Dois anos após ser conduzida pelo então presidente Michel Temer ao comando da Procuradoria-Geral da República (PGR), Raquel Dodge deixa o posto nesta terça-feira (17). Ao longo do mandato, Dodge enfrentou críticas internas e externas, denunciou um presidente da República no exercício do mandato e enfrentou crise institucional no Ministério Público Federal (MPF). Dodge será substituída pelo subprocurador-geral da República Augusto Aras, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para o biênio 2019/2021.
Como precisa passar por sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e pela aprovação pelo plenário da Casa, Aras não assume imediatamente nesta terça-feira. Nesse hiato entre a entrega do cargo por parte de Dodge e a posse de Aras, o vice-presidente do Conselho Superior do Ministério Público Federal, subprocurador-geral da República Alcides Martins, responderá interinamente pela PGR.
Uma das críticas mais comuns à gestão de Dodge ocorre em relação ao ritmo das investigações da PGR no âmbito da Lava-Jato, considerado lento por algumas alas do órgão.
Indicação
Ao indicar Dodge ao comando da PGR, Temer quebrou a tradição iniciada em 2003, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de nomear sempre o mais votado na lista tríplice da Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR). Dodge ficou na segunda colocação em 2017, atrás de Nicolao Dino e na frente de Mario Luiz Bonsaglia. A decisão sobre a sucessora de Rodrigo Janot ocorreu na mesma semana em que o então procurador-geral apresentou denúncia contra Temer ao Supremo por corrupção passiva com base na delação de executivos do Grupo J&F. Meses depois, Temer seria novamente denunciado por Janot.
Encontro fora de agenda
Pouco mais de um mês antes de Dodge assumir a PGR, Temer teve encontro, fora da agenda oficial, com a procuradora. A assessoria do Palácio do Planalto confirmou a reunião, registrada por um cinegrafista da TV Globo, destacando que o presidente atendeu ao pedido de Dodge para conversar sobre a posse no cargo. O encontro gerou desconforto em um momento onde o presidente era alvo do órgão após gravação de conversar fora de agenda com um dos donos da JBS. O áudio fez parte das investigações contra Temer.
Desconforto no início da gestão
Logo nos primeiros dias de trabalho, Dodge, oficializou em portarias a troca no grupo de trabalho da Lava-Jato. A nova equipe composta para conduzir as investigações na Procuradoria-Geral da República (PGR) foi formada por oito procuradores, sendo que apenas dois já estavam no grupo do ex-procurador-geral Rodrigo Janot. A medida causou desconforto, pois contrariou discurso público, de que os todos os integrantes da equipe de Janot estavam convidados a permanecer na Lava-Jato.
Segunda denúncia contra Temer
Dois dias após assumir oficialmente a PGR, Dodge manifestou-se contra o pedido da defesa de Michel Temer para suspensão ou devolução da segunda denúncia contra o então chefe do Executivo.
Ação contra Gleisi
Em novembro de 2017, Dodge pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a condenação da senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), de seu marido, o ex-ministro Paulo Bernardo, e de um empresário pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A procuradora-geral também solicitou o pagamento de R$ 4 milhões como reparação de danos morais e materiais. Pedido ocorreu no âmbito de investigação sobre suposto desvio de R$ 1 milhão para a campanha de Gleisi ao Senado em 2010.
Voto impresso
Em fevereiro de 2018, Dodge entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no STF contra a implantação do voto impresso nas próximas eleições. De acordo com a procuradora-geral, a impressão do voto representa risco "à confiabilidade do sistema eleitoral, fragilizando o nível de segurança e eficácia da expressão da soberania nacional por meio do sufrágio universal". Segundo ela a reintrodução do voto impresso "caminha na contramão da proteção da garantia do anonimato do voto e significa verdadeiro retrocesso". Em junho daquele ano, o STF acatou o pedido.
Terceira denúncia contra Temer
A procuradora-geral da República denunciou Temer, em 19 de dezembro de 2018, o então presidente Michel Temer e mais cinco pessoas pelos crimes de corrupção ativa, passiva e lavagem de dinheiro no âmbito do inquérito dos portos. Temer é investigado por suposto favorecimento da empresa Rodrimar S/A na edição do chamado Decreto dos Portos, assinado em maio de 2017.
Anulação de acordo
Dodge pediu ao STF, em março deste ano, anulação de acordo firmado entre a força-tarefa da Lava-Jato e a Petrobras que resultaria na criação de uma fundação privada que seria gerida por procuradores. Dodge também pediu que o Supremo declare nula a decisão da juíza Gabriela Hardt, da 13ª Vara Federal em Curitiba, que homologou o acordo entre o Ministério Público Federal e a Petrobras. Entre os preceitos afrontados, ela citou "a separação dos poderes e das funções do Estado, a constitucionalidade, a legalidade, a independência e a impessoalidade, que devem pautar as ações dos membros do Ministério Público". No mesmo mês, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu o acordo.
Vazamento de diálogos
Em junho deste ano, Dodge encaminhou ao STF parecer contrário ao pedido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para anular sua condenação no caso do tríplex de Guarujá. A solicitação dos advogados de Lula ocorreu após o vazamento de diálogos divulgados pelo site The Intercept Brasil envolvendo a atuação do ex-juiz e o atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro. Os defensores dizem que as supostas conversas de Moro e o chefe da força-tarefa da Lava-Jato Deltan Dallagnol revelam "completo rompimento da imparcialidade" do ex-juiz.
Em meio à divulgação da mensagens atribuídas a procuradores da Lava-Jato, a procuradora-geral manifestou apoio institucional à operação e garantiu que manterá a estrutura para a sequência do trabalho.
Aliado de Bolsonaro barrado
Em 6 de agosto, o Conselho Superior do Ministério Público Federal rejeitou o pedido do governo Jair Bolsonaro para que o procurador Ailton Benedito fosse designado como membro da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Por 6 votos a 4, o conselho entendeu que, como a vaga na comissão é do MPF, a escolha do representante do Ministério Público cabe à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e não ao governo federal. Dodge foi um dos seis votos contrários à indicação pelo Executivo.
Demissão de coordenador
O procurador José Alfredo de Paula Silva, coordenador do grupo de trabalho da Lava-Jato na PGR, pediu demissão do cargo em 12 de julho. Em ofício, ele justificou a decisão de deixar a gestão de Raquel Dodge devido a questões pessoais. O Globo atribui a decisão de Silva a um descontentamento com a procuradora-geral por causa do ritmo supostamente lento das investigações.
Debandada
No início deste mês, a equipe de trabalho da Lava-Jato na PGR fez um pedido de demissão coletiva citando "grave incompatibilidade de entendimento" do grupo com uma manifestação do órgão enviada ao STF. A ação foi em protesto contra Dodge. Seis procuradores integrantes da equipe fizeram um comunicado em que avisam a respeito de seus desligamentos. Pediram saída das funções Raquel Branquinho, Maria Clara Noleto, Luana Vargas, Hebert Mesquita, Victor Riccely e Alessandro Oliveira. Na carta, eles não detalham os motivos da incompatibilidade, só dizem que a manifestação da PGR ao Supremo foi feita no dia 3 de setembro. Uma das razões de recente insatisfação do grupo da Lava-Jato com a PGR se referia ao acordo de delação premiada do ex-presidente da construtora OAS Léo Pinheiro, assinado em dezembro de 2018, que ainda não havia sido enviado ao STF para ser homologado.
Discurso final
Na sua última sessão plenária no Supremo Tribunal Federal, na última terça-feira (17), Dodge disse estar preocupada com a democracia e, emocionada, destacou que procurou trabalhar em "áreas mais nodais" em busca de uma sociedade mais igualitária e justa.
— Acho que a democracia é uma obra coletiva, da sociedade, das instituições. Na minha mensagem final aqui no Supremo procurei enfatizar que nós levamos 30 anos para erguer a democracia do Brasil e fizemos isso numa onda internacional de criação das democracias liberais em vários países — disse Dodge.
— Acho que o grande desafio do século 21 é não deixar que as democracias morram. Muitas vezes acontecem avanços e também retrocessos, e eu percebo com alguma preocupação muitos sinais de retrocesso no tocante às democracias liberais no mundo. Eu espero que isso não aconteça no Brasil — finalizou.