Duas frases acompanham a abertura dos episódios de O Mecanismo, série da Netflix criada por José Padilha (Tropa de Elite) e que se passa durante as investigações da operação Lava-Jato: "Este programa é uma obra de ficção inspirada livremente em eventos reais. Personagens, situações e outros elementos foram adaptados para efeito dramático".
A produção, portanto, assume que não é documental, mas isso não impediu parte do público de questionar nas redes sociais a liberdade de criação do autor em uma narrativa sobre um período tão recente da história política do Brasil. Um movimento de boicote à Netflix começou a se desenhar na internet capitaneado por quem achou a série inventiva demais. O resultado: ameaças de cancelamento de assinaturas como forma de mostrar o desgosto com o conteúdo do seriado brasileiro produzido pela plataforma de streaming com sede nos Estados Unidos.
Inspirada no livro Lava Jato - O Juiz Sergio Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil, escrito pelo jornalista Vladimir Netto, a série causou polêmica principalmente por lançar mão de sua licença ficcional: alterou a autoria de diálogos que ficaram famosos, captados pelas investigações policiais, e mudou datas de acontecimentos para estruturar a trama. A ex-presidente Dilma Rousseff ficou incomodada com as alterações e criticou Padilha em um texto publicado em seu Facebook. Na postagem, chama o cineasta de "criador de notícias falsas" e aponta o que seriam alguns equívocos da série - como o escândalo do Banestado, que ocorreu em 1996 no governo FHC e se passa em 2003 na série (início do governo Lula), e a polêmica frase dita pelo senador Romero Jucá ao ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado sobre "estancar a sangria", atribuída na ficção ao personagem João Higino, baseado no ex-presidente Lula.
– Toda a ficção é uma licença para criar uma verdade. Hoje, as fronteiras estão muito dissolvidas. No documentário, também existe encenação, uma licença para se construir a verdade. Na ficção, se busca a condição de ser real, das pessoas acreditarem mesmo naquilo. Neste caso, o que pode confundir ainda mais é que se toma fatos tão recentes que ainda estão se desenrolando para criar a ficção. É um risco produzir algo em cima do calor dos fatos, quando não há certo distanciamento. Mas, como ficção, há essa licença, de ter o seu recorte e o seu ponto de vista - explica João Guilherme Barone, professor de produção audiovisual da PUCRS que ainda não assistiu à série, mas acompanha o trabalho de Padilha e a discussão sobre os limites entre ficção e realidade no cinema.
Já para Boca Migotto, professor de realização audiovisual na Unisinos que assistiu parte de O Mecanismo, a série é bem feita, mas os diálogos deste tipo de seriado merecem uma atenção redobrada da equipe de produção e do público. O limite entre manipulação e dramatização dos fatos, segundo o especialista, é tênue.
– Mudar diálogos que sabemos que são atribuídos a alguns personagens da vida real e atribuir a outros dentro da ficção me parece trazer um discurso que está por trás. Vai além dos efeitos dramáticos. Me chamou muita atenção também a caracterização do Lula e da Dilma, caricatas e forçadas – opina o professor e cineasta. – O espectador comum vai comprar a história, geralmente não consegue discernir tudo, mesmo com o recado de ser ficcional – completa Migotto.
Diretor de O Jardim das Aflições – documentário sobre o escritor Olavo de Carvalho, um dos principais representantes da ala conservadora no Brasil –, Josias Teófilo foi fisgado por O Mecanismo: assistiu a todos os episódios em maratona. Na opinião do cineasta, é o pior trabalho de José Padilha, por ter atuações ruins e problemas de cunho artístico, mas a principal qualidade é ter se atido ao que foi noticiado pela imprensa durante a Lava-Jato:
– Me empolgou ver encenado o que todo mundo acompanhava nos noticiários. E foi importante ver como as coisas funcionaram por dentro. Não me causou estranhamento a questão da frase do Jucá, o Lula bem poderia ter dito isso. A licença poética é total. Ficou bom o que ele inventou, os dramas pessoais com o personagem do Selton Mello, por exemplo. Não é documentário. Tudo na arte está no âmbito do possível, basta ser interessante. Ninguém vai ver a série para se informar sobre a Lava-Jato.
Boicote repercute nas redes sociais
A iniciativa de boicote à Netflix ganha espaço nas redes sociais e lembra o mesmo movimento contra a Queermuseu, exposição que virou notícia mundo afora por ter sido acusada de apologia à pedofilia, levando ao fechamento da mostra - depois de apuração do Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul (MPF/RS), ficou comprovado que as acusações não procediam. Quem era contrário à exposição aderiu aos protestos que pediam para correntistas cancelar suas contas no Santander, banco que mantém o Santander Cultural, espaço no qual Queermuseu ficou em cartaz.
Para Barone, a relação entre audiência e obra está muito mais complexa atualmente. O professor defende que impedir que qualquer obra seja feita ou veiculada é muito grave:
– Boicotar um filme ou uma obra sem ter visto é muito complicado. A decisão, a escolha, a avaliação ou o apoio é a partir da obra conhecida. Posso não gostar, mas fui lá e vi. Temos o direito de selecionar o que queremos ver. Com essa febre do ódio que temos visto por aí está muito fácil passar do estágio de crítica para o boicote, impedindo o outro de ver. O direito é de protestar, mas não posso impedir as pessoas verem, por mais que não me agrade. Esse é um limite mais complexo ainda, um debate que vai além do que é verdadeiro ou não.