"Não sou livre, enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas". Na noite de quarta-feira (14), ao falar para um grupo de mulheres negras, em um evento na Lapa, no Rio de Janeiro, Marielle Franco, 38 anos, citou a escritora Audre Lorde. Eram as últimas horas de vida da vereadora, eleita pelo PSOL. O momento foi registrado em vídeo e publicado por ela em sua página no Facebook.
Executada a tiros pouco mais de uma hora depois, a "cria da favela da Maré", como costumava se apresentar, em muito se aproximava do perfil da poeta americana, de origem caribenha, uma mulher negra e ativista, que tentava romper com as barreiras culturais e sociais de seu tempo.
Reconhecida pela luta pelos direitos de moradores da periferia, de comunidades LGBT e das mulheres, Marielle se tornou líder de uma das maiores comunidades do Rio de Janeiro, a Maré. Foi ali que seu avô paterno se instalou ao deixar a Paraíba para buscar uma vida melhor no Rio de Janeiro, na metade do século passado. Ele foi um dos primeiros a se fixar na comunidade que hoje é um aglomerado de 16 favelas, onde vivem cerca de 130 mil pessoas. Foi ali também que nasceu e cresceu Marielle Francisco da Silva, que depois adotaria o nome de Marielle Franco.
— A memória da palafita, a memória da resistência, esse é o lugar onde eu guardo minha ancestralidade — recordou a neta, de sorriso largo e voz firme, no encontro com as mulheres na Lapa.
A memória da palafita, a memória da resistência, esse é o lugar onde eu guardo minha ancestralidade
MARIELLE FRANCO
Vereadora (PSOL)
No evento, chamado de Jovens Negras Movendo as Estruturas, em uma roda de conversa animada, cada uma falou um pouco sobre as barreiras que enfrentam e sobre a importância de se unirem.
— Quando as mulheres negras se movem, a gente move também as estruturas — disse Marielle.
Socióloga e pós-graduada, Marielle foi eleita em 2016 com 46,5 mil votos na primeira disputa eleitoral. Foi a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro. Antes de chegar lá, no entanto, precisou abandonar os estudos, aos 18 anos, quando engravidou de Luyara, a única filha que teve.
Tinha concluído o Ensino Médio em uma escola pública e estava em um cursinho pré-vestibular comunitário, mas o sonho da faculdade precisou esperar. A história foi contada pela vereadora em entrevista à Revista Subjetiva, 10 meses atrás. Marielle só pôde voltar aos estudos com 22 anos, quando recebeu bolsa integral para o curso de Sociologia da PUCRio.
— Eu queria mais, precisava de mais, e aí, quando falo que “precisava de mais”, é nessa época em que as incursões nas favelas crescem, que o lugar do debate, do armamento e o debate da segurança pública vêm mais à tona — contou à revista.
Às mulheres na Lapa, ela lembrou o ano em que ingressou na faculdade. Usou seu exemplo para mostrar a importância de as mulheres, especialmente as negras e as filhas da periferia, conquistarem seu espaço.
— A minha perspectiva era da mulher favelada. Quem passou pela Maré sabe desse lugar (...). Eu não tinha uma autoidentificação. Isso é uma construção que vai se formando. (...) Hoje eu estou nesse campo e fico muito feliz por minha trajetória e minha construção de vida virem muito antes desse um ano de mandato.
Ao final do evento, incentivou mais uma vez as mulheres a seguirem na luta pelos direitos:
— (Vou) sair daqui com o corpo, com o coração e com a mente fortalecidos para as batalhas que virão.
A "cria da Maré" não podia imaginar que a trajetória se encerraria poucas horas depois, alvejada a tiros, como muitas outras vítimas da violência no Rio de Janeiro. Morreu junto com ela o motorista, Anderson Pedro Gomes.
Vida política e violência policial
A trajetória de Marielle na política foi construída por conta do perfil de inconformidade. Em 2005, perdeu uma das melhores amigas vítima de bala perdida durante tiroteio entre policiais e traficantes na Maré. Foi um dos episódios que levaram a jovem a se engajar na política. Marielle passou a participar de protestos contra a violência policial nas favelas e no ano seguinte participou da campanha de Marcelo Freixo (PSOL), de quem se tornaria assessora.
Após 10 anos de trabalho como assessora do deputado estadual, candidatou-se também pelo PSOL e foi eleita para seu primeiro e único mandato. Ativista dos direitos humanos, no pouco mais de um ano como vereadora, denunciou a violência policial nas comunidades.
"Quantos jovens precisarão morrer para que essa guerra aos pobres acabe?", escreveu em sua página no Facebook ao compartilhar uma reportagem sobre a morte de Matheus Melo, de 23 anos, um dia antes de ser assassinada.
Segundo familiares, ele foi morto a tiros na favela do Jacarezinho, por policiais militares. Durante o mestrado em Administração Pública na Universidade Federal Fluminense, Marielle escreveu a dissertação sobre as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). O título já demonstrava sua visão sobre o tema: UPP: a redução da favela a três letras.
Intervenção federal
A vereadora integrava uma comissão criada em fevereiro para monitorar os trabalhos da intervenção federal na segurança pública do Estado. Ela vinha fazendo críticas à medida e dizia que a violência policial nas favelas havia aumentado por conta da intervenção.
Em uma das postagens, em 10 de março, afirmou que o 41° Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro estava "aterrorizando e violentando moradores" da favela de Acari.
"Nessa semana dois jovens foram mortos e jogados em um valão. Hoje a polícia andou pelas ruas ameaçando os moradores. Acontece desde sempre e com a intervenção ficou ainda pior", escreveu, inconformada.
Em entrevista a GaúchaZH, a socióloga Julita Lemgruber, também amiga de Marielle, resumiu o sentimento de quem perdeu uma das vozes que gritavam contra as desigualdades e a violência.
— A tentativa de calar a voz da Marielle vai voltar em cima desse pessoal como bumerangue. Vai multiplicar as vozes de todos que vêm denunciando abusos que estão sendo cometidos no Rio de Janeiro, vêm sendo cometidos há muitos anos pela polícia e que mesmo antes da intervenção federal têm se intensificado em algumas regiões.