“Este programa é uma obra de ficção inspirada livremente em eventos reais. Personagens, situações e outros elementos foram adaptados para efeito dramático”. O aviso nos créditos iniciais da série O Mecanismo, lançada na sexta-feira (23) pela plataforma de streaming Netflix, é recorrente em uma produção de ficção que bebe na fonte da história real. Mas, no clima de extrema polarização ideológica no qual o Brasil mergulhou — e às vésperas de uma eleição presidencial cuja previsão climática indica que se dará sob fortes emoções —, uma trama que claramente ilumina personagens e fatos recentes do conturbado quadro da política nacional não passaria incólume pelo escrutínio que vai além de seus méritos e defeitos narrativos e dramatúrgicos.
O Mecanismo tem como base para seu roteiro, assinado por Elena Soárez, o livro Lava Jato – O Juiz Sergio Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil, escrito pelo jornalista Vladimir Netto. A série de oito episódios, entretanto, destaca como protagonista não o juiz, mas o delegado da Polícia Federal Marco Ruffo ( Selton Mello), que cumpre uma gincana de gato e rato para prender um amigo de infância, o doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Díaz), tipo envolvido na remessa ilegal de dólares para o Exterior e íntimo de empreiteiros e políticos graúdos. Ruffo é inspirado no policial aposentado Gerson Machado, e Ibrahim faz às vezes do doleiro Alberto Youssef.
O motor dramático de O Mecanismo é ligado em 2003, 11 anos antes do início da hoje famosa operação comandada de Curitiba por Sergio Moro (que aparece como Paulo Rigo, vivido por Otto Jr.), e logo avança para 2013, em plena campanha pela reeleição da presidente do Brasil Janete Ruscov (Sura Berditchevsky), calcada em Dilma Rousseff.
Assim que episódios foram disponibilizados pela Netflix, teve início um caloroso debate — com opiniões de quem a viu e, sinal desses tempos, de quem não a viu —, sobretudo nas redes sociais. O ponto central da beligerância, afora a atuação avaliada de forma quase unânime como letárgica e sussurrante de Selton Mello, está no quanto o conceito de “inspirada livremente” pode permitir, por exemplo, alterar cronologias de acontecimentos e, mais ainda, colocar falas que ficaram famosas na boca de uns saindo da boca de outros.
Ao longo do fim de semana, o debate esquentou e colocou na linha de frente a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e o criador da série, o cineasta José Padilha (conhecido por assinar os sucessos Tropa de Elite 1 e 2 e por sua participação na série Narcos, sobre o traficante colombiano Pablo Escobar, também uma produção da Netflix).
Dilma e Padilha foram à linha de frente do debate
No domingo (25), Dilma divulgou uma nota intitulada O Mecanismo de José Padilha para Assassinar Reputações, na qual afirma: “(...) A propósito de contar a história da Lava-Jato, numa série ‘baseada em fatos reais’, o cineasta José Padilha incorre na distorção da realidade e na propagação de mentiras de toda sorte para atacar a mim e ao presidente Lula. A série O Mecanismo, na Netflix, é mentirosa e dissimulada”.
Dilma destaca em seu texto que o escândalo do Banestado se deu em 1996, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), e não em 2003, quando o presidente era Luiz Inácio Lula da Silva (PT), como é referenciado em O Mecanismo. E comenta sobre o momento que tem sido razão dos maiores reparos às liberdades do roteiro, quando o personagem que representa Lula diz que é preciso “estancar a sangria” para impedir que as investigações comprometam o governo.
“ (...) Na vida real, Lula jamais deu tais declarações. O senador Romero Jucá (MDB-RR), líder do golpe, afirmou isso numa conversa com o delator Sérgio Machado, que o gravou e a quem esclarecia sobre o caráter estratégico do meu impeachment”. Dilma diz ainda que Padilha “mente, distorce e falseia” e que seu trabalho não está baseado em fatos reais, “mas em distorções reais, em ‘fake news’ inventadas”.
Também no domingo, Padilha se manifestou em uma entrevista ao portal Observatório de Cinema, classificando a discussão sobre a fala de Jucá como “boboca”:
“(...) a repetição do uso de uma expressão idiomática comum, como ‘estancar a sangria’, não guarda qualquer significado.(...) O fato de o Jucá ter usado a expressão ‘estancar a sangria’ não a interdita. Escritores continuam livres para fazer uso dela”.
Segundo Padilha, “se a principal reclamação é o uso desta expressão, pode-se imaginar que o público petista está achando difícil negar todo o resto. Nada a dizer quanto aos roubos e desvios de verbas públicas praticados por Higino (personagem inspirado em Lula) e Tames (Michel Temer) com os empreiteiros…? Hummm… Interessante”.
Em relação ao caso Banestado, o esquema de operações financeiras ilegais começou a ser investigado pelo Ministério Público na segunda metade da década de 1990, no governo de Fernando Henrique. Mas foi em 2003, no primeiro mandato de Lula, que foi criada a força-tarefa para investigação do caso, que envolveu a delação do doleiro Alberto Youssef, posteriormente colaborador da Lava-Jato. Se o roteiro da trama descolou-se de dar o protagonismo ao juiz Sergio Moro, o que provavelmente acirraria ainda mais as discussões engajadas em lados opostos sobre ela, abriu-se a essas criticadas distorções factuais, como o Youssef da ficção ter sido detido em Brasília com mala de dinheiro endereçada à marqueteira da presidente inspirada em Dilma. Na verdade, o doleiro foi preso no Maranhão, com a dinheirama supostamente destinada à então governadora Roseana Sarney.
Padilha reforçou em sua manifestação: “Na abertura de cada capítulo da série, avisamos que fatos foram alterados para efeitos dramáticos. Para o pessoal que sabe ler, portanto, não há ruído algum!”.