno?
É difícil mensurar o tamanho do efeito. Mas, se pensarmos que teve um aumento de quase 25% nos quadros de ansiedade e depressão, estamos dizendo: havia uma parcela grande que não tinha, previamente à pandemia, esse tipo de doença mental e agora se apresenta com problemas clínicos importantes. Ainda não conseguimos avaliar corretamente o efeito em crianças no longo prazo, no desenvolvimento. A pandemia não acabou, ainda que decretos sugiram diferente. Elas estão experienciando essa situação.
Experienciar algum grau de adversidade, de dificuldade, nos move para o crescimento, nos desacomoda. É importante para desenvolver habilidades e competências internas para lidar com aquilo.
Essas repercussões podem surgir bem mais à frente?
Sim, seguramente. Talvez agora estejamos começando a entender um pouquinho melhor os efeitos disso do ponto de vista de transtornos mentais, dificuldades de aprendizagem. Um ponto importante é a alfabetização, também a exposição à matemática. Sabemos que, se a criança não é formalmente exposta à matemática em determinado período, seguirá com prejuízos ao longo da vida. E o buraco vai ser muito maior daqui a pouco quanto ao chamado luto complicado (quando o período de luto se prolonga e se mostra mais difícil do que o esperado) para enlutados que tiveram suas perdas familiares no período da covid-19 ou por causa da covid-19. Estamos começando a olhar mais atentamente um estudo: há uma imensa chance de que teremos uma imensa quantidade de pessoas passando por luto complicado.
Mesmo em relação a casos do início da pandemia, ocorridos há mais tempo?
Sim. Por conta da dinâmica que a covid-19 impôs em relação a hospitalização, isolamento e rituais de despedida. Na hospitalização, muitas vezes, havia situações em que a pessoa levava o familiar para a emergência e, a partir de lá, já não tinha mais nenhum contato com ele. Ainda que pudesse ter a televisita, com videochamadas, é óbvio que não teve o mesmo efeito de você acompanhar pessoalmente. A doença tinha um curso muito rápido e um ritual de despedida sem pessoas, sem contato. Isso aumentou os fatores de risco para um processo de luto patológico. Temos estudado o transtorno de luto prolongado. Estimamos que haverá um percentual muito grande de pessoas com dificuldade no processo de elaboração do luto. O luto é normal, não tem que intervir. Tem que intervir quando se torna patologia, problema.
Quais são os alertas de luto complicado para quem perdeu familiares e amigos durante a pandemia? Que sinais a pessoa dá de que precisa de acompanhamento especializado?
Antes de seis meses, é inviável fazer o diagnóstico. Tem todo o processo de elaboração que é o luto normal. Passados seis meses da perda, (no luto complicado) a pessoa segue com uma reação muito persistente e ainda tem uma dor emocional intensa. Às vezes, culpa, raiva, tristeza, dificuldade muito grande para aceitar. Continua com preocupações muito fortes, persistentes, em relação a quem faleceu, uma saudade muito intensa. Tudo isso junto, gerando sofrimento e impactando a vida, a funcionalidade: dificuldade para fazer sua atividade de trabalho, nas relações interpessoais, na vida acadêmica. Esse conjunto é reconhecido na CID-11 (Classificação Internacional de Doenças) como transtorno de luto prolongado. Tem outro manual diagnóstico, o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), em que, na revisão de texto, reconheceram esse quadro, mas colocaram uma cláusula de pelo menos 12 meses.
É mais comum alguém alertar a pessoa que está passando por luto prolongado do que ela se dar conta sozinha, não é?
Com certeza, é o mais típico. A pessoa está imersa naquele sofrimento e pode não perceber o prejuízo que está tendo na sua própria vida. Alguém que está de fora tem mais condições de ver isso.
Cada um enfrentou uma pandemia a seu modo. Sãos os “barcos” diferentes no mesmo “oceano”. Isso significa que as formas de superação também serão únicas. Como lidar com isso, uma vez que vivemos e interagimos em diferentes espaços?
De fato, não dá para padronizar. Os recursos internos e externos que as pessoas têm são muito diferentes. É um evento diferente para cada pessoa, muito mediado pela percepção do que está acontecendo e pela percepção de cada um sobre os seus recursos internos e externos para lidar com isso. Vimos um enorme aumento nos casos de violência doméstica e contra crianças, separações, divórcios. Claro que, como um todo, foi e está sendo um evento gigantesco que vai marcar as gerações que passaram por isso. Ainda que seja um evento único, é muito particular para cada um de nós. As questões do mundo do trabalho são bem evidentes e tocaram todos. Muitas pessoas que não tiveram alterações na rotina e precisaram seguir com suas atividades presenciais, pela natureza de suas funções, passaram também por momentos de muita angústia porque não podiam não se expor, dependiam daquilo para viver e, muitas vezes, sustentar seus familiares. Vejo profissionais que tiveram alterações em suas rotinas com certa dificuldade de retomar o funcionamento anterior à pandemia. Muitas pessoas também começaram a se dar conta: afinal, qual o sentido de eu precisar me deslocar, usar uma hora e meia do meu dia no transporte público, para um trabalho que poderia fazer de outra maneira? Vejo isso com muita frequência no consultório. É uma preocupação meio global. As pessoas se deram conta de que a vida não precisa ser daquele jeito. A pandemia nos jogou em um outro modo de viver, e acho que não vai voltar a ser o que era. Muitos até se perguntaram qual é o propósito do que estão fazendo. Infelizmente, poucas organizações se deram conta disso. Em certos países, há uma dificuldade grande para conseguir pessoas para trabalhar em determinadas atividades. Elas se deram conta de que a vida pode ser diferente de ficar o dia inteiro em um cubículo, numa sala fechada. Tem sido importante repensar isso. Há situações em que as empresas forçam o retorno, e algumas atividades só se justificam se houver algum retorno presencial, se não alguns cargos e posições dentro de uma empresa nem se justificam mais.
Você falou sobre os recursos de adaptação, e penso como é incrível a capacidade do ser humano de se adaptar a situações adversas. Isso parece ser um alento – não que a gente tenha que se conformar com tudo, mas esse recurso adaptativo empurra para a frente também, não é?
Sim. E experienciar algum grau de adversidade, de dificuldade, nos move para o crescimento, o desenvolvimento, nos desacomoda. Isso é importante. A gente aprende, se desenvolve, cresce mais na dor do que na alegria. Mas é claro que essa capacidade adaptativa tem um limite e uma variação individual importante. Nem todo mundo consegue se adaptar a qualquer situação. Começam os quadros de doenças mentais quando há uma falha nesses mecanismos de adaptação e a pessoa, para sobreviver, acaba desenvolvendo um jeito de funcionar pautado pelo sofrimento, pela disfuncionalidade.
Fale um pouco mais sobre isso: “A gente cresce mais na dor do que na alegria”. Por quê?
Primeiro, porque nos desafia mais. Algum grau de sofrimento é importante para você desenvolver habilidades e competências internas para lidar com aquilo. Por exemplo, estudo muito o estresse e o estresse pós-traumático. Quando há um grau grande de desafio, isso leva você a desenvolver recursos internos muito importantes para lidar com adversidades maiores na vida. Estamos falando aqui dos desafios toleráveis, possíveis de serem manejados. Para uma criança na infância inicial, começar a lidar com autonomia e independência na alimentação é um enorme desafio. Temos estudado o crescimento pós-traumático, que é quando as pessoas passam por uma situação estressora, potencialmente traumática, e saem dessa situação positivamente modificadas. Não é sofrer menos. Você sofreu, mas conseguiu achar algum propósito nisso, ter um significado para isso.
A pandemia nos jogou em um outro modo de viver, e acho que não vai voltar a ser o que era. Muitos até se perguntam qual é o propósito do que estão fazendo. Infelizmente, poucas organizações se deram conta disso.
Essa elaboração, essa conclusão, tirar um ensinamento desses episódios, isso é que permite ir adiante?
Sim, seguramente. E também ter algum grau de aceitação de que você não está vivendo uma situação normal. Algum grau de ansiedade, apreensão sobre o futuro, sentir-se eventualmente triste... Todo mundo olha as notícias, temos centenas de milhares de mortos no Brasil, é óbvio que você não vai ficar indiferente. Ter algum sofrimento em relação a isso e entender que faz parte do momento que estamos vivendo é importante. Entender e aceitar. Aí temos que diferenciar o que é sofrimento de um quadro de doença mental. Essa pessoa aqui tem algo, não está nada bem, precisa de intervenção, de ajuda.
Uma das suas principais áreas de interesse e atuação é a do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Como isso se relaciona com a pandemia? Foi trauma para alguns? Pode-se falar em trauma coletivo?
É uma questão acadêmica muito quente. Tem posições diferentes. É claro que a pandemia é um evento global e estressor. Para muitas pessoas, é um evento estressor potencialmente traumático, mas não para todo mundo. Aquilo que você falou antes: é uma pandemia para cada um. Tem TEPT decorrente da pandemia de covid-19, isso aumentou? Sim, aumentou. Os eventos relacionados à covid-19 claramente estão associados com mais sintomas de TEPT. Mas tem uma diferença em regiões do mundo onde isso acontece. Basicamente, parece ter uma relação: quanto maior foi o impacto da covid-19 em determinado país, maior tem sido o impacto do ponto de vista do prejuízo da saúde mental. Quando isso se torna um evento estressor potencialmente traumático, associado ao TEPT? Quando há situações como a perda de alguém próximo, ameaça física. Mesmo que você não morra, pode ter um risco aumentado para o TEPT em função da sua integridade.
Alguém que ficou gravemente doente, por exemplo, muito tempo no hospital, na UTI?
Sim, porque tem uma situação de risco à sua integridade física. Outra situação muito importante: você diretamente passar por isso, com muito estresse e ansiedade, e ter medo de morrer durante uma insuficiência respiratória em decorrência da covid. Ou você ser exposto rotineiramente a casos muito graves de covid, especialmente sem o equipamento de proteção individual (EPI) adequado, e isso vimos com alguma frequência nos trabalhadores de saúde da linha de frente. Isso pode estar associado a mais casos de TEPT.
O que a pandemia nos ensinou? O que foi possível aprender?
Nós deveríamos ter aprendido um maior senso de coletividade. E digo deveríamos porque não sei se, de fato, aprendemos. Estamos todos no mesmo oceano, todos interligados. É algo que começou lá na China e tomou proporção global. E estamos todos interligados porque o enfrentamento disso também é algo coletivo, não só individual. Quando você está se vacinando, não está se vacinando só por você, está se vacinando pelos outros. Esse deveria ter sido, gostaria eu de pensar que tenha sido, o principal ganho. Não sei se foi. Não sei se aprendemos. Vejo as pessoas tão polarizadas, é uma coisa tão maluca. E ficou algo tão ideológico, tão ideológico. Na minha área, claramente, o que aprendemos é que é possível prover atendimento à saúde mental de qualidade a distância. Havia um enorme preconceito antes, e tivemos um enorme ganho nisso. É possível fazer telepsicoterapia de excelente qualidade sem ter prejuízo mais importante ou sem dever nada à psicoterapia presencial. É claro que tem alguns aspectos do presencial que, a distância, você não consegue, mas pode fazer algo muito bom. No meu pequeno universo como clínico terapeuta, esse foi o maior ganho, a maior aprendizagem. E veio para ficar.