Cada episódio de O Mecanismo, série da Netflix que retrata a Operação Lava-Jato, é precedido de uma tela preta estampada por letras brancas que avisam: "Este programa é uma obra de ficção inspirada livremente em eventos reais. Personagens, situações e outros elementos foram adaptados para efeito dramático".
As licenças poéticas – e os seus limites – buscadas pelo diretor José Padilha, de Tropa de Elite e Narcos, se converteram no principal ponto de controvérsia após a liberação dos oito episódios da primeira temporada. Em uma teia extensa e complexa como a Lava-Jato, a adaptação de minúcias poderia passar despercebida ou ser aceita com menos ressalvas pelo público.
Contudo, a opção dos roteiristas foi por modificar alguns fatos de fácil compreensão e identificação de protagonistas. Exemplo desta engrenagem utilizada pela série foi atribuir ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a célebre frase do senador Romero Jucá (PMDB-RR), que propôs ao interlocutor "estancar a sangria" causada pela Lava-Jato. Bastou para disparar a polêmica em torno da verossimilhança da produção.
GaúchaZH assistiu O Mecanismo e selecionou algumas das controversas cenas para comparar a versão ficcional e a realidade:
1 - Relação eleitoral inexistente
Na ficção
O operador financeiro Roberto Ibrahim (Alberto Youssef), interpretado na série com brilhantismo pelo ator Enrique Diaz, aparece em diversos momentos em meio à campanha de Janete Ruscov (Dilma Rousseff, do PT) à Presidência, inclusive em gravações de programas de TV, e acertando pagamentos de caixa dois com a marqueteira (Mônica Moura) da candidata.
Na realidade
Não há registro de que Youssef tenha atuado em campanhas presidenciais do PT. No esquema da Petrobras, a função do doleiro era movimentar o dinheiro distribuído a pessoas ligadas ao PP. Youssef foi fundamental para a queda de Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras, mas a prisão de figuras de maior relevo ocorreu por conta de delações posteriores. Inclusive a do próprio Costa.
2 - Destino e beneficiário incorretos
Na ficção
Quando a Polícia Federativa (Polícia Federal) se preparava para executar os mandados da primeira fase da Lava-Jato, Ibrahim (Youssef), então em São Paulo, sai da vigilância dos agentes e embarca em avião para Brasília. Ele viaja com um assessor e carrega uma mala de dinheiro.
Na madrugada, por acaso, descobre que seria preso. Decide aguardar a chegada da PF, mas, antes disso, determina que o assessor entregue a remessa de dinheiro à marqueteira (Mônica Moura) da campanha de Janete (Dilma).
Na realidade
A Polícia Federal (PF), de fato, perdeu Youssef de vista enquanto o monitorava em São Paulo, horas antes do cumprimento do mandado de prisão. No entanto, após tomar avião, ele não foi para Brasília. Seguiu para São Luís, no Maranhão, levando uma mala de dinheiro que supostamente seria destinada a ex-governadora Roseana Sarney (PMDB-MA). Detalhes do episódio estão descritos no livro do jornalista Vladimir Netto sobre a operação, obra que inspirou O Mecanismo.
3 - Retirada de provas
Na ficção
Enquanto a PF cumpre mandado de condução coercitiva e de busca e apreensão na casa de João Pedro Rangel (Paulo Roberto Costa), a sua filha e o genro, depois de alertados do curso da operação, aparecem em vídeo retirando provas do escritório particular do diretor da Petrobrasil (Petrobras).
Na realidade
O fato aconteceu. Familiares de Costa conseguiram chegar ao escritório pessoal dele, na Barra da Tijuca, no Rio, antes da PF, e retiraram documentos do local. A ação foi identificada em imagens e o Ministério Público Federal (MPF) denunciou o casal por ocultação de provas, mas ainda não houve julgamento.
4 - Conselho de ex-ministro
Na ficção
Mário Garcez Brito, o Mago (personagem baseado no advogado e ex-ministro da Justiça Marcio Thomas Bastos), surge em O Mecanismo articulando negociação para que empreiteiros envolvidos no esquema da Petrobrasil (Petrobras) paguem indenização a título de pedido de desculpas e para desacelerar a operação.
Na realidade
Aconteceu. Em setembro de 2014, seis meses após o início da Lava-Jato, advogados das maiores empreiteiras do Brasil foram ouvir a opinião de Marcio Thomaz Bastos, que propôs à confissão de culpas das empresas e o pagamento de indenização de R$ 1 bilhão à Petrobras. A proposta foi recusada pelos empreiteiros. Dois meses depois, na sétima fase da Lava-Jato, foram presos alguns dos maiores executivos do país, entre eles nomes de relevo de OAS, Camargo Corrêa e UTC. Ficaram de fora, naquele momento, os donos de Odebrecht e Andrade Gutierrez, que se tornariam alvos de mandados em junho de 2015. Thomaz Bastos morreu em novembro de 2014.
5 - Departamento de propinas
Na ficção
Ricardo Brecht (Marcelo Odebrecht) tinha esquema mais sofisticado de corrupção e se recusou a participar do acordo do clube de empreiteiras.
Na realidade
Foi descoberto que, de fato, a Odebrecht tinha esquema próprio e mais elaborado de pagamento de propina, conhecido como Setor de Operações Estruturadas.
6 - Visita a triplex
Na ficção
Empreiteiro mostra cobertura no triplex do Guarujá para João Higino (Lula) e pergunta o que ele acha. Higino respondeu que não era ele quem decidia.
Na realidade
Em depoimento em maio de 2017, diante do juiz Sergio Moro, Lula confirmou que visitou o apartamento. Depois, disse que sua mulher, Marisa Letícia, voltou em um segundo momento, o que ele só teria ficado sabendo depois.
— Nunca solicitei e nunca recebi apartamento. (...) Coloquei 500 defeitos no apartamento — disse Lula em sessão judicial.
Na versão de Leo Pinheiro, ex-executivo da OAS, Marisa Letícia, morta em fevereiro de 2017, era quem tratava da obra no imóvel.
7 - Estancar a sangria
Na ficção
Considerada uma das mais célebres frases registradas pela Lava-Jato, a expressão "estancar a sangria" da operação num "grande acordo com o Supremo, com tudo", foi parar na boca do personagem João Higino (Lula).
Na realidade
A frase foi dita pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR), alvo de diversos inquéritos e um dos aliados mais fiéis do atual presidente, Michel Temer. Jucá fez as afirmações em conversa com o ex-presidente da Transpetro Sergio Machado, que viria a assinar acordo de delação premiada, incluindo as gravações, feitas sem o conhecimento do interlocutor peemedebista. Após a conversa vir a público, em maio de 2016, Jucá, que era ministro do Planejamento, teve de deixar o cargo e retornar ao mandato no Senado.
8 - Troca de funções
Na ficção
No segundo episódio da série, a equipe escalada para cumprir o mandado de prisão de Ibrahim (Youssef) é liderada por "China", personagem inspirado em Newton Ishii, o "japonês da federal". Quando eles perdem Ibrahim de vista, a delegada Verena Cardoni, inspirada em Erika Mialik Marena, diz no seriado:
— Não sei se foi de propósito, mas a equipe que o Roberval (superintendente da PF) escalou em São Paulo era uma bosta.
Na realidade
Ishii, agente aposentado da PF, não chefiou equipes que fizeram cumprimentos de mandados de prisão e de buscas. Lotado no Núcleo Operacional da Superintendência da PF em Curitiba, prestava apoio na condução dos presos entre a carceragem da polícia e o Instituto Médico-Legal (IML), além de deslocamentos para audiências na Justiça Federal. A adaptação pode ter sido estratégia do diretor José Padilha para capitalizar a empatia do público com Ishii em favor do seriado. Quem chefiou, em São Paulo, a equipe que iria cumprir o mandado de prisão de Youssef foi o delegado Luciano Flores de Lima. Ele viria a ganhar relevância e protagonismo na Lava-Jato - executou o mandado de condução coercitiva do ex-presidente Lula.