Poucas correntes do pensamento econômico ganharam tantos adeptos no país nos últimos anos como o liberalismo. Advogando uma presença cada vez menor do Estado na vida dos cidadãos, a doutrina galgou espaço sobretudo entre os jovens, a partir de um trabalho de disseminação das teorias em programas de formação de lideranças. Aos 29 anos, o jornalista Lucas Berlanza é fruto desse esforço. Desde 2018 à frente do Instituto Liberal, o mais antigo fórum de defesa da corrente no país, ele percorre o Brasil ministrando palestras sobre os fundamentos do liberalismo e as consequências do modelo que considera positivas na vida das pessoas. Todavia, admite que, para obter transformações robustas, precisa incrustar esse ideário na elite política e se aproximar das massas. Autor de um livro sobre a vida e as ideias de Carlos Lacerda e editor do site Sentinela Lacerdista, Berlanza recorre ao inspirador ideológico para explicar sua missão, como você pode ler na entrevista a seguir.
Poucas vezes se viu tantos políticos declararem-se liberais como nas últimas eleições. Às vésperas de o Instituto Liberal completar 40 anos, o liberalismo vive seu auge hoje no Brasil?
Vivemos o resultado de décadas de divulgação doutrinária e bibliográfica que foi começado pelo (empresário) Henry Maksoud na revista Visão e depois teve sequência com o Instituto Liberal e seus filhotes. Houve ainda um cenário político favorável com a decadência dos governos do PT, especialmente os malabarismos econômicos da gestão Dilma Rousseff. Esse período de crise em governos associados à esquerda fomentou um espaço para que lideranças, sobretudo na juventude, fizessem esse discurso reverberar. Tudo isso, mais a exploração das redes sociais, contribuiu para que tivéssemos hoje esse crescimento.
Durante um tempo, ser taxado de liberal, ou de neoliberal, era visto como algo pejorativo na política. Por que esse carimbo colou e ficou tão difícil os políticos assumirem ser liberais?
A diferença está na intensidade da agenda ideológica do PT e do divisionismo que o partido provocou na sociedade ao incentivar cisões e hostilidades. Isso se sustentou durante um bom tempo como rescaldo das medidas positivas do governo Lula – porque precisamos ser honestos e reconhecer que, no começo do governo Lula, as matrizes econômicas foram respeitadas. Isso manteve a popularidade do Lula em alta e o discurso liberal e conservador clássico, marginalizado. Mas isso não se sustentou com a Dilma e aconteceu a erupção a que assistimos.
Como esse estigma surgiu e se manteve?
Vamos lá: por que o liberal ficou taxado como abominável e alguém que odeia os pobres? A esquerda é forte em diversos setores, sobretudo na intelectualidade e nas artes. É algo universal, não ocorre só no Brasil, embora nos outros países haja mais equilíbrio. Então a esquerda é muito forte nesses ambientes de expressão da cultura, que formam mentalidades. No caso brasileiro específico, existe o problema do regime militar. É fato que na atmosfera da Guerra Fria, uma quantidade nada desprezível de liberais acabou se associando, pelas circunstâncias da época, a um regime que evoluiu para conformações autoritárias. Isso fez com que o marketing da esquerda tivesse um trabalho muito facilitado para associar à ditadura militar todo discurso pró-capitalismo, pró-liberalismo e pró-conservadorismo. Para mim, esse é o fator específico principal da nossa realidade.
O último grande expoente do liberalismo no país talvez tenha sido Roberto Campos. Por que demorou tanto tempo para surgirem outras lideranças de expressão?
Tivemos o Hélio Beltrão como ministro da Desburocratização. É um pouco diferente do Roberto Campos nas ideias, mas também se associava ao discurso desestatizante. De fato, depois do governo Castelo Branco (1964-1967), a tônica dominante do ciclo militar é intervencionista e estatizante. Mas o marketing da esquerda não quer saber disso.
É impossível dissociar a direita do liberalismo e a esquerda do intervencionismo?
O liberalismo é uma tradição muito plural. A bibliografia engloba desde autores ditos liberais conservadores até o liberalismo social. Há áreas distintas que têm um núcleo duro e se reconhecem ao longo de sua tradição histórica. Esquerda e direita são rótulos que nascem por inspiração das assembleias francesas e permanecem úteis na retórica política, no debate público, mas acabam não servindo tanto para fazer uma análise precisa dos posicionamentos como, por exemplo, especificar a corrente do pensamento de que está se tratando.
Quem hoje são os principais liberais da política brasileira?
Eu citaria um partido, e dele você deduz seus representantes, principalmente a bancada. Quem hoje milita pela pauta liberal de forma mais coerente é o partido Novo. Está escrito no programa e perfaz suas votações. Há divergências, óbvio. Como eu disse, o liberalismo é plural e o Novo tem tendências distintas. Mas, no conjunto, é o partido que mais claramente endossa a agenda liberal.
Para que a agenda liberal chegasse ao poder, ou pelo menos ocupasse alguns postos e pastas no governo que venceu a eleição em 2018, foi preciso grudar em um candidato que não tem formação liberal. Foi o discurso dele que conquistou o eleitorado e muitos liberais pegaram carona para tentar colocar a agenda no Planalto.
Há alguma experiência liberal de governo no Brasil que o senhor credite como exemplar?
À exceção do Romeu Zuma em Minas Gerais, confesso que não conheço nenhum governador que se esforce ou esteja claramente identificado com a agenda liberal. Pelo menos no momento, não me ocorre.
Isso demonstra que a agenda não avançou?
Sem dúvidas. Tanto que os discursos de teor populista ainda são os que mais encantam as massas, infelizmente. Para que a agenda liberal chegasse ao poder, ou pelo menos ocupasse alguns postos e pastas no governo que venceu a eleição em 2018, foi preciso grudar em um candidato (Jair Bolsonaro) que não tem formação liberal. Foi o discurso dele que conquistou o eleitorado e muitos liberais pegaram carona para tentar colocar a agenda no Planalto. Um candidato liberal propriamente dito não houve nenhum em condições de se eleger.
Bolsonaro nunca foi liberal, mas se apresentou como tal na campanha, defendendo medidas liberais. A seis meses do fim do mandato, qual sua avaliação sobre a agenda liberal do governo?
Não dá para ser absoluto. Tem gente boa no governo, principalmente no Ministério da Economia, que conseguiu realizar reformas microeconômicas e fazer avançar agendas minoritárias. Há avanço também na Eletrobras, embora com penduricalhos que deformam a privatização. Mas, a grosso modo, é no mínimo decepcionante chegar ao final do governo com um ministro da Economia – que foi apontado pelo Roberto Campos como um dos liberais mais promissores de sua época – pedindo pelo amor de Deus aos empresários para controlar os preços. Isso ilustra como as coisas poderiam ter ido bem melhor.
Muitos empresários e ativistas do liberalismo deixaram o governo se dizendo frustrados com a dificuldade de implementar políticas liberais. Onde o ministro Paulo Guedes errou?
Pode ter havido falhas na articulação política do Ministério da Economia, mas acho que é mais uma questão da própria base política do governo e do uso que se fez de sua própria popularidade. O que eu vi foi um monte de parlamentar eleito no bojo do discurso bolsonarista chegando no Congresso e querendo fazer lacração às avessas. Eles questionam tanto a lacração da esquerda, essa agenda identitária e politicamente correta – e eu assino embaixo dessas críticas –, mas passaram a fazer o mesmo, com sinal trocado. Iam à tribuna para bradar contra o comunismo e ideologia de gênero e não se organizaram para levar adiante as pautas reformistas liberais. Falhou o governo como um todo, e a economia foi levada de roldão. É claro que houve uma pandemia e uma guerra na Europa, mas, juntando tudo isso, a agenda foi esmaecendo. Paulo Guedes ficou refém dessa situação e agora está fazendo jogo eleitoreiro. Pedir para empresário congelar preço é fazer o jogo do candidato Bolsonaro, e não o jogo de interesse da agenda do país.
Esse esforço não deveria ter sido feito no primeiro ano de governo, quando a força advinda das urnas dá um poder enorme ao Planalto sobre o Congresso?
Tem que atacar no começo, não pode deixar para depois. Mas o que se via era ministros e figuras destacadas da base do governo perdendo tempo precioso acusando uns aos outros de pretensões golpistas, em vez de trabalharem as pautas necessárias. Falavam que o vice-presidente queria depor Bolsonaro. O próprio presidente deu muito pouca ênfase à agenda econômica. Ele precisava usar seu carisma e capital político para isso, mas ficou longe de ser prioridade ao longo do mandato.
O senhor é autor de um livro sobre Carlos Lacerda (1914-1977), um dos maiores polemistas brasileiros. Há semelhanças entre ele e Bolsonaro, que também costuma fabricar polêmicas políticas?
A única semelhança que vejo é no discurso da coalizão que levou Bolsonaro ao poder em relação à agenda lacerdista. Ali houve uma conjugação de forças liberais e conservadoras que Lacerda também sustentava – claro que ao seu tempo e dentro do padrão de pensamento que existia na época, em que ele reforçava uma vinculação à democracia cristã alemã. Correntes como a Escola de Chicago ou da Escola Austríaca, por exemplo, só ganharam popularidade no Brasil após o trabalho do Instituto Liberal. Mas, em linhas gerais, o discurso da coalizão era parecido. Para por aí também. Não há mais nenhuma semelhança entre os dois.
Lacerda proferiu uma célebre frase sobre seu maior inimigo, Getúlio Vargas: “O senhor Getúlio Vargas não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Essa frase caberia hoje na boca de Bolsonaro, já que o Lula com frequência é comparado a Getúlio?
(Risos.) É bem possível que Bolsonaro dissesse isso. Certamente não com a mesma maestria.
Hoje há um embate do governo com a principal empresa da Bolsa de Valores, a Petrobras. Como o senhor avalia essa confusão?
Os executivos da Petrobras se tornaram os maiores vilões do país. Todo mundo quer caçá-los: governo, STF, parlamento, esquerda. É uma absoluta concessão à atmosfera da eleição. O preço do combustível pode ser salgado, mas é consequência das condições econômicas. Como a agenda liberal preconiza, o que podemos fazer é combater a exclusividade no mercado e começar a trabalhar pela privatização.
Como garantir que a privatização reduziria o preço dos combustíveis se as refinarias da Petrobras que foram privatizadas hoje cobram mais caro do que a estatal? Não basta privatizar. Deve haver o máximo possível de abertura para a concorrência. Não é só privatização que baixa preço, é preciso levar à disputa. Liberalismo não é só privatização, isso é reducionismo. Essas refinarias foram privatizadas, mas não houve desregulamentação. Também há a questão dos impostos, do peso da máquina. Todo esse entorno precisa ser mexido, não se trata de um passe de mágica, uma única medida que equaciona a questão.
Não basta privatizar. Deve haver o máximo possível de abertura para a concorrência. Não é só privatização que baixa preço, é preciso levar à disputa. Liberalismo não é só privatização, isso é reducionismo.
A carga tributária e o peso da máquina são sempre citados como entraves ao desenvolvimento. Como fazer avançar as reformas tributária e administrativa?
É uma tarefa hercúlea diante do peso do corporativismo, mas acredito no poder das ideias. Elas precisam crescer para ter consequência. Nas condições atuais, não vejo vontade política no Congresso nem nos postulantes ao Planalto. Estamos fazendo trabalho de formiguinha com o objetivo de criar material humano e ideológico para que isso seja possível. Se jogarmos a toalha, quem insistirá?
O senhor vê a agenda liberal representada em algum dos atuais candidatos à Presidência?
Com a mesma vitalidade eleitoral que Bolsonaro tinha em 2018 e com condições viáveis de se eleger, não vejo. Como o partido Novo coloca seus candidatos dentro de um pacote ideológico, um pacote programático bem definido e autenticamente liberal, quem nós vamos encontrar é Luiz Felipe D’Avilla. É o único.
A pandemia demonstrou como o Estado tem um papel fundamental em momentos de grave crise. Essa presença mais forte deve se resumir a momentos de colapso ou precisa ser permanente?
Na dimensão que foi na pandemia, não considero sustentável que tenha continuidade. Mas a exata extensão da atuação estatal é uma questão aberta entre os liberais. Eu, pessoalmente, não chego às raias do libertarianismo mais extremado. Não sou hostil a algumas formas de atuação do Estado que outros liberais mais extremados não aceitariam.
O senhor defende saúde educação públicas?
Pelo menos dentro do sistema de voucher, pelo qual o Estado não gerencia diretamente a instituição de ensino ou saúde, mas não deixa de ter uma política estatal, alcançando recursos diretamente às pessoas para que façam sua opção.
Programas de transferência de renda, como o Bolsa Família e o Auxílio Brasil, são eficazes na redução da pobreza, mas enfrentam fortes críticas dos liberais.
As pessoas esquecem que esse tipo de programa têm inspiração liberal, na Escola de Chicago. Mas os libertários e objetivistas não aceitam nem isso. Para eles não pode ter nenhum tipo de distribuição de renda. Eu admito que essas políticas podem ser aplicadas, desde que condicionadas a regramentos bem dispostos para não se tornarem instrumento de exploração dos políticos para fazer terrorismo eleitoral. Prefiro que sejam políticas de Estado, levando os beneficiados à própria emancipação. Um programa como esse não pode se louvar do número de pessoas a mais que são beneficiadas, mas sim pelo número de pessoas que passam a dispensá-lo.
Há quem defenda um liberalismo radical a ponto de permitir a venda de órgãos do próprio corpo – o sujeito poderia vender um rim, por exemplo – e a permissão do trabalho infantil. Onde está o limite do liberalismo?
O liberalismo vai até o limite do minarquismo (teoria política que prega que a função do Estado é assegurar os direitos básicos da população). São os que defendem exclusivamente segurança e justiça. É uma corrente liberal que defende até mesmo a inexistência do sistema representativo que a tradição liberal quase inteira sempre defendeu. Não precisa de parlamento, deputado, presidente, nada disso. Só teria um aparato de segurança e justiça que seria financiando voluntariamente, quer dizer, sequer defende os impostos. Então há liberais que chegam a esse limite extremo. Pertencendo a uma mesma família, todos vão concordar que precisamos diminuir o tamanho do Estado em nossas vidas e temos de proteger a vida, a liberdade e a propriedade – a tríade sagrada do liberalismo. Mas em que intensidade e quais as consequências concretas disso, sempre haverá divergências.
Como transformar o liberalismo numa doutrina popular, capaz de movimentar as massas?
Eu diria que a melhor maneira de chegar às pessoas de forma geral, principalmente quando você está disputando um cargo numa eleição, é mostrar as consequências concretas, o impacto na vida das pessoas da atual maneira de como o Estado funciona hoje. Ou seja, porque essa carga tributária engessa o seu desenvolvimento. Muita gente acaba tendo percepção desse problema de forma intuitiva, mesmo sem ouvir falar de liberalismo, mas ainda temos muito trabalho a fazer pois é mais fácil acreditar em político que vende soluções milagrosas.