Após o duplo atentado que matou 358 pessoas em Mogadíscio, capital da Somália, há pouco mais de uma semana, comentários inundaram as redes sociais questionando a falta de comoção planetária com o pobre e caótico país do Chifre da África na comparação com a solidariedade que costuma aflorar depois de ataques terroristas em Paris, Berlim, Barcelona, Londres e Las Vegas, para ficarmos apenas em alguns.
A verdade é que não somos todos Mogadíscio. Assim como não somos todos rohingyas.
ROHINGYAS? Não conhece essa palavra? Mais uma prova de que somos seletivos em nossa atenção e, principalmente, em nossa compaixão. Mais abaixo eu explico.
Um exemplo bem concreto: em maio do ano passado, fiquei sete dias em Bagdá. Em todos, houve pelo menos dois atentados terroristas na cidade, alguns bem perto de onde eu havia passado:
Segunda, 9/5 - Três atentados - 17 mortos
Terça, 10/5 - Dois atentados - Três mortos
Quarta, 11/5 - Três atentados - 96 mortos
Quinta, 12/5 - Dois atentados - Cinco mortos
Sexta, 13/5 - Três atentados - 22 mortos
Sábado, 14/5 - Três atentados - Quatro mortos
Domingo, 15/5 - Três atentados - 16 mortos
Somente o ataque de quarta-feira, em Cidade Sadr, região onde morava meu motorista Ali Kahdem, foi noticiado na imprensa ocidental. Mesmo assim, sem muita comoção. Matou pessoas comuns, muçulmanos xiitas que faziam compras em uma feira. O número de mortos foi maior do que o provocado pelo atirador de Las Vegas (60), superior ao do ataque à revista parisiense Charlie Hebdo (12) e ao massacre na casa de espetáculos Bataclán (89). Mesmo assim, não vimos nas redes sociais imagens da bandeira iraquiana como filtro nas fotos dos perfis no Facebook nem a Torre Eiffel teve suas luzes apagadas.
O silêncio global nesses casos rende teses em faculdades de Comunicação e Relações internacionais. Tenho aqui minhas opiniões:
- Não ocorrem em grandes cidades europeias ou americanas.
- Não afetam o turismo e os negócios internacionais.
- A frequência com que ocorrem, infelizmente, banaliza o fato como notícia (tenho um amigo que, a cada bomba que explode no Afeganistão ou no Iraque, questiona: “Ainda tem gente lá pra morrer?)
- Por ser em países pouco conhecidos - ou nos quais a maioria dos terráqueos jamais vai pisar, não cria empatia, ou seja, temos a sensação de que não é conosco, de que não nos afeta.
Voltando aos ROHINGYAS. Neste exato momento, milhares estão em fuga de Mianmar em direção a Bangladesh para escapar da perseguição do governo birmanês. Já são 600 mil a deixar o país, segundo as Nações Unidas, uma campanha de limpeza étnica que, depois dos Bálcãs ou de Ruanda, não imaginaríamos que aconteceria de novo.
Há cenas dantescas, como as descritas pelo repórter Jeffrey Gettleman, do The New York Times:
“Centenas de mulheres paradas no meio do rio, sob a mira de armas, receberam a ordem de não se mexer. Um bando de soldados avançou na direção de uma jovem magrinha de olhos castanho-claros e delicadas maçãs do rosto. Seu nome era Rajuma e, com água até o peito, ela segurava firme seu bebê enquanto seu vilarejo era incendiado.
- Você - disseram os soldados, apontando para ela. Ela travou: Você!
Ela abraçou seu bebê ainda mais forte.
Os soldados bateram no rosto de Rajuma, arrancaram de seus braços o filho que chorava e jogaram em uma fogueira. Depois, ela foi arrastada para uma casa e sofreu estupro coletivo."
Investigadores dizem que os soldados de Mianmar mataram mais de mil civis no Estado de Rakhine. Outras fontes falam em 5 mil. É difícil precisar, porque Mianmar não tem permitido que a ONU acesse as áreas.
Após a II Guerra Mundial, os rohingyas esperavam conquistar a independência ou se juntar ao Paquistão Oriental, hoje Bangladesh (de maioria muçulmana e etnicamente semelhante aos rohingyas). Mas, com intervenção britânica, as áreas rohingya se tornaram parte do recém-independente Mianmar (de maioria budista). As autoridades de Mianmar consideram que o grupo étnico a encarnação de todos os males do país. Solução? Defenestrá-los como pragas.
Ato mais recente da crise: os EUA suspenderam a ajuda militar ao exército de Mianmar. Não é suficiente. Apático, o mundo assiste à maior catástrofe humanitária da década. Silenciosa, como costumam começar todos os extermínios do tipo. Com certeza, o massacre que ocorre lá do outro lado do mundo, com um povo que sequer conseguirmos pronunciar direito seu nome, não irá mudar nossas vidas. Afinal, não somos todos somali, não somos todos iraquianos e, claro, não somos todos rohingyas.