"Cria da Maré", como gostava de dizer, Marielle Franco (PSOL) foi eleita vereadora do Rio de Janeiro em 2016 com 46 mil votos, mas teve sua trajetória política interrompida por assassinos. No dia 14 de março de 2018, a política foi atingida por quatro disparos na cabeça após participar de um evento no bairro da Lapa, no centro do Rio.
Além de Marielle, o seu motorista, Anderson Pedro Gomes, também foi baleado e morreu. Uma de suas assessoras, Fernanda Gonçalves Chaves, sobreviveu ao ataque. Dois suspeitos de serem os autores do ataque estão presos – o policial reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio de Queiroz, expulso da corporação por suspeita de corrupção e ligação com o tráfico.
Mais de um ano e sete meses depois do crime, o nome do presidente Jair Bolsonaro, proprietário de imóveis no mesmo condomínio de Lessa, apareceu nas investigações. Horas antes dos assassinatos, Élcio teria anunciado na portaria do Vivendas da Barra que iria à casa de Bolsonaro.
De acordo com o depoimento, divulgado pelo Jornal Nacional, o porteiro do condomínio disse à Polícia Civil do Rio que ligou para a casa de Bolsonaro e que foi atendido por alguém que, pela voz, identificou como sendo o "seu Jair". Porém, viu pelas câmeras de monitoramento que Élcio se dirigiu para outra casa, a de Lessa.
Como ocorreu o assassinato
Por volta das 19h do dia 14 de março de 2018, Marielle chegou à Casa das Pretas, no bairro da Lapa, para participar de um evento com jovens negras. De acordo com a Polícia Civil do Rio, um Cobalt com placa de Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense, já estava estacionado próximo ao local. A vereadora deixou o compromisso por volta das 21h, acompanhada da assessora e do motorista. Um Cobalt saiu logo em seguida e seguiu o carro onde estava Marielle.
A vereadora não tinha o hábito de andar no banco de trás do veículo, que tinha filme escuro nos vidros. Naquela noite, no entanto, ela estava no banco traseiro.
Durante o deslocamento, outro carro participou da perseguição, um Logan prata. Meia hora depois de deixar a Lapa, às 21h30min, na Rua Joaquim Paralhes, no bairro Estácio, um dos carros se manteve ao lado do veículo de Marielle, do qual saíram 14 disparos.
Marielle foi atingida por quatro tiros na cabeça, e três balas acertaram as costas de Anderson.
O que disse a sobrevivente
A assessora que estava no carro com a vereadora relatou à polícia que não percebeu a perseguição dos criminosos e que ela e a vereadora estavam olhando fotos no celular quando foram surpreendidas pelos disparos. Segundos antes, a vereadora teria falado "ué?". O motorista teria dito apenas "ai" após ser baleado.
A assessora afirmou que se abaixou na tentativa de se proteger e que Marielle caiu sobre ela. Ela também disse que teve de acionar o freio de mão para parar o carro e pedir socorro a populares. Ela deixou o Estado do Rio de Janeiro para se proteger.
Os suspeitos dos assassinatos
O policial reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio de Queiroz são os suspeitos pelos assassinatos. Ronnie e Élcio foram presos às vésperas do primeiro aniversário do crime, na madrugada de 12 de março de 2019, pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Rio, e pela Delegacia de Homicídios da Polícia Civil do Rio.
De acordo com os investigadores, Lessa foi o autor dos 14 disparos contra o carro onde estavam Marielle e Anderson, e o Cobalt onde o atirador estava era dirigido por Élcio. Conhecido como um exímio atirador, Lessa morava no mesmo condomínio de Bolsonaro. Porém, inicialmente, porém, as investigações não haviam encontrado nenhuma relação entre a coincidência de endereço.
A Polícia Civil e o Ministério Público do Rio apontam Lessa como mentor do crime. Por ora, os motivos que teriam os levado a cometer os assassinatos são desconhecidos.
O nome de Bolsonaro no caso
O nome de Jair Bolsonaro apareceu no caso a partir de um depoimento do porteiro do Condomínio Vivendas da Barra, onde o presidente tem duas casas, obtido pelo Jornal Nacional e divulgado na terça-feira (29). De acordo com o funcionário, um dos suspeitos do crime — Élcio de Queiroz — chegou ao condomínio horas antes do crime, às 17h10min, e disse que iria à casa de número 58, de Bolsonaro.
O registro está no livro da portaria. À Polícia Civil do Rio, o porteiro afirmou ter ligado para a casa 58, onde foi atendido por alguém que, pela voz, identificou ser o "seu Jair", e que liberou a entrada do visitante. Porém, o funcionário disse que, pelas câmeras de monitoramento, viu que o Logan dirigido por Élcio se deslocou para outra residência, a de número 66. Nesta casa, mora Ronnie Lessa, também suspeito dos assassinatos.
O funcionário contou ter ligado novamente para a casa 58, onde o mesmo homem que havia atendido anteriormente respondeu que sabia para onde Élcio estava indo. Apesar de o porteiro ter se referido ao interlocutor do interfone como "seu Jair", neste dia Bolsonaro estava na Câmara dos Deputados, em Brasília, onde marcou presença em duas votações — uma às 14h e outra às 20h30min — e publicou vídeos nas redes sociais.
Bolsonaro, de imediato, reagiu à reportagem. Em uma transmissão ao vivo pelo Facebook, disse que foi "surpreendido" e acusou o governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), de ter vazado o processo, que está em segredo de Justiça, para a Globo. Depois, o presidente publicou no Twitter uma imagem associando a Globo a um esgoto e escreveu "canalhas".
MP desmente depoimento
Em paralelo, integrantes do Ministério Público do Rio consultaram, em Brasília, no dia 17 de outubro, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli.
Sem avisar o juiz do caso no Rio, eles questionaram Toffoli sobre a continuidade das investigações, uma vez que o presidente tem foro privilegiado. O surgimento do nome de Bolsonaro no inquérito pode levar o caso ao Supremo, mas o ministro ainda não respondeu os procuradores.
Nesta quarta-feira (30), Bolsonaro disse que acionou o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, para checar a possibilidade de a Polícia Federal (PF) colher o depoimento do porteiro.
O Ministério Público, na tarde desta quarta-feira (30), afirmou que o porteiro do condomínio mentiu no depoimento. Segundo a promotora Simone Sibilio, os áudios obtidos pelo MP mostram que o porteiro ligou para a casa 65, de Ronnie Lessa, e não a 58. O MP afirmou que a perícia foi concluída apenas hoje e que ainda será incluída nos autos do depoimento. As promotoras também disseram que nenhum áudio foi alterado ou apagado.
As outras investigações
Inicialmente, uma testemunha havia apontado uma outra linha de investigação para o crime. Essa pessoa contou à PF que o vereador carioca Marcello Moraes Siciliano (PHS) e o ex-policial militar Orlando de Oliveira de Araújo — o Orlando Curicica — queriam a morte de Marielle. Curicica está preso no presídio federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte.
Em depoimento prestado à PF e ao Ministério Público Federal (MPF), Curicica disse que participou de um encontro no Rio em que o "Escritório do Crime" (grupo de matadores formados por policiais militares, ex-policiais e milicianos que atua na região de Rio das Pedras) discutiu o assassinato de Marielle.
Segundo Curicica, o major da Polícia Militar (PM) Ronald Paulo Alves Pereira (preso em janeiro como um dos chefes do "Escritório do Crime") e o subtenente da PM Antonio João Vieira Lázaro (que trabalhou como assessor de Domingos Inácio Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio afastado por corrupção) e Hélio Paulo Ferreira (conhecido como o "Senhor das Armas") participaram do encontro. Curicica contou que Ronald afirmou que eles "teriam que resolver um problema para o amigo do Tribunal de Contas". No dia 2 de setembro, o jornal Extra divulgou que a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu acesso ao inquérito para verificar se Brazão estava atrapalhando as investigações.
Brazão passou a ser o principal suspeito de ordenar o crime contra a vereadora. Em 17 de setembro de 2019 — um dia antes de deixar o comando da Procuradoria-Geral da República —, Raquel Dodge denunciou Brazão e outras cinco pessoas por tentativa de atrapalhar a investigação e abriu inquérito para apurar se ele foi o mandante dos homicídios. Dodge ainda solicitou que as investigações sobre a encomenda dos assassinatos fossem federalizadas para evitar novos "desvios e simulações" no inquérito da Polícia Civil do Rio.
Além de Brazão, também foram denunciados o delegado federal Hélio Khristian Cunha de Almeida, o policial federal aposentado Gilberto Ribeiro da Costa, o policial militar Rodrigo Jorge Ferreira e a advogada Camila Moreira Lima Nogueira.