Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou, com atraso, diga-se de passagem, que a emergência de saúde pública desencadeada pelo coronavírus atingira estágio de pandemia. Foi o marco zero.
Nesse um ano, a ser lembrado nesta quinta-feira (11), a covid-19 mudou o nosso jeito de ser, nossas atividades diárias, mas também alterou as relações internacionais. A pandemia acelerou processos que já estavam engatilhados, escancarou limitações e reavivou fenômenos que, na hiperglobalização, estavam sublimados.
A crise da covid-19 deixou claro os limites da OMS como entidade internacional capaz de articular políticas globais para o combate a problemas de saúde pública transnacionais. Passado um ano da pandemia, o órgão tem se limitado a traçar considerações sobre a situação, a lançar alertas, mas pouco tem feito para diminuir diferenças entre nações com grandes capacidades de combater o coronavírus e aquelas mais vulneráveis.
A iniciativa de distribuição de vacina como parte do consórcio Covax só agora, quando mais de 319 milhões de doses já foram distribuídas, começa a sair do papel. Nem a investigação sobre a origem da covid-19 produziu grandes resultados. Ao contrário, aprofundou dúvidas - se antes, achávamos que o coronavírus havia surgido no mercado de animais silvestres de Wuhan, na China, hoje nem isso a OMS consegue garantir, conforme admitiram os especialistas enviados à cidade chinesa um mês atrás.
E pior: não se pode nem culpar a entidade internacional, símbolo da descrença na multilateralidade do sistema internacional, por inoperância. Ela é resultado das ações dos Estados membros, entre eles financiadores, como os Estados Unidos, que tiraram o corpo fora justamente no ano da maior crise sanitária em um século. Joe Biden tem buscado reparar esse lapso, ao trazer o governo americano de volta à instituição.
O coronvírus avançou de forma distinta mundo afora, com maior ou menor rapidez, dependendo de barreiras geográficas (na África menos do que na Ásia e na Europa), aproveitando-se da globalização e da interconexão mundial (megalópolis muito mais atingidas do que os grotões do planeta) e enfrentando resistência apenas onde a população compreendera a necessidade do distanciamento social e do uso de máscaras - antes da adoção de medidas extremas, como o lockdown.
Também saíram antes da crise países que apostaram na ciência, na testagem e rastreamento em massa de casos, em clara demonstração de que liderança faz a diferença - a Nova Zelândia da primeira-ministra Jacinda Ardern é exemplo.
Na Europa, a covid-19 mudou o comportamento de líderes que outrora defendiam a unidade do bloco. Quando a crise apertou, o ideal europeu foi mandado às favas e o que voltou a valer foi o nacionalismo egoísta, com carregamentos de respiradores e máscaras sendo disputados a tapa em pistas de aeroportos. No aspecto econômico, o bloco discutiu como cobrir o rombo provocado pela pandemia, mas o velho abismo entre os países do Norte e do Sul ressurgiu. Comprovou-se que a solidariedade era apenas palavra bonita em discursos.
Aliás, um ano depois, a corrida pela vacina mostrou que, negociar em bloco, como o faz Bruxelas, não parece ser a melhor estratégia - nações de fora da União Europeia, como o recém-divorciado Reino Unido, ou pequenos países, como a Sérvia, vacinaram mais suas populações do que os "euro addicted" França e Alemanha.
A Europa, aliás, virou campo de teste da influência chinesa no mundo. Com o flanco aberto pela retirada americana - que tradicionalmente liderava o mundo ocidental diante de crises no século 20 -, coube a Pequim se transformar no grande provedor de bens emergenciais: máscaras, luvas, EPIs, respiradores e, agora, insumo para vacinas. O mundo parece ter acordado para a dependência ocidental da China e sobre a necessidade de se rediscutir as cadeias produtivas em um mundo pós-covid.
A pandemia provocou um estrago humano e econômico em países desenvolvidos, mas é devastadora em nações em desenvolvimento, que dependem do trabalho informal. A Índia tentou implantar o maior lockdown do mundo, mas foi obrigada a retroceder quando a medida gerou uma reversão social inédita - da migração das cidades para o campo. Nos pobres México, Peru e Brasil ainda se perde tempo com o debate superado entre salvar a economia ou a vida. Pessoas morrem no meio dessa discussão, ou agonizam nas UTIs.
A pandemia recolocou o Estado no centro das decisões. Governos que se planejaram, contataram laboratórios quando a vacina era apenas um sonho, investiram dinheiro, saíram na frente. Tanto é uma decisão política que Israel, com um primeiro-ministro que é réu por corrupção, contabiliza 102 doses por cem habitantes. Você leu corretamente: tem mais doses aplicadas do que o total da população.
Coisa de país rico, alguém dirá.
Não, o Chile, aqui do lado, também está fazendo bonito.
O que esses 365 dias de tensão confirmam é que a inépcia de governos maximiza mortes - por meio da disseminação de fake news, do desestímulo à ciência, da tergiversação, da briga com governadores e por ego. E a prova de como um governante pode entravar a saúde de uma população é que a saída de Donald Trump do poder só acelerou o processo de distribuição da vacina nos Estados Unidos. Vacina, aliás, que já começa a dar resultados: nações que mais imunizam suas populações, reabrem suas economias mais cedo - e o círculo volta a girar.
Está errado dizer que 2020 foi um ano perdido. Fizemos muito. Sobreviver já foi um ato de resistência e tanto. Mas, como humanidade, também mostramos o quanto evoluímos. Enquanto diuturnamente profissionais de saúde estavam ao lado de pacientes nas UTIs, pesquisadores se embrenharam em pesquisas para descobrir o antídoto que ora é nossa esperança. Nunca tantos deveram tanto a tão poucos. Nunca se desenvolveu uma vacina tão rapidamente. Fosse um século atrás, isso não teria ocorrido - como não ocorreu, com a Gripe Espanhola.
Não sei se o mundo pós-covid será mais colaborativo ou mais conflitivo. Mas, um ano depois daquele anúncio de Tedros Adhanom, imensos desafios estão postos: os abismos entre Norte e Sul, os populismos, os nacionalismos, as desigualdades sociais se escancararam. Mas também nunca foram trocadas tantas informações no mundo acadêmico graças à facilidade da tecnologia que hoje nos permite ver luz no fim do túnel. Há lições a tirar desse um ano. E não são poucas.