Turbulências políticas nem sempre servem como justificativa para inoperância de governos na corrida pela vacina contra a covid-19. O caso de Israel, que lidera o ranking mundial, confirma a tese. O país vive há dois anos uma crise interna que levará a população a voltar às urnas pela quarta vez nesse período e cujo primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, é réu em processo de corrupção.
Polarização e apegos ao poder à parte, Israel já vacinou quase 90% da população. "Também, com 8,8 milhões de habitantes (menor do que o RS) fica fácil", alguém dirá. Mas nações como Suíça, Suécia e Portugal, para ficarmos nas desenvolvidas e com demografias semelhantes, não conseguiram. O Uruguai, que tem 3,4 milhões, sequer começou a imunizar.
No Sul Global, o Chile tem se tornado case de sucesso. Até que o mundo virasse de cabeça para baixo devido à pandemia, em dezembro de 2019, o país vitrine do modelo neoliberal na pobre América Latina era manchete internacional por outro motivo: a explosão social mais grave desde o final da ditadura de Augusto Pinochet.
O estopim era o aumento do preço das passagens de metrô, mas logo as reivindicações se ampliaram para melhoria no acesso à saúde e à educação, com insatisfação com os serviços privatizados, que consomem boa parte da renda dos cidadãos e com a previdência e, no bojo dos questionamentos globais às instituições liberais, com críticas a toda classe política tradicional.
O governo do presidente de centro-direita Sebastián Piñera implementou algumas mudanças, mas os manifestantes querem mais. A pandemia abafou, em parte, os ecos de suas vozes. Na esteira dos protestos, o país realizou um plebiscito, no qual 78% dos eleitores disseram "sim" a uma nova Constituição a ser escrita por uma assembleia constituinte eleita em abril deste ano.
No meio do caos da covid-19, o país que registrava baixos índices de infecção pelo coronavírus, tornando-se modelo internacional de controle da doença, submergiu em junho _ perdia apenas para Brasil e Peru na região, de acordo com a Universidade Johns Hopkins. A crise derrubou o ministro da Saúde e obrigou o governo a mudar a estratégia: passou a exigir um código QR para as pessoas saírem de casa duas vezes por semana e acessarem supermercados e farmácias durante o lockdown, o policiamento passou a ser mais ostensivo nas ruas, com detenção e aplicação de multas a quem não tinha autorização para circular e as quarentenas, que eram por bairro, passaram a ser por município _ para evitar que houvesse migração de uma região sob confinamento para outra, além de toque de recolher entre 22h e 5h. Os mais de 13,9 mil casos diários em 6 de junho caíram para 3 mil um mês depois.
Não dá para dizer que o país virou o jogo ainda - registrava na terça-feira (23) 1,3 mil novos casos em 24 horas. Mas em outro quesito, a vacinação, está anos luz dos vizinhos. Nesse mesmo dia, registrava a aplicação de 16,1 doses por 100 habitantes, à frente de todos os 27 países da União Europeia e atrás apenas de Estados Unidos, Reino Unido, Emirados Árabes Unidos e Israel. O cientista Max Roser, fundador do Our World Data, utilizado pela coluna, classificou em uma rede social o desempenho chileno como "notável".
À agência Reuters, o vice-ministro do Comércio Rodrigo Yánez disse que o país sediou diversos tipos de testes de vacina para obter prioridade no suprimento e usou contatos com parceiros comerciais produtores de vacina que normalmente adquire seu cobre e suas frutas. Adotou o famoso pragmatismo: aproveitou-se dos acordos de livre-comércio para se aproximar dos laboratórios de países que desenvolveram o imunizante, mas não fechou portas por questões ideológicas. Prova disso é que começou a vacinação com o produto da americana Pfizer, mas hoje a maioria das seringas pelas quais os chilenos são imunizadas carregam a vacina da chinesa Sinovac. Também tem contratos com AstraZeneca e Johnson&Johnson. O mesmo sistema de saúde, questionado pelos excessos de privatização, tem experiência extensa com campanhas de vacinação em grande escala, existindo desde 1978 um plano nacional de imunização robusto.
Nem oito nem 80. A pandemia já mostrou que são necessárias readequações, fluidez e mudanças de rumos de tempos em tempos. Pouco mais de um ano depois da maior tormenta política e social em 30 anos, o país volta a ser case de sucesso entre os países em desenvolvimento. O Chile avança. Talvez o governo de Sebastián Piñera não se salve na eleição presidencial de novembro, mas muita gente não ficou para trás.