Com estabilidade e emoções colocadas à prova ao longo dos últimos dois anos, falar de felicidade é desafiador – e fundamental. Todo indivíduo é capaz de ser feliz? Pode-se desenvolver a habilidade para isso? A pandemia transformou esse conceito?
Professora de Psicologia e pesquisadora, Carla Furtado, 52 anos, dirige o Instituto Feliciência, centro de educação executiva e profissional sediado em Brasília (DF). Em meio às incontáveis perdas, de diferentes grandezas, impostas pela crise global do coronavírus, ela destaca um aspecto positivo: o período vem permitindo que se fale muito de saúde mental e bem-estar, essenciais para que se possa viver e produzir.
– Felicidade é equilíbrio. Não existem duas pessoas, a que vive e a que trabalha. Tudo é vida – sintetiza Carla.
Felicidade é uma escolha? Uma habilidade? Posso desenvolver a capacidade de ser feliz?
É e não é. A resposta não é simples. Podemos dizer que é uma escolha que está muito depositada nas nossas decisões, atitudes e engajamento com determinados comportamentos quando temos uma vida digna. Isso não serve para todo mundo. É muito perigoso falar de felicidade dessa forma em um país com tanta desigualdade como é o Brasil. Acabamos caindo no risco de dizer que tudo é questão de mérito. É uma escolha? Parcialmente, sim. Temos potencial de interferir nela. A ciência está aí mostrando isso há mais de 20 anos, tanto a psicologia quanto as neurociências, mas não é só isso. Podemos aprender? Podemos. Existem habilidades socioemocionais que, quando desenvolvidas, têm potencial – não é uma receita de bolo – de incrementar nossa percepção de felicidade. Tem um laboratório muito importante na Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, dirigido pelo neurocientista Richard Davidson. Ele destaca quatro habilidades que, quando desenvolvidas, têm potencial de aumentar nossa percepção de felicidade: atenção plena (sustentar a própria atenção e reduzir o julgamento), apreciação da vida, resiliência e generosidade. Interessante é que isso é vendo o funcionamento do sistema nervoso, não é perguntando se a pessoa está mais feliz ou não. Então, podemos, sim, aprender, incrementar, desde que tenhamos uma vida digna, não passando fome, em situação de rua ou de insegurança alimentar. Faço questão de destacar isso, senão incorremos em uma superficialidade de tratamento extremamente injusta. Nós, que somos privilegiados de certa forma, podemos conversar sobre isso e quem sabe aumentar um pouco a nossa percepção de felicidade.
Nossos conceitos de felicidade mudaram durante a pandemia?
Cada pessoa tem a liberdade de dizer o que é felicidade para si mesma. Eu faria uma inferência: para muitas pessoas, sim. Talvez mude por um tempo longo e talvez mude só durante um processo de adaptação às adversidades, e depois a gente volta a ter o comportamento e o pensamento de antes. O que a ciência vai dizer, que acho que vale destacar, é que a felicidade, do ponto de vista da psicologia, pode ser incrementada a partir de dois caminhos – e isso deve ser feito a partir dos dois caminhos, e não escolhendo um ou outro. Podemos nos sentir um pouco mais felizes aumentando nossas experiências com emoções de valência positiva, como a alegria, o orgulho, o amor. Buscamos reduzir um pouco as emoções de valência negativa e aumentar um pouco as de valência positiva. Isso é ótimo para a percepção de bem-estar imediato. Por exemplo: se apreciar o pôr do sol em boa companhia é algo que me traz emoção de valência positiva, posso fazer isso e ter um pouco mais de emoção positiva. É a felicidade hedônica – este é um caminho, o das emoções, e é um caminho volátil. Então não dá para buscar emoção positiva o dia inteiro, todo dia, porque a vida não é assim. Sabemos que coisas que não são agradáveis acontecem e geram emoções de valência negativa. O outro caminho para construir uma vida com mais felicidade é o da eudaimonia, a felicidade eudaimônica, cognitiva, uma construção mental. Aí vamos falar sobre sentido de vida, o propósito, a narrativa que construo. Essa narrativa que construo, olhando para a minha vida e identificando sentido naquilo que tenho, nas minhas buscas, nas minhas relações. Ou propósito, algo muito falado hoje – qual é o meu impacto para além de mim mesmo? O que faço que impacta ao mesmo tempo mais uma pessoa, ou o meio ambiente, ou a comunidade? Então são dois caminhos importantes. O que vimos na pandemia? Vários fenômenos, são várias camadas. Por um bom tempo, quando não estávamos entendendo muita coisa, em um processo de maior resguardo, ficava muito difícil trabalhar o pilar eudaimônico. Era difícil olhar para a frente e falar “o sentido é esse, vou caminhar para cá”. Eram muitas incertezas. No final de 2020, antes de poder compreender que 2021 ainda seria muito desafiador, especialmente no primeiro semestre, já dizíamos para nossos grupos: comecem a levantar a cabeça, olhar o que está acontecendo, olhar para o horizonte de novo, e estabelecer esse sentido de vida para poder trazer um pouco de vigor e vitalidade. Estamos nesse momento de viver mais emoções negativas do que positivas, em termos de população. O que é muito natural, mas isso nos baqueia. Estamos oscilando muito. Isso coloca em xeque a experiência de felicidade de cada pessoa. Aí vai depender das capacidades de cada indivíduo para o enfrentamento.
Fala-se muito em tirar ensinamentos dos momentos difíceis. Essas séries de momentos difíceis fatalmente deixam marcas? Precisam nos ensinar alguma coisa? Ou “basta” sobreviver?
Tudo é possível com o ser humano, que pode crescer, florescer em meio ao sofrimento ou ficar ferido, marcado. É uma minoria de uma população exposta a uma situação muito adversa que vai sofrer de estresse pós-traumático. O teórico Viktor Frankl (psicólogo e psiquiatra austríaco, sobrevivente do Holocausto, autor de Em Busca de Sentido) mostra que, nas situações de muita adversidade, existe o potencial de construção de sentido de vida. O sistema nervoso humano é uma máquina de buscar sentido. Uns mais, outros menos, mas fazemos isso. Carol Dweck, pesquisadora da Universidade de Stanford (EUA), nos provoca a aprender a constituir o sentido na hora da adversidade, não depois. Isso é um aprendizado. Existe o que chamamos de neuroplasticidade, também desenvolvida na adversidade, que é a transformação do sistema nervoso do ponto de vista funcional e estrutural. Fácil? Não, não é fácil. Num primeiro momento, você tem uma carga de emoção de valência negativa, e não se trata de negar. É admiti-la, entendê-la, nominá-la e saber que emoções passam. E depois começar a pensar o que fazer a partir daí. Quais são as minhas competências? Mas é claro que existem dores como o luto e a escassez que precisamos respeitar e não dizer que existe receita mágica.
Há a retomada gradual do trabalho presencial após muito tempo de teletrabalho. Como as empresas e os colaboradores estão lidando com isso?
Observo vários comportamentos diferentes. Há empresas que mandam mensagem dizendo para que as pessoas retornem e ponto final. Há empresas que conversam, pesquisam, vão construir uma forma híbrida. A primeira coisa importante, sem desmerecer dificuldades, é que a gente se adapta. Somos dotados de muita adaptabilidade, é uma característica humana. Nos adaptamos a circunstâncias excelentes e a circunstâncias desfavoráveis. Há pessoas que não vão se adaptar e buscarão outros caminhos. Em termos gerais, as pessoas vão se adaptar. Preciso do trabalho? Posso trocar? Não posso trocar? São decisões pessoais. Mas as organizações precisam ter uma atitude responsável. Há setores que nunca pararam porque precisavam continuar produzindo, funções que não podiam deixar de ser presenciais. E tem muitas funções que podem ser híbridas, e depende de cada organização e de cada trabalhador. O impacto que algumas pessoas sentem não é delas, somente. É um impacto de toda a organização. O medo, o mal-estar, o desconforto, para algumas pessoas, pode conduzir a um transtorno de ansiedade. Cada decisão que a organização toma vai gerar um impacto. O quanto as organizações estão ouvindo as pessoas? Não é para as pessoas decidirem sozinhas, isso não é viável, mas a organização precisa entender e modular sua decisão. Sem dúvida, o trabalho híbrido não vai deixar de existir. É uma realidade que foi acelerada pela pandemia e não vai desaparecer. Fechar os olhos para isso é perder tempo de adaptação. O que vemos, principalmente na área de TI, é que as organizações estão perdendo colaboradores em grande número. Hoje eles são extremamente demandados. Tem que encontrar um meio-termo, entender circunstâncias. É preciso entender que mulheres têm circunstâncias diferentes. Equidade, muitas vezes, é mais importante do que igualdade. Mulheres que são chefes de família, têm atividades em casa, as que são cuidadoras... A economia do cuidado está na mão das mulheres: crianças, idosos, pessoas com necessidades especiais. É importante entender isso e fazer um processo em fases, que não machuque. Todos fomos feridos de alguma forma. Todos tivemos alguma experiência de perda na pandemia. Não é complicado nem exige tanto investimento. As pessoas voltam, mas a capacidade de engajamento, de entrega, depende do estado em que elas estão vivendo também. É o jogo do ganha-ganha. Todo mundo ganha com diálogo.
A felicidade é uma escolha? Parcialmente, sim. Temos potencial de interferir nela. A ciência está aí mostrando isso há mais de 20 anos, tanto a psicologia quanto as neurociências, mas não é só isso. Podemos aprender? Podemos. Existem habilidades socioemocionais que, quando desenvolvidas, têm potencial – não é uma receita de bolo – de incrementar nossa percepção de felicidade.
Tem como ser feliz com chefe que não sabe ser bom chefe?
As relações interpessoais são o fator de maior impacto na felicidade no trabalho, segundo a Universidade de Oxford, em um estudo muito consistente. Já sabemos que as relações têm o impacto mais importante na nossa experiência de bem-estar, inclusive na longevidade. Todas as relações, mas é claro que a relação com o gestor tem um peso maior. Ele determina, toma as decisões, não é simétrica a relação com o trabalhador. Tem estudo neurocientífico que mostra que, quando o trabalhador rememora experiências ruins com seu gestor, ativa o circuito de dor. Isso é pensando no chefe – imagine convivendo com um líder tóxico, que assedia moralmente. A falta de justiça causa muito sofrimento ao ser humano, colocando-o numa área que chamamos de dor social.
Uma pessoa pode ser feliz na vida pessoal e não ser feliz no trabalho, e vice-versa? Ou, em algum momento, as duas esferas se misturam, sem escapatória?
É possível ter uma vida satisfatória ou significativa no âmbito pessoal e não satisfatória no âmbito profissional. Mas, no meu grupo de pesquisa, queremos renovar esse paradigma de felicidade no trabalho. Não existem duas pessoas, a que vive e a que trabalha. Tudo é vida. O convite é para que a organização olhe para o trabalhador de forma integral. Não é que a empresa vá resolver as questões pessoais, mas sabemos que um trabalhador que sofre de insônia crônica não consegue performar. Uma pessoa endividada pode ter impacto em outras dimensões da vida. A ideia é que a organização olhe para a sua população de maneira global e entenda quais são as vulnerabilidades. Não importa se é dentro ou fora do trabalho, porque são essas as pessoas que vêm trabalhar. Esse é o primeiro ponto. Sobre eu e minha vida: não deixamos o trabalho na porta de casa. Mais do que o trabalho, as emoções do trabalho vêm com a gente. E as negativas, infelizmente, nos sensibilizam muito mais. Quando recebemos um elogio, “ah, ok, bacana”, e quando recebemos uma crítica, podemos ruminá-la todo o dia. Precisamos entender que essas emoções impactam a experiência dita pessoal. Falamos cada vez menos em equilíbrio entre vida pessoal e profissional e cada vez mais sobre integração – uma coisa perpassa, atravessa a outra, especialmente no trabalho remoto ou híbrido. Gosto de uma linha recente que diz “nem integração entre vida profissionais e pessoal, só integração de vida”. Olhar para a experiência como única, que tem diversos cenários, e entender que não quer dizer que tudo vá correr às mil maravilhas. Teremos oscilações em qualquer aspecto. Precisamos desenvolver habilidades e amadurecer no sentido de acolher e enfrentar os momentos mais duros.
As empresas estão introjetando isso? Ou persiste a ideia de que é melhor trocar o trabalhador “problemático”?
Não existe uma pessoa robótica que vai se enquadrar em determinado formato e funcionar desse jeito todo os dias, oito, 10 ou 12 horas por dia. Somos seres humanos. Tudo na organização gira em torno de seres humanos. É impossível imaginar como linear a experiência de grupos de pessoas. Isso não existe. Primeira coisa é parar de procurar um colaborador sem problemas, perfeito, porque ele não existe. Há algumas organizações que vão alardear muitas práticas, é muita narrativa e pouca ação, mas vemos muitas organizações fazendo esforços para colocar a bordo esse olhar mais respeitoso. Não é fácil. Vai oscilar, as coisas vão mudar. Pessoas saem, pessoas entram, os líderes circulam. A organização é viva. Mas a pandemia, se abriu alguma porta, foi a da saúde mental, do bem-estar, do equilíbrio mínimo para as pessoas poderem viver e produzir. As organizações mais atentas estão fazendo isso com muita seriedade. Isso tem a ver com uma pauta importantíssima hoje, a da sustentabilidade. Quando falamos do bem-estar humano nas organizações, estamos falando da sustentabilidade humana. Os critérios ESG, de sustentabilidade ambiental, social e de governança, são uma pauta mundial e a mais importante no Brasil em 2022. No “S” de social está a responsabilidade com o aspecto humano. São as pessoas que fazem a empresa. Você começa a ter incidência de burnout, que pode gerar um afastamento de cem dias do trabalho. Isso tem custo: para o ser humano que sofre, para a organização, para quem ficou trabalhando no lugar do colega afastado. A ideia de “vamos fazer um programa de bem-estar para as pessoas produzirem mais” é um equívoco. As pessoas percebem quando são manipuladas. Elas entendem que existe uma intenção que não é a do seu bem-estar legítimo.
Falamos cada vez menos em equilíbrio entre vida pessoal e profissional e cada vez mais sobre integração. Olhar para a experiência como única e entender que não quer dizer que tudo vá correr às mil maravilhas. Temos oscilações. Precisamos desenvolver habilidades e amadurecer no sentido de acolher e enfrentar os momentos mais duros.
Isso vai ser cada vez menos tolerado?
Acredito que sim. Está ficando mais difícil sustentar narrativas vazias, especialmente quando falam da questão do ser humano. As pessoas percebem e denunciam em plataformas como a glassdoor (site que, entre outras funções, permite que empregados e ex-empregados avaliem as empresas). Eles falam: “Aquele programa X não é de verdade”. Esse é um momento que nos convoca a ser muito coerentes e legítimos com o que fazemos. Nós como pessoas, indivíduos, e como organizações também. É preciso alinhar o discurso e a prática. Minha recomendação tem sido para as organizações reduzirem um pouco o volume das suas narrativas quando ainda não estão conseguindo entregar o que falam e prestar mais atenção, de verdade, ao que estão fazendo. Deixem os resultados falarem por si.
Com algumas variações, tem uma frase muito repetida que diz “trabalhe com o que você ama e não terá que trabalhar um dia sequer na sua vida”. O que acha disso?
É uma mentira. O trabalho traz prazer e sofrimento, mesmo aquele que amamos fazer. Isso faz parte da vida. Fatores de estresse desnecessário são obrigação da organização mitigar. O trabalho pode ser e deve ser, e é para a maioria das pessoas, apesar de tudo, uma experiência valorosa. Por que pensar que trabalho não é trabalho? Acho arriscado. Cada atividade na vida humana tem muita importância. O trabalho ocupa um espaço. Mas, se não enxergo o trabalho como trabalho, vou buscar, muitas vezes, que ele ocupe espaços de outros afetos. No início do século 21, havia uma ode a ser workaholic. Não, não é legal. Felicidade, no final das contas, é equilíbrio. O organismo precisa de equilíbrio. O trabalho é muito importante e se chama trabalho. É importante encontrar um trabalho com significado para nós e sustentar isso, porque a vida é dinâmica. Não concordo também com aquela ideia maluca do “trabalhe enquanto eles dormem”. Isso é loucura. A ideia que trago é de dar ao trabalho a função de trabalho, de subsistência, significado, realização, socialização. Deve ocupar o seu espaço, mas continua sendo trabalho.