Pouco depois de a pandemia completar um ano, o Rio Grande do Sul superou, nesta segunda-feira (15), a marca de 15 mil vítimas por coronavírus. O número foi atingido em meio ao iminente colapso das unidades de terapia intensiva (UTIs), à lenta vacinação e à ausência de coordenação nacional.
Oficialmente, morreram até agora 15.105 gaúchos, segundo os dados mais recentes da Secretaria Estadual da Saúde (SES). E o ritmo da covid-19 em ceifar vidas jamais foi tão rápido quanto neste momento em território gaúcho.
Entre fevereiro e na primeira quinzena de março, morreram cerca de 4 mil gaúchos – no começo da pandemia, foram necessários mais de cinco meses para que isso acontecesse. Só na primeira semana de março, quase 1,2 mil pessoas faleceram.
Na semana passada, um único dia teve um recorde de 210 pessoas mortas por coronavírus no Rio Grande do Sul. É quase o equivalente a uma tragédia da boate Kiss e aproximadamente três vezes mais do que nos dias mais mortíferos do ápice da segunda onda, em dezembro.
O nível de ocupação das UTIs também está alarmante: quase 110% dos leitos gerais estavam ocupados na tarde desta segunda-feira no Estado, levando-se em conta hospitais públicos e privados. Em Porto Alegre, a lotação beirava os 118%, no mesmo período.
Analistas apontam que a cepa P1, descrita primeiramente em Manaus, explica parte da piora nas últimas semanas, mas que a alta circulação do vírus, a normalização das mortes, o discurso do presidente Jair Bolsonaro e a fraca fiscalização de autoridades também contribuíram para a chegada ao atual cenário.
Vale destacar que os primeiros casos da nova cepa apareceram antes da vinda de pacientes manauaras ao Rio Grande do Sul, portanto, o atendimento a moradores do Amazonas não é a causa da piora da epidemia no Rio Grande do Sul.
— Falta de liderança com certeza é a principal razão. Mas não é só isso. Não conseguimos transmitir informação baseada em evidências à população. Falta adesão ao isolamento social, uso de máscara e lavagem de mãos. As variantes que causam mais transmissão também certamente contribuíram — afirma o médico Airton Stein, professor de Epidemiologia e de Medicina de Família e Comunidade na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
As estatísticas mostram que o bom desempenho gaúcho na contenção do coronavírus, conquistado ao longo do ano passado, está virando página do passado. Se já esteve em 23º lugar no ranking dos Estados quando levadas em conta as taxas mais altas de mortes a cada 100 mil habitantes, o Rio Grande do Sul agora está em 14ª, próximo ao Ceará. A piora no ranking ocorre a cada semana.
Em nível nacional, o Rio Grande do Sul já tem a maior taxa de crescimento de novos casos entre todos os Estados na última semana, conforme estatísticas do Comitê de Dados do Palácio Piratini.
— Estamos perdendo o controle. União, Estados e municípios perderam a capacidade de responder de maneira sincronizada. O resultado são sinais trocados para a população, e, obviamente, a adesão às medidas diminui. Não há discussão sobre testar casos e contactantes. Não há dúvidas sobre a importância da restrição de circulação, do uso de máscara e das vacinas, mas tivemos discursos diferentes — afirma Ricardo Kuchenbecker, gerente de risco do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor de Epidemiologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A piora é tão expressiva que, no histórico da pandemia, a taxa de mortalidade a cada 100 mil habitantes no Rio Grande do Sul já é muito próxima à média nacional. Em outras palavras, a situação estadual é muito semelhante ao desempenho do Brasil. E, agora, o Estado passa a se tornar, também, preocupação para o resto do país.
Estamos perdendo o controle. União, Estados e municípios perderam a capacidade de responder de maneira sincronizada. O resultado são sinais trocados para a população, e, obviamente, a adesão às medidas diminui
RICARDO KUCHENBECKER
Gerente de risco do Hospital de Clínicas e professor de Epidemiologia na UFRGS
Stein cita a transferência do hospital de campanha de Manaus para Porto Alegre como demonstrativo de que “a situação está claramente piorando”. Após a melhora do cenário amazonense, a estrutura seria enviada pelo Exército a algum Estado – e acabou chegando ao Rio Grande do Sul.
Para Kuchenbecker, que faz parte do Comitê Científico que aconselha o Piratini na resposta à pandemia, o Rio Grande do Sul também chama atenção por vivenciar o colapso das UTIs a despeito de ter uma estrutura de atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) reconhecida em nível nacional desde antes da pandemia.
Ao longo do último ano, a SES efetivou, junto a hospitais, um crescimento de quase 160% no número de novos leitos de UTI, passando de 900 vagas antes da pandemia para 2,3 mil, hoje.
A expansão do sistema hospitalar não é capaz de dar conta do crescimento no número de doentes graves. A cada 10 novos leitos abertos, são necessários 50 novos profissionais especializados em tratamento intensivo, mas faltam pessoas no mercado de trabalho. Como consequência da sobrecarga de trabalho, hoje, cerca de 75% dos pacientes internados em leitos intensivos morrem.
— O Rio Grande do Sul chama atenção em escala nacional pelo pico de demanda de casos que chegam ao sistema de saúde. Preocupa porque estamos diante de um dos melhores sistemas públicos de saúde do país e pela circulação da P1 em níveis comunitários. Talvez falte a algumas autoridades perceber que, quando uma curva chega ao crescimento exponencial, ela fica absolutamente incontrolável. Ainda vejo descrença das pessoas de que um sistema de saúde no limite significa um aumento substantivo da mortalidade porque não atendemos as pessoas na hora em que precisam — salienta Kuchenbecker.
Além disso, hospitais estão no limite da abertura de novas vagas e à beira do colapso: ao menos três instituições de Porto Alegre fecharam as emergências nos últimos dias.
A situação do RS caminha ao lado da piora da pandemia no país. Outros Estados também chegam ao colapso hospitalar, e o Brasil caminha para uma marca de 300 mil mortes por coronavírus.
Enquanto isso, a vacinação se dá lentamente por conta da demora do governo federal em comprar doses: apenas 1,37% dos brasileiros foram vacinados com as duas doses, segundo dados da Universidade John Hopkins. Em termos relativos ao tamanho da população, o Brasil é o 48º país na lista de aplicação de vacinas.
No Rio Grande do Sul, 825 mil vacinas foram aplicadas (somando primeira e segunda doses), segundo dados do governo do Estado. A população total é de 11,4 milhões de pessoas, e 4,1 milhões de gaúchos fazem parte dos grupos prioritários.
A marca das 15 mil mortes por covid-19 no Estado também se dá em meio à previsão de que o sistema de saúde piore até março e que a situação melhore apenas em abril, mês no qual a bandeira preta ainda deve vigorar, disse o governador Eduardo Leite (PSDB) à Rádio Gaúcha na manhã desta segunda-feira.
— A análise dos indicadores não vai indicar simplesmente que a bandeira preta estará (em vigor) na semana que vem. Estará por algumas semanas, porque o sistema hospitalar está totalmente tomado de demanda por coronavírus. O número de pacientes confirmados com a doença em UTIs era de 800 há um mês. Agora, são 2,5 mil. É uma pressão muito forte. Isso vai significar que o Estado entre, provavelmente, o mês de abril com bandeiras pretas — afirmou Leite.
Analistas, no entanto, temem que a retomada das atividades não permita que o sistema hospitalar se recupere, sobretudo por conta do receio de viagens e aglomerações do feriadão de Páscoa, na primeira semana de abril.
— Devemos observar efeitos semelhantes ao do Carnaval: mobilidade populacional grande, mais aglomerações, mais casos e sobrecarga do sistema hospitalar. Invariavelmente, esse risco estará posto. Quando o sistema chega a 100% de ocupação, ele não consegue suportar. E aí vemos pessoas precisando de atendimento e não recebendo. O sistema mostra que está colapsado — observa Kuchenbecker.
O antropólogo da saúde Jean Sagata, professor do Departamento de Antropologia da UFRGS, reflete que a política de criação de novos leitos de UTI não basta para controlar o vírus.
— Ao aumentar o número de casos e de leitos, você dá a ideia de que a pandemia está estabilizada, quando na verdade ela vem se agravando aos poucos. Com isso, se tem a sensação de que tudo está sob controle — conclui.