O jornalista mineiro Vladimir Netto é autor do best-seller Lava-Jato: o juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil, que encabeça desde seu lançamento, em junho, a lista dos livros de não-ficção mais vendidos no país e que agora virou série na Netflix - O Mecanismo, criada por José Padilha estreou na última sexta-feira (23 de março de 2018).
Nesta entrevista concedida a GaúchaZH antes do lançamento da série, ele conta como foi a reconstituição de momentos-chave dos primeiros dois anos da investigação e como foram as negociações com o cineasta José Padilha para a aquisição dos direitos autorais da obra (publicada pelo selo Primeira Pessoa da editora Sextante). Produzido ao longo de 17 meses, com 132 horas de entrevistas, o livro teve a presença do próprio Moro em seu lançamento, em Curitiba.
Filho dos jornalistas Marcelo Netto e Miriam Leitão, Vladimir nasceu meses depois de a mãe ser torturada na prisão, já grávida, durante a ditadura militar. Hoje, aos 43 anos, é repórter da Rede Globo em Brasília e vice-presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
Diante das polêmicas que envolvem a Lava-Jato, o autor diz que sua principal intenção foi reconstituir os fatos, evitando teses. Embora se mostre otimista diante do marco histórico que a operação representa, acredita que seus desdobramentos dependerão dos próprios brasileiros:
– O Brasil não vai sair igual da Lava-Jato, pode melhorar ou piorar. A escolha depende de nós.
Como foi a decisão de publicar o livro com a Operação Lava-Jato ainda em curso? O livro acaba com a sessão da Câmara que aprovou o impeachment da presidente Dilma. Em que momento você decidiu: vou escrever até aqui?
Acho que a operação já tinha amadurecido a ponto de poder publicar, já tinha acontecido tantas coisas importantes, transformadoras... Eu tinha marcado a data para quando a Lava-Jato completasse dois anos, em março de 2016. Mas aí no dia 16 de março, às vésperas do aniversário, foi quando foram divulgadas as conversas entre Lula e Dilma. E no dia 17 foi a posse do Lula como ministro. O livro começa com essa cena por causa disso, era muito interessante. Como o noticiário estava muito quente, pedi para dar um tempo. Tudo podia acontecer. Aí a gente segurou mais um pouco, consegui fechar só em maio, e o livro foi lançado em junho. Coloquei até a queda do Fabiano Silveira, ex-ministro da Transparência, que caiu depois de uma matéria minha, no Fantástico. Então todo o episódio do PMDB eu ainda consegui colocar no livro (a prisão do Japonês da Federal e a renúncia do Eduardo Cunha ficarão para o segundo livro). E esse capítulo foi muito importante, porque mostra que a operação está além de qualquer partido.
Quando você fechou o livro, tinha receio de que houvesse uma reviravolta na operação?
Tinha. E tenho até hoje. Eu brinco que, se não tivessem colocado um prazo, ainda estaria escrevendo. Tiveram que arrancar o livro de mim, eu estava completamente imerso. Claro que podem acontecer ainda mil coisas, mas era importante registrar esses dois primeiros anos da Lava-Jato, até para as pessoas poderem ter um instrumento de consolidação do que já passou. Porque é tanta coisa que as pessoas até esquecem, perdem o fio da meada.
O livro é como um thriller, descrevendo cenas, e menos defesa de teses. Como foi a construção desse formato? Foi uma maneira também de tentar escapar da polarização que divide o país?
Exatamente. Foi uma maneira de fazer o que eu me propus, que era um livro de jornalismo, de reportagem. E também de não cair nessa polarização. Tentei fazer uma coisa jornalística, fui atrás da reconstituição dos fatos. Não quis dar nenhuma opinião. O livro só tem uma opinião: que esse é um momento histórico, uma oportunidade, que o Brasil pode construir algo em cima dela. Fora isso, o que eu quis fazer foi uma reconstituição do que aconteceu, até para ajudar na compreensão de tudo, agora e no futuro. É o primeiro rascunho, vamos dizer assim, da história. E o ritmo de thriller tinha esse objetivo de prender o leitor, porque é uma história difícil, muitos personagens.
Vai virar série da Netflix. Como foi a aproximação com o diretor José Padilha?
Foi algo que eu realmente não imaginava. Chegou por indicação de um amigo em comum. O Padilha queria fazer algo sobre Lava-Jato e ficou sabendo que eu estava escrevendo o livro. Ele me ligou, e aí fui mostrando para ele os textos, e o Padilha foi curtindo. Ele comprou os direitos antes do lançamento do livro.
Você tem participado da produção da série?
Tenho acompanhado a produção do roteiro. Faço algumas explicações, sou uma espécie de consultor, dou uns pitacos. Estão querendo fazer algo bem bacana, bem próximo da realidade.
Vai ser gravada no Brasil?
Sim. Vai ser feita em português, com atores brasileiros. E deve ter cenas gravadas em diferentes cidades, como Curitiba, São Paulo, Brasília, Rio.
E para o elenco, já tem alguma indicação?
Isso ainda está em discussão. O Padilha me falou que queria o Dan Stulbach para interpretar um político, e que ele poderia escolher quem quisesse. Aí fui no programa Fim de Expediente, que o Dan apresenta na CBN, e falei para ele. Ele falou que topa, aí deixou para o público escolher quem seria, o público votou no Cerveró. Então não sei (risos).
Quem poderia interpretar o Lula ou o Moro?
Não sei... O Wagner Moura é um ótimo ator também, mas não sei. Participo mais do roteiro.
O que mais surpreendeu ao longo da apuração?
Tantas coisas... Na reconstituição das cenas, me surpreendeu a maneira como o Marcelo Odebrecht foi preso, como o Delcídio foi preso. No caso do Marcelo, fiquei surpreso com o grau de profissionalismo que fizeram para chegar na casa dele, que é um condomínio, um dos mais luxuosos em São Paulo. E, no caso do Delcídio, fiquei impressionado como ele sentiu a coisa. Ele conta que comeu um camarão, tomou whisky na noite anterior, dormiu, teve uma dor de cabeça, acordou à meia-noite, não sabia o que era. Aí, às seis horas da manhã, toca o telefone: "O senhor pode abrir a porta?". E ele perguntou: "Por quê?". Aí, pum, batem na porta! Tudo isso foi mexendo comigo. Porque você fica diante da realidade nua e crua da corrupção brasileira. Quando eu comecei a acompanhar, sabia que teria de mergulhar muito fundo. Então, às vezes, perdido entre documentos, dá uma surpresa ver como foi possível acontecer algo desse tamanho no Brasil, um assalto a nossa maior empresa (a Petrobras). E você não espera ver os policiais chorando porque conseguiram uma vitória contra a corrupção. Quando eles contam, eles choram. Porque é difícil pra caramba vencer a corrupção. A gente tem sempre a ideia de que o país pode melhorar, e eu sou um otimista. Fico feliz de estar atuando como jornalista, contando parte dessa história.
Em relação ao juiz Sergio Moro, você conta não só a parte pública, mas também questões familiares e até a "história de amor" com a mulher. Como foi entrar na intimidade dele?
Não gosto de falar quem entrevistei, muita gente falou comigo em off, garanti sigilo da fonte, e foi assim que consegui as melhores histórias. Mas falei com muita gente próxima. Vi que ele é uma pessoa normal, com qualidades e defeitos. É uma pessoa competente, bem formada, que estava no lugar certo na hora certa. Um pouco do sucesso da Lava-Jato tem a ver com o perfil dele, o fato de ele ser "caxias", determinado.
Ao mesmo tempo em que é visto como herói por alguns, Moro também é criticado por setores de esquerda e juristas, por ser considerado parcial, afoito, especialmente após a contestada divulgação do áudio entre Lula e Dilma. Como você vê Moro?
Eu não vejo ele nem como herói, nem como vilão. Vejo como um ser humano normal, com qualidades e defeitos, que comete erros, mas também acerta. E, acima de tudo, está bem intencionado. É um servidor público, tentando fazer um bom trabalho.
Moro virou um símbolo da Lava-Jato, mas como o próprio livro descreve, a operação é fruto do empenho de toda uma força-tarefa. Há um excesso de personalismo em torno de Moro?
Ele é protagonista dessa história, é inegável. Mas a Lava-Jato não teria acontecido se não fosse uma legião de profissionais, como os policiais federais, muito bem preparados, os procuradores, determinados e detalhistas, um grupo de advogados bem treinados... Estamos diante de uma nova realidade. O uso intensivo da delação premiada está criando uma nova realidade no cenário jurídico nacional. A imprensa também teve papel importante em várias descobertas. A Lava-Jato é uma construção coletiva.
Você escreve no final do livro que a Lava-Jato pode levar à refundação do sistema político e que é uma oportunidade para elevar a qualidade da nossa democracia. Mas, dos ministros de Temer, nove estavam envolvidos na Lava-Jato.
Acho que, realmente, a Lava-Jato pode melhorar a qualidade da nossa democracia. Mas é preciso estar sempre atento. A vigilância tem de ser constante. A luta contra a corrupção é uma luta diária. É claro que a Lava-Jato fez muito, mas é só um caso, não vai mudar o Brasil se não houver uma reflexão coletiva. A decisão de mudar ou não o Brasil a partir do exemplo que a Lava-Jato deu é dos brasileiros, não é do juiz Sergio Moro nem de nenhum dos investigados. Quero acompanhar agora o que vai acontecer. A sociedade vai escolher o quê? O Brasil não vai sair igual da Lava-Jato, pode melhorar ou piorar. A escolha depende de nós. A Lava-Jato está sempre possibilitando que a gente tire uma lição. Já mostrou que é possível ser mais eficiente no combate à corrupção. É como se a gente vivesse um quarto consenso na sociedade brasileira: o primeiro era o retorno à democracia, depois o de que era preciso combater a inflação. O terceiro, o de que era preciso redistribuir a renda, para combater a desigualdade. E agora tem um quarto consenso: o de que é preciso combater a corrupção. Vencer a corrupção me parece impossível, mas é possível reduzi-la.
Há quem aponte um enfraquecimento das investigações após a troca de governo. Qual a sua impressão a respeito?
Acredito que não. Há um longo caminho pela frente. A Lava-Jato vai andando no seu próprio ritmo, independentemente das repercussões políticas que provoque. Acho que vai continuar avançando. Pode se multiplicar, e pode chegar no momento decisivo que é o julgamento dos políticos no Supremo. Isso vai acontecer. Não acredito que o impeachment ou qualquer outro fato político possa, a essa altura, interferir no andamento da Lava-Jato.
Tivemos recentemente a polêmica em torno da delação de Léo Pinheiro, suspensa por alegado vazamento, apesar de todas as anteriores também terem vazado. Não seria uma evidência de que há uma mudança de interpretação?
Acho que não. Isso, me parece, foi uma decisão estratégica do Ministério Público, que achou que poderia conseguir mais informações fora da delação e depois retomar as negociações, porque o pessoal não estava colaborando muito. O uso do instrumento da delação ainda está sendo amadurecido. A decisão de recuar na negociação com o Léo Pinheiro pode ser discutida, se foi boa ou não, mas foi uma decisão estratégica.
Mas o argumento de que houve a suspensão por vazamento ficou complicado de engolir.
Não quero fazer juízo de valor desses fatos.
Outra controvérsia foi a fala do ministro da Justiça, Alexandre Moraes, antecipando prisão do ex-ministro Antonio Palocci.
Que eu saiba, como disse a nota da Polícia Federal, o ministro é avisado apenas que tem de ficar em Brasília, não pode sair. Então ele pode ter falado de maneira retórica: "vai ser hoje", "vai ser semana que vem"... Mas acho que o momento e a maneira como ele falou criou todo esse problema.
A fala reforça a ideia de interferência política.
Mas acho que o próprio avanço das investigações mostra que a Lava-Jato segue, independentemente do barulho político. Apesar das críticas que a Lava-Jato recebeu, a investigação seguiu, e o Mantega e Palocci foram presos.
Os críticos dizem que ela seria mais rígida quando se trata do PT.
Acho que não. Por exemplo, a firmeza da atuação do Ministério Público em relação ao Eduardo Cunha é uma prova de que isso não é exclusividade do PT. Não vejo direcionamento partidário. O direcionamento da operação é para investigar a corrupção. E, infelizmente para nós, brasileiros, o esquema envolvia vários partidos, não apenas de esquerda, mas de direita e centro também. Não acho que ela seja mais dura com um partido ou com o outro.
Você já disse em outra entrevista que a realidade é melhor do que a ficção. Qual a cena mais surreal que você reconstituiu?
A mais surreal é a quase fuga do Youssef (o doleiro Alberto Youssef). Porque tudo indicava que ele iria fugir. E, se ele tivesse fugido, a história poderia ter sido totalmente diferente. Teve um cochilo da Polícia Federal, que deixou ele sair de São Paulo sem perceber, depois a sorte de encontrá-lo no Maranhão, e o descuido de alertá-lo da operação. Ele tinha um avião e R$ 1,6 milhão numa mala. Podia fugir e viver desse dinheiro. Essa cena é muito simbólica. O Youssef disse que ficou porque não gosta de fugir de problema. Mas acho que ficou porque achou que não ia dar muito problema. Porque essa era a cultura no Brasil, a cultura da impunidade. E é isso que a Lava-Jato ousou tentar mudar.
Uma das críticas ao livro é de que não esclarece os mistérios da Lava-Jato. Outra é de que enalteceria a atuação das autoridades sem investigar suas contradições. Como você responde a essas críticas?
Tem mistérios que ninguém revelou ainda, nem a polícia descobriu. A Lava-Jato é que tem de revelar os mistérios, a minha opção foi por reconstituir os fatos, dando cor e emoção a uma história densa e difícil. Queria que a história prendesse as pessoas, para que tivesse mais gente lendo, e estou muito feliz com a repercussão. O livro está há 14 semanas na lista dos mais vendidos da Veja e da Folha, em não-ficção. Em agosto até ganhei na lista geral, que inclui autoajuda.
Você já contou que seu nome é Vladimir por causa do Lênin. E disse que escreveu o livro porque é favorável à democracia, lembrando que, quando você nasceu, seus pais estavam presos e sua mãe, a jornalista Miriam Leitão, foi torturada. Como isso marcou a sua vida?
Marcou em vários aspectos. A minha mãe foi presa e torturada grávida. Quando saiu, estava anêmica, com 39 quilos, no sexto mês de gravidez. Os médicos a desenganaram, disseram que, se eu nascesse, nasceria com problemas. E um dos efeitos disso no bebê... não sei nem te dizer. Depois, no começo da minha vida, fiquei morando um período na casa dos meus tios, porque a perseguição continuou. Quando minha mãe botou meu nome, o advogado falou: "Você não quer colocar outro nome? Esse nome é praticamente uma confissão de culpa... em homenagem ao Lênin, Revolução Russa!". E a mãe disse: "Não, vai ser Vladimir mesmo". Meu pai até brincou: "Ah, diz que é por causa do Maiakóvski (poeta)". E logo depois teve o caso do Vladimir Herzog (jornalista torturado e morto pela ditadura militar em 1975). Então aquele nome era um nome revolucionário. E isso marcou muito. Quando fiquei mais velho, isso me fez ser líder estudantil. Mas quando virei jornalista, nunca fiz muita matéria sobre a ditadura. Meu irmão (Matheus Leitão) fez, até ganhou um prêmio Esso com uma matéria sobre o Araguaia, mas eu nunca me senti confortável para escrever sobre esse assunto. Meu irmão está escrevendo um livro sobre a história da minha família, e fez uma matéria. Ele foi atrás do cara que entregou nossos pais na ditadura. Ler essa matéria foi uma coisa. Me emocionou demais, demorei três dias para ler. Mas eu me considero um abençoado. Acho que foi Deus que me salvou ali. A gente ganha uma chance na vida. Tem que fazer o melhor possível dela. Escrever esse livro foi também tentar passar para os outros o que eu tinha visto de melhor nessa história, como se fosse uma retribuição.