O Rio Grande do Sul atingiu, nesta quinta-feira (1º), a marca de 20 mil mortes por coronavírus. Segundo dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES), 20.063 pessoas morreram por causa do Sars-CoV-2 e mais de 850,2 mil se infectaram desde março do ano passado. É como se quase toda a população de Nova Petrópolis, na Serra, tivesse sido dizimada.
A marca de 20 mil vítimas da covid-19 ocorre em meio à constatação de que o Rio Grande do Sul, que já foi referência nacional no combate à pandemia e esteve, entre as 27 unidades da Federação, em 22º lugar no ranking de taxa de mortos por 100 mil habitantes, avançou para a oitava posição. Apenas duas semanas atrás, estava em 14º.
Nesse ínterim, o Rio Grande do Sul deu um salto de 15 mil óbitos para 20 mil, resultado do crescimento exponencial das infecções e do colapso hospitalar. Cada vez mais, o vírus se aproxima de nossas famílias, amigos e vizinhos, apesar de todos os avisos de médicos e cientistas, que clamam pelo distanciamento social e uso de máscara.
Especialistas entrevistados por GZH citam que a alta circulação do vírus entre o fim do ano passado e o início de 2021, as viagens e aglomerações do feriado, o avanço da cepa P1, originada em Manaus, e a briga política entre governo do Estado e prefeituras, ilustrada pelo desentendimento entre Eduardo Leite (PSDB) e Sebastião Melo (MDB) sobre fechar ou não o comércio explicam a piora gaúcha no combate à pandemia nos últimos meses.
— No começo, o Rio Grande do Sul estava muito melhor, mas degringolou rápido de outubro em diante. O erro é técnico, mas motivado por razões políticas: não praticar o isolamento e insistir para reabrir mesmo com cenário epidemiológico desfavorável. Os números estão assim pela nova variante, porque teve muita aglomeração no verão, o que infelizmente continua, pela pressão por flexibilização das medidas, porque o uso de máscara ainda não é universal e porque ainda tem gente que acredita que tomar ivermectina e cloroquina protege — avalia o epidemiologista Pedro Hallal, professor na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e integrante do Comitê Científico do Piratini.
Março termina como o mês mais letal da pandemia: concentra um terço de todas as mortes por coronavírus no Estado. O crescimento é consequência da transmissão descontrolada – muitas pessoas circulam nas ruas com o vírus ativo e contaminam outras, o que se reflete em grande número de hospitalizações e esgotamento do sistema de saúde.
Com hospitais superlotados, cresce a chance de um paciente morrer, mesmo que receba atendimento, já que será recebido em leito improvisado, por uma equipe sobrecarregada e não especializada, sob acompanhamento de equipamentos emprestados de outras alas, não ideais.
— Relaxamos as medidas de distanciamento. A cepa P1 também tem, definitivamente, um papel. Mas há um impacto das disputas entre prefeitos e governador para ter cogestão. Quando a população vê sinais trocados, é um convite à não adesão de medidas de distanciamento. Sem contar que a vacina passa uma falsa sensação de proteção, porque só estaremos protegidos quando o Estado tiver 80% de pessoas vacinadas — avalia o médico epidemiologista Ricardo Kuchenbecker, gerente de risco do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
Relaxamos as medidas de distanciamento. A cepa P1 também tem, definitivamente, um papel. Mas há um impacto das disputas entre prefeitos e governador para ter cogestão. Quando a população vê sinais trocados, é um convite à não adesão de medidas de distanciamento
RICARDO KUCHENBECKER
Gerente de risco do Hospital de Clínicas
Adota compreensão semelhante o médico infectologista André Luiz Machado da Silva, que atua na linha de frente do tratamento de pacientes infectados no Hospital Conceição.
— Ao mesmo tempo em que o Rio Grande do Sul serviu de modelo quanto ao protocolo de bandeiras, temos um gestor municipal e um estadual que não se entendem. Essa dificuldade contribui sobremaneira para o aumento no número de casos porque não adianta ter uma orientação diferente da que o Estado orienta — diz.
Se, no início do ano passado, gaúchos assistiam com medo e espanto às mortes e ao colapso hospitalar na Itália, a realidade estrangeira deixou de ser distante: o Rio Grande do Sul tem hoje uma taxa de mortalidade de 173,5 mortes a cada 100 mil habitantes, muito próxima ao desempenho italiano, de 180,8.
Com a piora, o Rio Grande do Sul também superou a mortalidade de Portugal (165,2), país com população semelhante ao Estado, além de Espanha (161,4) e França (145,6).
As maiores vítimas são idosos de 70 a 79 anos, mas, em meio à retomada das atividades e o crescimento das infecções pela cepa P1, hospitais registram um aumento na internação de pacientes jovens e saudáveis, grávidas e, inclusive, crianças.
Deixamos a situação descontrolar, demorou para tomarmos medidas. A P1 chegou aqui um pouco antes do que em outros Estados. Estamos mais adiantados na curva (da pandemia). Os outros Estados, ao ver o exemplo do Rio Grande do Sul, tomaram medidas mais precocemente
LUCIA PELLANDA
Professora de Epidemiologia na UFCSPA
Uma lupa sobre a situação de municípios jogada pelo Comitê de Dados do Palácio Piratini mostra ainda que as cidades com a maior proporção de mortes por coronavírus são Canoas, Novo Hamburgo, Porto Alegre, Alvorada e Passo Fundo.
— Deixamos a situação descontrolar, demorou para tomarmos medidas. A P1 chegou aqui um pouco antes do que em outros Estados. Estamos mais adiantados na curva (da pandemia). Os outros Estados, ao verem o exemplo do Rio Grande do Sul, tomaram medidas mais precocemente. Além disso, infelizmente aqui surgiu um movimento contra medidas simples, como máscara e distanciamento — analisa a médica Lucia Pellanda, professora de Epidemiologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro do Comitê Científico do Palácio Piratini.
Efeitos da bandeira preta
A bandeira preta, que começou em 27 de fevereiro, já começa a surtir efeitos no controle da pandemia. Após um pico de 10 mil novos casos em 1º de março, o dia 20 teve 2,5 mil novas infecções, muito abaixo das 8,4 mil que aconteceram um dia antes de a bandeira preta predominar no Rio Grande do Sul.
Após completar 28 dias consecutivos com as unidades de terapia intensiva (UTIs) acima de 100% de ocupação, em cenário descrito por médicos como “de guerra”, a lotação caiu, nesta quinta-feira, para 99,8%.
Nas últimas duas semanas, a soma de confirmados e suspeitos para coronavírus em leitos clínicos e de UTI no Rio Grande do Sul saiu de um patamar médio de 8,8 mil internados para cerca de 7 mil na quarta-feira (31) – a queda é mais acentuada nos leitos clínicos.
O número de mortes, o último indicador a sofrer atualização, ainda não teve tempo para melhorar. A média móvel de novas vítimas atualmente é quatro vezes maior do que na segunda onda da pandemia, em dezembro.
— É fato que, nos leitos de enfermaria, houve redução significativa no número de novas internações há pelo menos uma semana. E isso se reflete na ocupação dos leitos de UTI. Mas ainda não dá para dizer que a doença está controlada ou que estamos em queda. Seria irresponsável dizer que a pandemia está controlada no nosso Estado. Até porque houve redução na ocupação das UTIs, mas as emergências ainda têm um grande número de pacientes em ventilação mecânica aguardando leito de UTI — afirma o infectologista André Luiz Machado da Silva.
A aceleração no ritmo das vacinas é a esperança dos gaúchos. O Rio Grande do Sul já vacinou com a primeira dose mais de 1 milhão de pessoas e é o sexto Estado que mais imunizou, proporcionalmente, sua população.
A aplicação deve acelerar ainda mais com a chegada de 645 mil vacinas nos próximos dias, enviadas pelo Ministério da Saúde.
GZH solicitou entrevista ao governo do Estado, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.