Para a realização de uma Olimpíada, uma megaengrenagem logística precisa entrar em movimento a fim de garantir duas semanas de espetáculos em que nada dê errado: são milhares de bolas de tênis, de futebol, de vôlei, além de centenas de cavalos, canoas e equipamentos esportivos deslocados de mais de 200 países até a cidade sede. Sem falar de milhares de reservas em hotéis, comida, bebida e insumos médicos. Tudo isso precisa estar pronto quando os Jogos começam, e será usado em um curto espaço de tempo. Boa parte volta aos locais de origem tão logo as competições acabem, a chamada logística reversa.
Ainda que com ressalvas, alguns especialistas comparam o desafio de imunizar 7,8 bilhões de habitantes do planeta contra a covid-19 à mecânica da Olimpíada. Seringas, agulhas, máscaras, algodão, além do principal – a substância imunizante –, tudo deve chegar ao mesmo tempo ao posto de saúde para que um de nós receba a dose no braço. No caso dos Jogos, a engrenagem só se movimenta a cada quatro anos. Diante da vacina, assim que alguém recebe a primeira injeção, a depender da maioria dos produtos no mercado, que exige a segunda dose, uma contagem regressiva começa de novo.
– Na Olimpíada, não há o problema da segunda dose e não estamos lidando com risco de vida – pondera Antônio Carlos Bonassa, especialista em logística no curso de Administração da ESPM-SP. – A cadeia de suprimentos está relacionada à cadência. Os movimentos de mercadorias que partem de pontos diferentes, no meio do caminho, precisam ser cadenciados para que cheguem juntos ao posto de saúde.
Nas eleições, o Brasil tem experiência em levar 500 mil urnas eletrônicas aos 5.568 municípios brasileiros. Mas nem um processo com esse grau de complexidade, devido à grandiosidade do território nacional, se compara à distribuição da vacina.
– As urnas estão todas armazenadas em um local conhecido, a demanda é conhecida, é um equipamento para cada cada lugar, em um processo logístico conhecido, repetido no pleito anterior. Além disso, as urnas podem chegar com antecedência, sem preocupação com variação de temperatura – observa Bonassa.
Em resumo, por maiores aproximações possíveis, não há paralelo com o que está em marcha para combater a maior crise sanitária em um século. Mesmo em uma guerra mundial, com esforços para envio de tropas e equipamentos bélicos, o desafio é diferente. Embora hercúleos do ponto de vista logístico, pessoas e armas, em um conflito, convergem para o mesmo lugar: o teatro de operações. Situação diferente da vacina, em que os produtos saem de locais diversos e se destinam a milhões de outros pontos.
Até quarta-feira (31/3), pelo menos 577 milhões de doses haviam sido administradas mundo afora – 74 a cada mil habitantes. Com raras exceções, como Israel, Chile, Reino Unido e, mais recentemente, Estados Unidos, a imunização avança de forma lenta. Mesmo em países desenvolvidos da União Europeia, que vivenciaram altos número de casos e mortes e ainda convivem com confinamentos de suas populações de tempos em tempos, o processo patina. Na América Latina, com exceção do Chile, que alcançou 53,26 doses por cem habitantes, nenhum país conseguiu superar as 20 doses por cem. O Brasil, por exemplo, chegava na quarta-feira a 8,57, ligeiramente à frente da Argentina (8,29) e bem atrás do Uruguai (17,74). No mapa-múndi da imunização, disponibilizado pela Universidade de Oxford, a África é um gigantesco território a ser colorido – muitos países estão em branco, sinal de que nenhum braço recebeu uma dose sequer (veja o mapa, com dados atualizados diariamente, aqui). Mesmo nações asiáticas que domaram a primeira onda de coronavírus com testes em massa e rastreamento enfrentam dificuldades. O Japão, que realizará a Olimpíada de Tóquio em menos de quatro meses, aplicou apenas 0,75 dose para cem habitantes.
– Não há a menor possibilidade de produção de vacina para 7 bilhões de pessoas. E, mesmo que houvesse, não há logística para isso. As vacinas que estão sendo distribuídas o são porque a quantidade é pouca. É ridículo o que está sendo ofertado ao mercado. Tanto que só grupos prioritários estão sendo imunizados: profissionais da saúde, idosos... Isso é nada frente ao tamanho da população – diz o diretor da Câmara Brasileira de Logística e Infraestrutura (Câmara Log), Paulo Menzel.
O dirigente, especialista em logística e transporte nacional e internacional, rejeita comparações entre a distribuição de vacinas no Brasil e no Chile, por exemplo.
– É muito fácil distribuir no Chile. Um caminhão percorre de Norte a Sul, por uma estrada. É uma espinha, uma estrada, uma tirinha – afirma, referindo-se ao formato geográfico do território. – Agora, experimenta distribuir vacina no Amazonas, em Santarém (PA), onde são necessários dois dias de barco para chegar.
Outro ponto levantado por especialistas é sobre o percentual da população vacinada para que se atinja a chamada imunidade coletiva. Parâmetros usados em outras epidemias não necessariamente se aplicam à covid-19.
– Imagina-se que 70% (da população imunizada) seria um número protetor, mas reforço que essa é uma nova doença, com um agente diferente das outras – afirma o chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Eduardo Sprinz.
O pesquisador afirma também que esse percentual é relativo. No caso da vacina da Janssen, da farmacêutica da Johnson & Johnson, uma dose já confere proteção entre 65% e 75%.
O professor Alexandre Zavaski, também infectologista e docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pondera que não se sabe se, nesse momento, será obtida a imunidade coletiva.
– É bastante improvável, mesmo com esses índices de vacinação. Esses cálculos mudam muito porque são baseados em vários fatores, desde a durabilidade da proteção até qual o tipo de proteção que a vacina vai oferecer – destaca Zavaski.
Se há dúvidas sobre se haverá condições de vacinação total da humanidade, uma coisa é certa: a vacina é passaporte para a reabertura econômica em um mundo que viveu quedas históricas do Produto Interno Bruto (PIB) em 2020 – no Brasil, despencou 4,1%, o pior resultado em 24 anos. Para o professor de infectologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Alexandre Schwartzbold, há uma correlação direta entre países que vacinaram mais gente, como Israel, e o impacto na hospitalização de pessoas acima de 70 anos:
– Do ponto de vista da geopolítica dos países, a vacinação se acelerou ainda mais em um grupo de nações, principalmente naquelas que já tinham know how em produção, como Rússia, Índia e China, além de países ocidentais, industrializados, como os EUA, que chegaram a comprar e centralizar alguns produtos, como as vacinas da Moderna e da Pfizer. Isso fez com que a Europa se voltasse para outros tipos de vacina, como Oxford/AstraZeneca.
Uma vez que, em geral, reabre primeiro sua economia quem vacina primeiro, os imunizantes se tornaram elemento de competição internacional.
– Sai da crise econômica antes quem vacina mais. Isso está na base das epidemias virais. Sempre se conseguiu atingir mais precocemente a imunidade de rebanho pela vacina e não por imunidade natural, construída a partir da exposição (ao vírus). E isso também coloca o Brasil na vitrine do ponto de vista negativo, por conta do percentual de população vacinada e ao mesmo tempo sem nenhum controle de exposição. A possibilidade de sermos a fonte de muitas cepas virou um problema para o mundo. Talvez fiquemos cerceados de trânsito internacional por um tempo – alerta Schwartzbold.
O professor da UFSM destaca que, no caso da pandemia de H1N1, foi possível reduzir muitas incidências com a vacinação. Com o sarampo, o imunizante teve grande impacto no grau de transmissão. E, em relação à poliomielite, os países passaram a ter certificado de extinção da doença a partir da vacinação em massa.
– O vírus da pólio não encontra novos hospedeiros exatamente porque a gente vacina 80%, 90% da população mais afetada. No caso, mais crianças, e isso produz a imunidade de rebanho – explica.
Uma cadeia complexa: todas as fases do processo de imunização
De acordo com especialistas, uma série de desafios se juntaram no caso da corrida pela vacina, como a falta de insumos, a capacidade de produção limitada, as dificuldades impostas pela chamada “cadeia do frio”, rixas geopolíticas e os obstáculos geográficos. Podemos estar diante do maior desafio logístico da história, apontam.
– A gente não esperava que fosse tão lenta a vacinação, até porque o Brasil teve oportunidades de comprar grande quantidade de vacina e não comprou. E, mesmo as que hoje estão aí disponíveis, a gente vê essa morosidade – diz a diretora da Sociedade Brasileira de Imunização (SBIm), Mayra Moura.
Para a pesquisadora, a principal dificuldade é a capacidade de fabricação das empresas. Para além das questões políticas (a possível rixa entre o Reino Unido e a União Europeia após o Brexit), a AstraZeneca, que fabrica a vacina de Oxford, por exemplo, prometeu entregar para o bloco econômico 90 milhões de doses do produto. Reduziu para 40 milhões e, de fato, só enviou 30 milhões. O bloco diz que há quebra de contrato, mas a empresa mostra o documento prometendo apenas “os melhores esforços razoáveis” para cumprir a meta. Ou seja, nem a própria fábrica tinha condições de dizer se conseguiria atender à demanda.
O gargalo hoje é a produção da vacina. Agora, a AstraZeneca fez parcerias com vários laboratórios. Tem o Biomanguinhos, o Serum Institut, na Índia. isso dá fôlego porque vai espalhando territorialmente a produção.
MAYRA MOURA
Diretora da Sociedade Brasileira de Imunização (Sbim)
– O gargalo hoje é a produção da vacina. – destaca Mayra. – Agora, a AstraZeneca fez parcerias com vários laboratórios para ganhar esse fôlego. Tem o BioManguinhos, o Serum Institut, na Índia. Isso dá fôlego, porque vai espalhando territorialmente a produção.
Também Sputnik V deve ser produzida em uma planta na Argentina, que pode servir de hub para a distribuição da vacina na América Latina, por exemplo. Os desafios da fabricação em massa começam antes da produção. A fábrica precisa receber frascos de vidro, o insumo (ingrediente farmacêutico ativo) e outros componentes para iniciar o processo.
– Alguma dificuldade já começa aqui, porque transportar vidros vazios é basicamente transportar ar. E talvez você não queria “transportar ar” de avião, porque encarece os custos. Então, de alguma forma, é necessário ajustar a cadência de quando o caminhão vai sair com os frascos de algum lugar para chegar à fábrica. É necessário saber o tamanho do lote de vacinas o quanto antes para que o fornecedor de frascos faça a previsão de produção dele para colocar em tempo no caminhão. O problema é que a previsão para a demanda dos imunizantes está sendo “o quanto vamos conseguir fazer”. Isso causa distúrbio porque a previsibilidade é menor – explica Bonassa, especialista em logística.
Junto com os frascos, é necessário que cheguem à fábrica caixas térmicas, etiquetas e sensores para o monitoramento da vacina, uma vez que os produtos precisam estar armazenados a baixas temperaturas. O especialista alerta que há falta de caixas apropriadas no mercado, pois os fabricantes haviam feito uma previsão de demanda para vacinas como BCG, H1N1, sarampo e estão tendo de produzir milhares de recipientes especiais para acomodar os produtos contra a covid-19. Algumas caixas mantêm a temperatura graças à bateria ou precisam ficar ligadas na energia elétrica. Aí começa outro problema logístico. Conforme Bonassa, até o ano passado, o Brasil não tinha – e vários países não têm – tomadas suficientes em portos e aeroportos. Uma alternativa é colocar gelo seco para garantir a temperatura no interior dos equipamentos.
Ficamos no meio da tempestade perfeita: capacidade limitada de produção, problemas geopolíticos de liberação, falta de transporte internacional, regularizações locais, cadeias de suprimentos. é um desafio manter o produto intacto nesse contexto.
ANTÔNIO CARLOS BONASSA
Especialista em logística no curso de Administração da ESPM-SP
– Mas é consenso que não há gelo seco suficiente no mercado. A tendência é que faltem caixas ativas (que têm refrigeração), falte gelo seco ou em gel para as caixas passivas (sem bateria) – diz Bonassa.
Ao chegar ao aeroporto, os produtos precisam passar pela alfândega. Aqui entra um pouco de questões geopolíticas, porque a Malásia estava barrando o envio de luvas, os Estados Unidos seguraram os respiradores que estavam a caminho do Brasil e a China e a Índia barraram por alguns dias a exportação do princípio ativo para a produção de vacina no país. No caso brasileiro, dependendo dos protocolos, a liberação da vacina pode levar mais uma semana.
Os produtos que chegam ao Brasil são concentrados no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, onde há um centro de distribuição do Ministério da Saúde. Desse local, as vacinas são levadas a 27 centros regionais. De cada Estado, são deslocadas para 273 cidades e redistribuídas para 3.342 postos no país.
– E aí o problema se amplifica: a gente começa a atingir lugares muito quentes e onde não há fontes de energia ou mesmo problemas de segurança. E começa a se perder muita vacina – explica Bonassa.
Em Diadema (SP), foram furtadas doses dos produtos. Nos Estados Unidos, uma nevasca levou à perda de produtos porque a energia ficou suspensa por várias horas.
Se tudo der certo e a vacina chegar ao centro de imunização, o ponto final da longa viagem, é preciso ainda que os profissionais de saúde que irão aplicar a dose tenham recebido máscaras de proteção, seringas, agulhas e algodão. De novo, depende-se da distribuição. Um surto de covid-19 na Malásia interrompeu a produção de luvas cirúrgicas. Na China, uma cidade ficou em lockdown, o que levou ao atraso na produção de máscaras. No Japão, até o tamanho da seringa, incompatível com o produto da Pfizer, atrapalhou. Não era possível alcançar o fundo do frasco da substância americana – consequentemente, uma parte do produto se perdia. E era um desperdício gigantesco.
Uma vez que a vacina é administrada, uma nova corrida começa. Dentro de um tempo determinado, que varia conforme o produto, a segunda dose precisa ser aplicada. E deve ser do mesmo imunizante. A logística é que define a regra de aplicação, se as autoridades de saúde locais irão, por exemplo, decidir guardar a segunda dose ou não. Além disso, depois que alguém recebe uma dose, há milhares de máscaras, seringas, agulhas e algodão que precisam ser descartados. Os frascos precisam retornar à fábrica na logística reversa.
– Esse ciclo todo precisa se repetir em 250 países. A cadeia é replicada em todas as nações, com maior ou menor dificuldade – diz o especialista.
O esforço de vacinação contra a covid-19 é diferente em termos de organização de campanhas de imunização anteriores, em que o Brasil têm expertise.
– Quando falamos que estamos preparados porque estamos acostumados, já que fazemos a campanha da gripe, temos de levar em conta que a gente faz porque naquele período se tem todas as vacinas disponíveis, aí você desloca o seu recurso e dá conta. O fato de ter pouca vacina deixou tudo mais confuso, desorganizou tudo. Mas o Brasil está conseguindo usar a rede existente. No começo foi mais difícil, ainda não dava para chegar na ponta, na aplicação propriamente dita, que era muito limitada, mas agora a gente consegue ver o posto de saúde com vacina – pondera Mayra.
– Acabamos ficando no meio da tempestade perfeita: capacidade limitada de produção, tanto das vacinas quanto dos insumos, problemas geopolíticos de liberação em maior ou menor escala, falta de transporte internacional, regularizações locais que acabam sendo mais ou menos permissivas, cadeias de suprimentos locais, que com exceção das grandes economias, 90% do mundo não as têm, questões de segurança, rastreabilidade, energia. É um desafio manter o produto intacto nesse contexto – finaliza Bonassa.