Uma rede de acolhimento. É assim que os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) podem ser definidos por servidores e usuários do sistema voltado para o atendimento de saúde mental. Em Caxias do Sul, essas unidades, que fazem parte da Rede de Atenção Psicossocial, atendem há pelo menos duas décadas, dando auxílio psicológico e melhorando a qualidade de vida de muitos caxienses. A partir da pandemia, o serviço também registrou um aumento de casos. Na área de adultos com transtornos mentais graves, o atendimento passou de 330 pacientes, em 2019, para 450, em 2022 — um crescimento de 36,36%.
— Temos percebido de uma forma muito importante a necessidade dos serviços para saúde mental. Isso certamente é um dos efeitos da pandemia, onde muitas pessoas acabaram desenvolvendo doenças mentais e precisando acessar a rede e os serviços de saúde mental — ressalta a secretaria municipal da Saúde, Daniele Meneguzzi.
A gestora da pasta explica que a procura por atendimento já era bastante expressiva antes mesmo da pandemia:
— Estamos aí na busca e desenvolvimento de diversas estratégias, de modo a fazer frente a essa nova demanda. Uma vez que a saúde mental tem se mostrado bastante impactante em índices de morbidade e também de mortalidade, e precisamos como município desenvolver ações que sejam bastante concretas e que possam ajudar a nossa população nesse sentido. A saúde mental muitas vezes acaba negligenciada pelas pessoas, e aí quando as pessoas buscam esse atendimento, já se encontram num estágio avançado da doença — analisa Daniele.
Na Rede Caps, cada unidade atende um público-alvo (veja mais abaixo). Entre eles está o Cidadania, voltado para os adultos e idosos com transtornos mentais graves e persistentes. O registro do aumento na demanda motivou a prefeitura de Caxias do Sul a projetar o Caps Integração, inaugurado em 18 de abril deste ano e que agora absorve parte dos usuários do sistema que frequentava o Cidadania. Cada um dos cinco Caps da cidade tem uma capacidade máxima de 350 usuários.
— Caxias é uma cidade de 500 mil habitantes e tinha um Caps só para isso, para esse público em específico e não estava dando conta. O Caps Cidadania já estava superlotado. Então, vínhamos tentando atender a demanda, mas já de um jeito que não estava legal. Nessa gestão se conseguiu que pudesse criar um novo serviço para atender esse público — explica a diretora da Rede de Atenção Psicossocial de Caxias, Marina Guerra.
Esse é um braço dos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) voltados para saúde mental. Mas traz um exemplo de atendimento voltado para o afeto e com o objetivo de possibilitar uma reintegração na sociedade para os usuários dos Caps. As unidades prestam apoio multidisciplinar, contando com outros profissionais além de psicólogos e psiquiatras, como fonoaudiólogos e assistentes sociais. Os usuários do sistema também participam de oficinas terapêuticas, contando com desenho e artesanato, e atividades como grupos de fala.
O diferencial dos Caps é ter uma abordagem completa, como explica diretora técnica da Rede de Atenção Psicossocial, Luciana Lunardi de Almeida. Cada caso é avaliado e recebe um tratamento específico. Além disso, as equipes podem começar o cuidado com o paciente a partir da casa dele, contando com apoio de familiares, amigos, vizinhos e da unidade básica de saúde (UBS) que atende na região.
— Se tem aquela pessoa que está grave em casa, que não sai de casa, num primeiro momento a equipe do Caps vai até ela fazer uma avaliação, entender o que está acontecendo, fazer uma proposta e ver o que precisa fazer. Os Caps surgiram para evitar as internações, as institucionalizações. Então, ele sempre vai trabalhar com a lógica de fazer o cuidado no território, como a gente diz, em que a pessoa fique em casa, sem precisar ir num espaço à parte, que é uma internação. O trabalho é todo nesse sentido, de poder ter uma qualidade de vida e isso implica de não ter que ir e ficar trancada num espaço — relata Luciana.
Serviço nasceu do movimento da Reforma Psiquiátrica
Em 18 de maio, é celebrado o Dia da Luta Antimanicomial, data que marca a Reforma Psiquiátrica, movimento que revolucionou o atendimento para saúde mental no Brasil. Uma das consequências dessa luta foi a criação dos Centros de Atenção Psicossocial, pensados a partir da Lei da Reforma Psiquiátrica, aprovada em 2001. Um objetivo dessa revolução foi mudar a abordagem dos tratamentos que, no século passado, eram voltados principalmente para internações.
A partir desta lei, hospícios e manicômios passaram a ser fechados pelo Brasil, dando lugar ao atendimento mais humanizado e focado na necessidade de cada paciente.
— Ele realmente evita internações ou diminui quantidade de internações. Nós tivemos casos de pessoas que internavam muitas vezes, ao longo da vida, 40 ou 50 internações. Ou seja, boa parte da vida internada. Quando começou a ser atendido no Caps, diminui. Então, vale a pena investir nesse formato de serviço porque ele dá um resultado positivo — destaca Marina Guerra.
A internação ainda pode acontecer, mas é o último recurso. Muitas vezes, é uma alternativa utilizada para proteção de terceiros.
Mensurar o atendimento dos Caps pode ser difícil. Mas, Marina Guerra e Luciana de Almeida, que trabalharam cerca de 15 anos dentro das unidades antes de assumirem o trabalho de gestão, afirmam que a melhora dos usuários do sistema é notada com o passar do tempo.
— Estamos falando de casos que a gente consegue nunca mais internar a pessoa, até em casos que no lugar de internar 10 vezes, vai internar três naquele ano. Isso já é uma melhora na qualidade de vida, já está fazendo diferença na vida daquela pessoa. Não é mensurável, mas quem está no dia a dia atendendo, consegue ver, que sabe o que significa a pessoa sair da sua casa e ir até o Caps — tratando de alguém que não saia de casa. Mas ele continua tendo esquizofrenia, continua ouvindo vozes? Continua, mas ele consegue sair de casa, vai até o serviço, toma o remédio. Enfim, é todo um processo que quem olha de fora e não tem noção, às vezes acha que é muito pouco. Mas que significa muito na vida das pessoas e que não é mensurável — compara Luciane.
“Da água para o vinho”, diz paciente
O acolhimento e o afeto são sentidos por quem frequenta os Caps. João* (nome fictício para preservar a identidade) encontrou neste sistema um apoio que mudou a sua vida. Frequentando há nove anos a Rede de Atenção Psicossocial do SUS, ele demonstra que o serviço também possibilita integração com a sociedade e o desenvolvimento de autonomia.
— Eu me sinto muito bem, eu estava com a assistência psiquiátrica que não era adequada antes. Quando eu vim aqui, nossa, foi da água para o vinho… Eu estou bem feliz — destaca João, que é músico há 30 anos.
Atualmente, ele tem acompanhamento psiquiátrico por meio da rede, em que frequenta uma das unidades para o atendimento. Mas, também consegue contato de casa, sempre quando necessário. Antes, João participava das oficinas oferecidas, em que desenhava formas abstratas e aprendeu a produzir ímãs de geladeira, que guarda com carinho. O músico também adora conhecer amigos por meio do Caps.
— Eu gosto do convívio com as outras pessoas… O contato com eles aqui, quando tem algum evento — conta João.
Importante alertar a população para que continue procurando ajuda quando entenderem necessário quanto a questões de saúde mental. A psicologia e a psiquiatria existem para ajudar a lidar e amenizar o sofrimento humano
TÂNIA MARIA CEMIN
Psicanalista e professora da UCS
O caso de João não é único. Técnico de referência de uma das unidades do Caps, o psicólogo Roberto Rigotti acredita que o diferencial está na forma como cada usuário é recebido e tratado. O servidor comenta que se surpreende ao observar o desenvolvimento e como cada paciente descobre as suas potencialidades.
— Não é só isso (o remédio) que vai proporcionar uma melhora. É também acolher, ouvir as histórias, ajudar a organizar a vida, ajudar a reconhecer potencialidades, aceitar a doença e aceitar que precisa do tratamento. Essa é a importância do Caps. Para maioria, eu te diria que o suporte é um fim bem importante. Através do respeito da individualidade de cada usuário, paciente, a gente consegue justamente isso, que eles se sintam valorizados, acolhidos e respeitados dentro da singularidade de cada um, na velocidade que cada um tem de fazer os seus processos e cumprir com o desenvolvimento de vida. Isso, fundamentalmente, faz com que eles se sintam melhores e que eles melhorem, se organizem e busquem cumprir com o objetivo de vida — destaca o psicólogo.
O que pode motivar o aumento do atendimento
Com experiência de 30 anos na área clínica, a psicanalista, pesquisadora e professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Tânia Maria Cemin, acredita que dois motivos principais podem ter levado ao aumento do atendimento. O primeiro deles é a pandemia.
— Primeiramente, evidencia-se que acabamos de passar por um momento pandêmico em função de um vírus assustador, em que tivemos que modificar significativamente nossas atividades laborais e nos mantermos em isolamento social. Isso com certeza teve, e ainda terá, repercussões no âmbito psíquico, deixando as pessoas mais ansiosas, principalmente pelo fato de que não se conhecia o vírus que estávamos lidando e também pela demora em tratamentos efetivos. O mesmo transcorre com a possibilidade de sintomas depressivos, os quais muitas vezes foram acionados pela incerteza e também pela forma como alguns processos de luto foram vivenciados. Ainda estamos bastante alertas, com medo da possibilidade de retorno desse momento mais angustiante da pandemia. Considero que esses sintomas de ansiedade e de depressão fazem parte e não teria como ser muito diferente. Houve uma mudança grande e incertezas importantes, e não tem como as pessoas não sentirem isso. Não somos robôs para nos desligarmos do que está acontecendo —analisa a professora e psicanalista.
A especialista considera que a pandemia também pode ter causado uma piora em quadros que antes podiam estar controlados. Tânia Maria pontua que o período não pode ser considerado responsável por criar quadros de transtornos mentais.
— Algumas pessoas que já não estavam muito bem psiquicamente antes da pandemia, mas que estavam conseguindo lidar com sua rotina diária de forma adequada, se desorganizaram mais em função da necessidade de mudanças. Assim, provavelmente a pandemia não criou patologias mentais, mas a angústia do momento vivenciado por todos nós evidenciou ou aflorou a necessidade de cuidados psíquicos específicos em algumas pessoas. Quem já tinha algumas dificuldades em relação à ansiedade e depressão, por exemplo, possivelmente buscou ajuda assim que o susto maior foi amenizado, indo até as UBSs e sendo encaminhado para os Caps. Portanto, é importante ressaltar que a pandemia não criou transtornos mentais, mas propiciou o desencadeamento em pessoas que já tinham alguma dificuldade em relação àquela patologia — observa Tânia Maria.
A pesquisadora também acredita que a população está sendo cada vez mais esclarecida sobre os direitos em relação à saúde mental. Esse segundo motivo ajudaria a explicar uma maior procura para os atendimentos.
— Entendo como preocupante esse aumento de 36% junto a dois Caps de Caxias do Sul. Possivelmente essa demanda se refere a uma população que se desorganizou mais em função das exigências da pandemia e, também, diz respeito a uma demanda represada, que agora identifica a possibilidade de buscar ajuda para suas dificuldades e se mobilizou para tal. Importante alertar a população para que continue procurando ajuda quando entenderem necessário quanto a questões de saúde mental. A psicologia e a psiquiatria existem para ajudar a lidar e amenizar o sofrimento humano — conclui.
Acolhimento para diferentes públicos
Caxias do Sul tem cinco unidades de Centro de Atenção Psicossocial, que são voltadas para públicos diferentes. Além dos Caps Cidadania e Integração (para adultos com transtornos mentais graves), há também:
- Caps Infantojuvenil Mosaico Aquarela: para crianças e adolescentes com transtornos mentais graves;
- Caps Reviver e Caps AD Novo Amanhã: para adolescentes, adultos e idosos usuários de substâncias psicoativas, como álcool e drogas.
A rede de atenção à saúde mental do SUS na cidade conta ainda com centros como o Apoiar, que atende especificamente crianças, adolescentes e famílias que sofreram ou vivenciaram algum tipo de violência, e o Cais Mental, um ambulatório com atendimentos psicológicos e psiquiátricos para pessoas de todas as idades.
Em algumas situações, pacientes do Caps também podem ser atendidos pela Unidade de Acolhimento Adulto, que dá a possibilidade de moradia transitória para pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente do uso de álcool e outras drogas, ou pelos Serviços Residenciais Terapêuticos, que são moradias que acolhem adultos com transtornos mentais graves e persistentes.
Como procurar ajuda
:: Há diferentes maneiras para buscar serviços de apoio para saúde mental por meio do SUS em Caxias. Inicialmente, a população pode procurar uma UBS para avaliação e encaminhamento para o atendimento mais recomendado.
:: Para adultos com transtornos mentais, os Caps Cidadania (que atende pelo telefone 54 3228-5519) e Integração (54 98418-6410) são abertos ao público, bem como o Caps Infantojuvenil Mosaico Aquarela (54 3901-1296), que atende crianças e adolescentes com transtornos mentais. Os caxienses também podem procurar os Caps Reviver (54 3901-1302) e AD Novo Amanhã (54 2101-0555) para casos em que existe o vício em substâncias psicoativas, como drogas e álcool.
:: Nos casos que envolvem vítimas de violência, o encaminhamento ao sistema é feito por meio da Rede de Proteção (Conselho Tutelar, Poder Judiciário, Delegacia e Ministério Público).
:: Mais informações podem ser obtidas por meio da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), no telefone (54) 3290-4496.