Poucos analistas da cena política nacional conhecem tão bem os mecanismos de financiamento do poder como Bruno Carazza. O economista e advogado mineiro, que tem 44 anos, desenvolveu um método pelo qual observa por baixo do véu institucional os acordos e as tomadas de decisão. Cruzando dados de doações de campanha com tramitação de projetos, emendas e votações legislativas, ele expôs no livro Dinheiro, Eleições e Poder: As Engrenagens do Sistema Político Brasileiro as relações incestuosas entre grandes grupos econômicos, parlamentares e governantes. A três meses das eleições, Carazza identifica agora uma nova conformação dessas forças. Após a proibição das doações empresariais e uma onda antipolítica que resultou na maior renovação da Câmara dos Deputados desde a redemocratização, os partidos tradicionais recuperaram poder e dinheiro. Ancorados no orçamento secreto e no fundão eleitoral, castas políticas se aproveitaram de um afrouxamento dos mecanismos de controle e transparência para se reorganizarem num sistema que deixa pouco espaço para novos atores e torna o Palácio Planalto ainda mais dependente do Congresso.
O senhor é autor de um livro que explicita a influência do dinheiro nas eleições e na tomada de decisão por quem detém o poder. Como essa relação se estabeleceu e como está hoje?
Por 20 anos, de 1994 a 2014, houve um crescimento enorme nas doações de empresas para campanhas políticas. Mesmo com uma série de escândalos, isso veio num crescendo, porque grandes grupos econômicos identificaram nessa aproximação uma oportunidade de influenciar a política. Em 2015, o STF decide que doações privadas são inconstitucionais e ocorre uma mudança no sistema, que deixa de girar a partir das grandes empresas, mas sem uma redução no custo das campanhas. Pelo contrário. O sistema político resolveu suprir a falta de doações ampliando o fundo partidário e criando o fundo eleitoral. Isso altera a composição do jogo porque, ao assegurar uma fonte perene de recursos, a classe política não precisa mais recorrer às grandes empresas.
A influência do dinheiro refluiu com o financiamento público ou só está mais obscura?
Esse é o pulo do gato. A proibição das doações não fez as empresas perderem interesse nas decisões de parlamentares e governantes, tampouco ampliou o combate ao caixa 2. Pelo contrário. Na reação à Lava-Jato houve afrouxamento das decisões judiciais, mas os incentivos continuaram postos. O Estado é provedor de uma série de benesses que interessam ao setor privado, como isenções tributárias, regulações, subsídios. Hoje não se sabe de que forma a influência econômica na política continua sendo exercida, o volume de recursos para caixa 2 ou propina. O que se sabe é que inúmeras decisões do governo e do Congresso continuam beneficiando setores que se articulam melhor para exercer sua pressão sobre a política.
O senhor mostrou a influência do dinheiro usando dados públicos, ao cruzar doação de campanha com votações no Congresso, apresentação de projetos e emendas, edição de Medidas Provisórias. Houve retrocesso nessa transparência?
Avançamos muito na transparência e no fortalecimento das instituições de controle, como Ministério Público, Polícia Federal, tribunais de contas. Esse amadurecimento resultou na Lava-Jato. Claro que houve problemas na condução da operação, mas não se pode negar que a corrupção existiu. Isso só foi possível porque tínhamos instituições funcionando de forma coordenada. Só que os erros resultaram não só numa série de decisões do STF anulando várias etapas da Lava-Jato, mas também em retrocessos legislativos na forma de investigar esses crimes. Houve um afrouxamento da jurisprudência e da legislação. De um lado, foi uma resposta do sistema político. De outro, uma articulação do governo Bolsonaro no enfraquecimento de órgãos de controle e transparência.
Como opera essa articulação?
Há uma condução da cúpula do Ministério Público Federal bastante condenável, uma interferência cada vez maior na Polícia Federal e na Receita Federal, um uso arbitrário e banal do instituto do sigilo. No Congresso, há falta de clareza e transparência no manejo do orçamento. São várias frentes em que se observa uma piora no ambiente do combate à corrupção, da transparência e dos mecanismos de controle institucionais.
Mesmo se Bolsonaro perder, o centrão será o grande vencedor da eleição. O centrão organizou suas bases, consolidando os conservadores no PP, no PL e no Republicanos. Isso mostra que terá uma campanha muito organizada e com expressivo volume de recursos. Espera-se que a bancada do centrão cresça, o que torna mais difícil mudar esse estado de coisas.
Os argumentos para a criação do fundo eleitoral eram limitar o caixa 2, diminuir custos de campanha e democratizar o acesso aos recursos? Por que isso não aconteceu?
A governança do dinheiro cabe à direção dos partidos, o que cria uma imensa margem de favorecimento aos amigos do rei. Um novato pode ter as melhores ideias e ser eticamente irretocável, mas, se não for bem relacionado, não vai receber recursos, portanto, não será competitivo. Há partidos que vão distribuir mais de R$ 2 milhões por deputado federal que disputar reeleição. Isso desequilibra muito o jogo, acaba contribuindo para a concentração e a perpetuação de poder das mesmas elites.
O Congresso teve um índice alto de renovação em 2018, muito em função do discurso antipolítica vitaminado pela Lava-Jato. O que o senhor espera para 2022?
Com a ampliação do fundo eleitoral e o fortalecimento do centrão, a tendência é de que os velhos métodos da política estejam de volta. Haverá um peso grande do financiamento público, das dobradinhas e das articulações internas. Já se observou essa tendência na janela eleitoral, quando houve fortalecimento muito grande dos partidos do centrão que estão na base do Bolsonaro, como PL, PP e Republicanos. Também se nota uma aglutinação dos partidos de esquerda junto à candidatura de Lula. A velha política tradicional está voltando a dar as cartas.
O presidente da República sempre é muito forte no Brasil, mas poucas vezes se viu um Congresso tão poderoso, sobretudo no controle do Orçamento. Como isso aconteceu?
Fernando Henrique Cardoso e Lula construíram uma base de apoio muito grande e conseguiram implementar suas agendas. Mas, a partir de Dilma Rousseff, a gente começa a ver presidentes com muita dificuldade de manter essa sustentação. O próprio Temer tinha uma base melhor, porém, foi atropelado por escândalos. Como não existe vácuo de poder, à medida que se identifica um presidente fraco, o Congresso se fortalece. Eduardo Cunha inaugura esse processo, e ao longo dessas sucessões, os presidentes da Câmara e do Senado ampliam seus poderes. Há mudanças no regimento que aumentam o poder dos líderes de partidos e enfraquecem a primazia do Presidente da República na condução do processo legislativo. É quando surgem presidentes da Câmara muito fortes, como Cunha e Rodrigo Maia.
Mas nenhum foi tão poderoso quanto Arthur Lira.
Quando chega Bolsonaro, esse processo é ampliado. Desde o início ele não se mostrou interessado em conduzir o jogo no Congresso. Terceirizou as decisões ao Rodrigo Maia e depois a Arthur Lira. Além de não ter apetite pela negociação, Bolsonaro se elegeu com uma base muito inexperiente, sem habilidade para negociar e conduzir a agenda. Aliás, o presidente se elegeu sem agenda, sem um programa de reformas. Quando vem a pandemia, o presidente fica vulnerável a um processo de impeachment e, por instinto de sobrevivência, delega a condução do governo ao Lira e ao (chefe da Casa Civil) Ciro Nogueira. O centrão aproveita a oportunidade e aprofunda ainda mais seu poder, com o orçamento secreto e todas suas vertentes. Seja quem for o próximo presidente, vai conviver com essa realidade.
FHC e Lula construíram uma base de apoio muito grande e conseguiram implementar suas agendas. Mas, a partir de Dilma Rousseff, a gente começa a ver presidentes com muita dificuldade de manter essa sustentação. Como não existe vácuo de poder, à medida que se identifica um presidente fraco, o Congresso se fortalece. Eduardo Cunha inaugura esse processo.
Um Congresso que tem R$ 5 bilhões do fundo eleitoral, R$ 1 bilhão de fundo partidário, R$ 3,2 bilhões em emendas PIX e R$ 36 bilhões de orçamento secreto ainda depende de alguém? Como reverter essa força?
É um nó górdio que será difícil de desatar no próximo governo, seja quem for. Se for Bolsonaro, continua refém. Mas mesmo uma vitória do Lula se dará em condições muito diferentes da eleição de 2002, pois seria presidente num país muito dividido e com situação econômica muito pior daquela vista no início dos anos 2000. O Congresso também está mais hostil. Porque, mesmo se Bolsonaro perder, o centrão será o grande vencedor da eleição. O centrão organizou suas bases, consolidando os conservadores no PP, no PL e no Republicanos. Isso mostra que terá uma campanha muito organizada e com expressivo volume de recursos, além de contar com Bolsonaro. Espera-se que a bancada do centrão cresça, o que torna ainda mais difícil para o próximo presidente mudar esse estado de coisas.
O Brasil é um dos raros países que têm inflação, juros e desemprego com frequência passando os 10%. Como escapar dessa trágica tríade?
A massa da economia brasileira nas últimas décadas vem nessa suscetibilidade a crises. Toda vez que há um ensaio de recuperação, somos abatidos por uma crise econômica, política ou até de saúde, como foi a pandemia. É uma economia muito vulnerável, algo que cresceu nos últimos tempos. Tudo que se construiu, como Lei de Responsabilidade Fiscal, regra de ouro, teto de gastos, foi sendo fragilizado ao sabor das conveniências eleitorais. Isso torna o Brasil muito passível de sofrer os efeitos de uma crise mundial. Há fontes externas muito fortes para esse processo inflacionário: um mundo pós-pandemia, lockdowns na China, problemas internacionais de logística, guerra na Europa. Mas essa conjunção de fatores é ampliada no Brasil.
Houve um novo boom da commodities, e o Brasil foi um dos únicos países exportadores onde o dólar disparou. O quanto esse ambiente tumultuado prejudica?
Você olha as estatísticas brasileiras nos últimos tempos e observa que o Brasil atrai um volume de recursos muito menor. Pior ainda é que atraímos menos recursos de investimentos produtivos, que são para gerar emprego, abrir filiais. Pelo contrário, várias multinacionais encerraram atividades no Brasil, como a Ford e a Sony, e migraram para países que têm um ambiente político mais estável e economia mais propícia. Esse desequilíbrio da economia e da política tem um impacto na taxa de câmbio. E essa mudança de patamar no dólar potencializa a realidade adversa que vem lá de fora. Pagamos um preço muito mais alto na inflação e na taxa de juros, resultando em alto desemprego e baixo crescimento econômico, além de questões sociais mais graves, como o aumento alarmante do número de pessoas passando fome.
A cem dias das eleições, 70% dos eleitores não pretendem mudar de candidato. Então é muito difícil que os nomes de terceira via tenham força suficiente para virar o voto de quem já se declara eleitor de Lula e Bolsonaro.
Como melhorar?
É preciso repensar os pilares de organização macroeconômica. Mais do que isso, retomar uma agenda de reformas microeconômicas que nunca foram tomadas seriamente pelos últimos governos. Atacar o problema da reforma tributária e administrativa, construir toda uma agenda de aprimoramentos que começam na educação, passam pela inovação e pelo bom funcionamento dos mercados. Assim teremos uma estabilidade maior e a possibilidade de gerar mais renda e emprego.
O governo quer aumentar o valor do Auxílio Brasil, do vale-gás e criar um bolsa diesel. O fato de estarmos em um ano eleitoral piora a situação?
A cada crise, a solução é tentar minimizar e socorrer setores afetados com medidas de curto prazo e custo fiscal muito grande. São soluções paliativas, que com o passar do tempo não se mostram sustentáveis. Tudo o que foi feito pelo governo nos últimos tempos não foi suficiente para resolver, teve um custo fiscal muito alto e vai numa espiral que só nos joga no caminho de uma nova crise.
Enquanto o governo tenta gastar mais para segurar os combustíveis, Lula cogita revisar o teto de gastos e a reforma trabalhista. Por que não mantemos políticas de longo prazo?
Todas as soluções estruturais requerem habilidade política muito grande. Qualquer solução para um problema complexo traz consigo ganhadores e perdedores. Para aprovar uma reforma tributária, por exemplo, um presidente tem de ser forte e habilidoso para convencer aqueles que serão prejudicados no curto prazo. Isso ocorre no Brasil já há muito tempo. Não à toa o país tem ficado para trás frente a outras economias em desenvolvimento.
O senhor vê chance de retomada dessas reformas?
Reforma tributária exige poder de negociação muito grande. Num cenário de vitória do Bolsonaro, não se vê possibilidade. No caso de vitória do Lula, do Ciro Gomes ou da Simone Tebet, vai depender da forma como o vencedor vai se posicionar diante do centrão. Mesmo que Lula vença com margem boa, não é de se esperar que tenha uma bancada de esquerda muito maior do que a atual, pouco mais de cem deputados. Então, para qualquer medida, mesmo uma simples lei ordinária, terá de negociar com uma base mais conservadora.
A economia deve ser o tema central da eleição, mas não se vê propostas para combater essa piora do cenário. Como tirar os candidatos dessa armadilha retórica em que apenas se atacam entre si?
Isso é muito ruim para o debate eleitoral. Como há uma polarização enorme, a discussão se esvazia. Tanto que ambos têm se recusado a participar de sabatinas, debates e a conceder entrevistas mais longas. Boa parte dos eleitores vai às urnas com espírito de votar naquele que tem a rejeição “menos pior”. Vivemos uma crise econômica, uma situação social preocupante e os dois principais candidatos se recusam a apresentar soluções. A própria diretriz de programa que o Lula apresentou agora é muito genérica. Tem um discurso de intenções que no papel é muito bonito, mas não indica de onde serão retirados os recursos.
A terceira via teve inúmeros pré-candidatos, mas nenhum decolou. Por que não há um caminho alternativo viável a Lula e Bolsonaro?
Temos um presidente tentando a reeleição e um ex-presidente tentando voltar depois de tudo o que passou, inclusive na prisão. Esse contexto naturalmente já divide a sociedade, deixando pouco espaço para o surgimento de uma alternativa que poderia adotar um discurso de reconstrução do país e apaziguamento dos ânimos. Mas perdeu-se muito tempo discutindo nomes. Se essa definição tivesse ocorrido há um ano e desde lá houve uma mensagem clara ao eleitor, talvez esse nome tivesse chances de furar a polarização. Nunca houve uma consolidação de voto tão precoce como agora. A cem dias das eleições, 70% dos eleitores não pretendem mudar de candidato. Então é muito difícil que os nomes de terceira via tenham força suficiente para virar o voto de quem já se declara eleitor de Lula e Bolsonaro. Ciro tinha propostas e não tinha apoio. Já Simone Tebet ficou discutindo apoio e não tem tempo para apresentar suas ideias.