A maior tragédia sanitária global não pode nos deixar imunes a dramas particulares de lugares esquecidos do mundo, normalmente relegados ao pé de páginas dos jornais.
A foto acima, cujo autor ainda não consegui identificar (imagino que por razões de segurança seu nome não foi divulgado), registra o momento em que a irmã Ann Rose Nu Twang, usando hábito branco e chorando, se ajoelha, abre os braços em formato de cruz e implora a policiais e militares de Mianmar que parem de atirar contra os manifestantes. Ela está no meio do fogo cruzado.
A imagem, distribuída pelo Myitkyina News Journal, mostra ainda dois policiais se ajoelhando perante a religiosa de 45 anos, repetindo seu gesto. Outros três permanecem de pé, com o olhar desconfiado.
- Eu supliquei que não atirassem, que em vez disso me matassem. Levantei as mãos em sinal de perdão - contou a freira à agência de notícias AFP. - Foi um momento de pânico. Estava no meio e não podia fazer nada.
Talvez você nunca tenha ouvido falar de Mianmar. Trata-se da antiga Birmânia, nação do sudeste asiático que faz fronteira com Índia, Bangladesh, China, Laos e Tailândia. Nos últimos anos, o país que agora é notícia devido a um golpe militar, ficou conhecido por outra tragédia, a dos rohingya - infelizmente, também um tema que pouco apareceu no noticiário internacional.
No caso desse povo sem pátria, que foi corrido de Mianmar para Bangladesh, o planeta pouco se importou. O resultado é uma das maiores crises humanitárias da atualidade, com suspeitas de limpeza étnica.
Pois Mianmar agora é palco de uma tirania imposta por militares. Há várias semanas, as forças de segurança do governo militar que assumiu o poder durante o golpe de 1º de fevereiro têm usado munição letal contra ativistas que denunciam as atrocidades do regime que assumiu o poder após a deposição e prisão da líder Aung San Suu Kyi, Nobel da Paz, e de outros membros do governo.
Mianmar é um país de maioria budista. Mas a ação de religiosos católicos contra a ditadura tem chamado atenção. Cada vez mais, padres e freiras têm se juntado aos protestos em todo o país. Denunciam arbitrariedades por meio de redes sociais ou se colocam no meio do fogo cruzado, como a irmã Ann.
Algo grave está ocorrendo em Mianmar sob o silêncio da comunidade internacional. Nesta quarta-feira (10), veio a público a informação de um parlamentar membro da Liga Nacional para a Democracia (LND), partido de Aung, morreu durante interrogatório após ter sido preso.
A imagem da irmã Ann lembra cenas de resistência civil em períodos de instabilidade: os monges em Saigon, que se imolavam contra a Guerra do Vietnã, o solitário homem que enfrentou os tanques na Praça Tiananmen (da Paz Celestial), na China, o ambulante que colocou fogo ao próprio corpo na Tunísia, deflagrando a Primavera Árabe.
Se gestos como esses não mudam o mundo, ao menos servem para escancarar arbitrariedades, nos desacomodar, nos retirar da inércia, mesmo em tempos de exceção global, como nesta pandemia.