Passar o dia à espera de um telefonema. Esse é o suplício a que vêm sendo submetidas famílias de pessoas internadas em estado grave em hospitais. As restrições de circulação impostas pela pandemia de coronavírus abalaram fortemente um ponto essencial do acompanhamento da evolução de doentes em unidades de terapia intensiva (UTIs), e, com o agravamento da crise sanitária, também em outros setores: a comunicação entre equipes assistenciais e familiares de doentes.
Com a suspensão completa ou quase total da visitação presencial, os contatos passaram a ser feitos por ligação ou videochamada, até mesmo para informar o pior dos desfechos: a morte. Diante de tantos pacientes, tornou-se inviável para muitos profissionais de UTI dar conta, além das demandas à beira do leito, também da comunicação — essencial, mas que acaba consumindo horas imprescindíveis de trabalho na assistência.
Profissionais de outras áreas e residentes têm sido treinados para ajudar quem está na linha de frente. Em Porto Alegre, um exemplo bem-sucedido é o do Hospital de Clínicas (HCPA), que contabiliza mais de 80 comunicadores engajados desde o ano passado para que se preserve a humanização no cuidado. A mobilização começou na UTI, com médicos, enfermeiros e psicólogos, e foi se ampliando devido à necessidade. Médicos de outras especialidades, com disponibilidade e vontade de auxiliar, foram convidados a se integrar. Receberam material teórico e orientações sobre pontos-chaves e também participaram de chamadas realizadas por colegas mais experientes.
O médico intensivista Cristiano Franke está entre os idealizadores da iniciativa e avalia com entusiasmo a jornada do início da pandemia até aqui. A preocupação central sempre foi manter o bom atendimento aos parentes, apesar de todas as dificuldades.
— É surpreendente a motivação dos comunicadores em poder ajudar, contribuir. Eles se sentem muito bem por poder fazer alguma atividade. E a maioria das famílias, mesmo quando tem uma tristeza enorme, acaba, muitas vezes, agradecendo pelo cuidado que se teve com o paciente — comenta Franke.
Os originários de outras áreas, fora da UTI, acabaram virando multiplicadores e passando adiante os conhecimentos para os recém-chegados. Os membros do grupo não são fixos — há participantes que estão desde o começo, enquanto outros entraram, saíram e retornaram, conforme o decorrer do tempo e as variações de agenda. As ligações são feitas diariamente, inclusive nos finais de semana. A prática se estendeu também à Emergência, setor muito sobrecarregado nos últimos tempos.
O comunicador tem acesso aos prontuários e pode tirar dúvidas com o médico assistente responsável por cada caso. Ao ligar para a família, ele dispõe de todas as informações necessárias e pode conversar a partir de um local tranquilo, sem pressa. Os setores de Psicologia e Serviço Social também são consultados quando necessário.
Lavínia Schüler-Faccini, médica geneticista do HCPA e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), integrou-se ao time em agosto. Pensava que a missão duraria poucos meses, mas a explosão de casos em fevereiro provou que o comprometimento será mais longo. Ela destaca um ponto precioso da atividade: é sempre o mesmo profissional que se comunica com o familiar de referência do paciente, o que possibilita estabelecer laços de confiança em um período de tanta ansiedade.
Geralmente digo: “Para mim é muito difícil, mas tenho que te comunicar uma notícia muito triste”. Informo a hora do óbito, quantos minutos faz. Dou um tempo para ela absorver, se manifestar. Fico em silêncio. Depois falo: “Eu gostaria muito de estar aí e pode te dar um abraço, poder segurar na tua mão”
LAVÍNIA SCHÜLER-FACCINI
Médica geneticista do HCPA e professora da UFRGS
— Fomos treinados para fazer uma escuta acolhedora. Aprendemos muito das famílias. Às vezes, nos perguntam coisas simples: “Ele sente dor? Está acordado?”. Para nós, é óbvio. Para eles, não — conta a geneticista.
Os telefonemas são de 10 minutos, em média, mas há os que se estendem por até 45 minutos. Entre as conversas mais delicadas estão aquelas em que os parentes precisam ser preparados para uma perda iminente, pois não há mais nada que se possa fazer pela pessoa que adoeceu.
— Uma das coisas mais difíceis é esse processo pré-luto. Já tive mais de 10 casos em que precisamos discutir o limite terapêutico. Em todas eles, chegamos juntos à decisão — recorda Lavínia.
Ligar para dar a notícia da morte de um paciente — às vezes de madrugada — é desafiador.
— Sempre é horrível. Quando a pessoa atende, pergunto se pode falar naquele momento, se está em casa, se está acompanhada. Geralmente digo: “Para mim é muito difícil, mas tenho que te comunicar uma notícia muito triste”. Informo a hora do óbito, quantos minutos faz. Dou um tempo para ela absorver, se manifestar. Fico em silêncio. Depois falo: “Eu gostaria muito de estar aí e pode te dar um abraço, poder segurar na tua mão” — relata Lavínia, presenteada com uma cesta de café da manhã pela família de um paciente falecido que afirmou ter se sentido muito bem cuidada.
No Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o modelo de comunicação implementado há poucas semanas, começando pela Emergência, foi inspirado nas práticas do HCPA. Em março, pior mês da pandemia até aqui, ficou impossível dar conta de tudo.
— Entendemos o desespero das famílias. Não conseguimos imaginar o que é ficar em casa sem saber o que está acontecendo. Tínhamos que fazer alguma coisa como instituição e por elas — afirma Danielle Aguiar, médica intensivista e coordenadora médica das UTIs do São Lucas.
Formado por residentes e psiquiatras voluntários, o grupo de comunicadores é chefiado por Lucas de Azambuja Ramos, coordenador do Núcleo de Cuidados Paliativos. A ideia é manter o projeto e aperfeiçoá-lo.
— A avaliação tem sido excelente. As famílias estão sendo acolhidas e sabendo que o seu familiar está bem cuidado. Estamos conseguindo ajudar todas as pessoas — diz Danielle.