A pandemia dinamitou as bases de um ideal de cooperação e solidariedade mundiais e exacerbou nacionalismos, fenômeno que já estava latente na Europa, com o Brexit, nos Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump, e em alguns países espalhados pela periferia global, como Índia, Brasil, Hungria e Polônia.
No caso da maior crise de saúde pública planetária, a falta de confiança em esforços internacionais, como a iniciativa Covax, da Organização Mundial da Saúde (OMS), leva governos, em especial de nações ricas, a segurarem seus próprios suprimentos de imunizantes - como já havia ocorrido com respiradores e EPIs - e a declarar abertamente rixas com outras nações. Vivemos o império do eu, que, estendido para as relações internacionais, encontra guarida no princípio de que o que importa é "o meu povo" - embora se saiba que um vírus não obedece fronteiras nacionais definidas pelos seres humanos e só estaremos seguros quando a maior parte da população mundial estiver imunizada.
Sucessora da novela do Brexit, a guerra da vacina entre o Reino Unido e a União Europeia (UE) é daquelas que cada um tem um pouco de razão. O país do primeiro-ministro Boris Johnson imunizou três vezes mais sua população do que os vizinhos europeus de quem se divorciou no ano passado: aplicou até sexta-feira 46,79 doses para cem habitantes, enquanto a Europa pena para chegar a 15 doses por cem. Sem as amarras dos acordos que obrigam os governos a negociarem conjuntamente dentro do bloco supranacional, o arquipélago de Sua Majestade negociou, assinou contratos e se tornou a primeira nação do Ocidente a iniciar a imunização, em 8 de dezembro - sem falar que a própria vacina usada pelos britânicos foi descoberta pela prestigiosa Universidade de Oxford, que fica em seu território e é orgulho nacional.
A UE largou atrás - algo que embora não justifique o atraso (o Chile, por exemplo, também começou depois e está à frente inclusive do Reino Unido), ajuda a explicar a lentidão. A AstraZeneca, que fabrica o produto de Oxford, prometeu à UE entregar 90 milhões de doses da vacina no primeiro semestre, depois disse que só conseguiria cumprir 40 milhões _ por fim, de fato, enviou 30 milhões. O bloco diz que há quebra de contrato e que a empresa estaria favorecendo o Reino Unido. A empresa afirma que, no documento assinado, prometia apenas "os melhores esforços razoáveis" para cumprir a meta _ mas não era uma obrigação. Alguém não leu as letras miúdas do documento _ algo tão fundamental até ao se comprar, no crediário, uma batedeira em qualquer loja.
A UE prepara a retaliação. Na quarta-feira, prometeu restringir ainda mais as exportações de vacinas para países fabricantes que já estejam com a imunização avançada. O Reino Unido, por exemplo, recebe carregamentos da Pfizer/BioNtech produzida em plantas de países do bloco. Também não descarta quebrar a patente de vacinas - algo que já foi feito no passado.
Para aprofundar o abismo entre as duas porções de terra entre o Canal da Mancha, as recentes suspensões temporárias das aplicações da vacina de Oxford/AstraZeneca por pelo menos 13 países europeus após relatos de trombose venosa profunda e embolia pulmonar teve mais cara de ranço político do que de decisões baseadas em dados técnicos - tanto que a própria agência europeia de saúde recomendou a manutenção do uso.
Por trás, estão um coquetel tóxico para o exercício da boa vizinhança - e, no caso de uma pandemia, o salvamento de vidas. A UE ainda não engoliu a mágoa do Brexit e entende falta por parte dos britânicos "reciprocidade e proporcionalidade", duas palavras caras às relações internacionais. Mas, no fundo, as autoridades de Bruxelas podem estar apenas buscando um pretexto para o próprio fracasso na vacinação.