No cenário pós-covid-19, Caxias do Sul enfrenta um desafio na saúde pública. O município tem fila de cerca de 40 mil pedidos para consultas especializadas e nove mil solicitações para cirurgias eletivas (seis mil, apenas do município, e três mil pacientes das outras 48 cidades atendidas por Caxias), conforme números da Secretaria Municipal de Saúde (SMS). A alta demanda leva ao debate de como reduzir o represamento, uma vez que mais de 27% do orçamento da prefeitura foi usado para o setor em 2021 — R$ 338 milhões (com previsão de quase R$ 480 milhões para 2022) — e que cada vez mais caxienses procuram o Sistema Único de Saúde (SUS). O cálculo da SMS é que a população que procura a rede seja 20% maior do que em 2021.
Entre as ações imediatas, a prefeitura entrou em acordo para manutenção de 34 leitos (16 de UTI e 18 clínicos/cirúrgicos), que tinham sido criados para atender casos envolvendo covid-19. Desde março, o município investe R$ 900 mil mensais nesses leitos, que estão no Hospital Geral (HG) e no Hospital Virvi Ramos.
— Essa contratação de leitos se mostrou bastante necessária. Tanto é que o município acabou acordando esse acréscimo para fazer frente aos dois cenários que temos agora. Um cenário de mais pessoas dependendo do Sistema Único de Saúde e a aproximação do inverno, que traz consigo as doenças sazonais que ocasionam uma espera e um represamento de atendimentos eletivos — destacou a secretária de Saúde, Daniele Meneguzzi, ao Pioneiro.
Para o segundo semestre, a expectativa é que o município consiga mais consultas, exames e procedimentos cirúrgicos eletivos pelo programa Cirurgia Mais, do Governo do RS, e por investimento de recursos disponíveis a partir do pagamento de dívidas do Estado para a cidade.
— A administração pretende utilizar um recurso que nós recebemos do pagamento de dívidas que o Estado tinha com o município para contratação de ampliação de cirurgias, consultas e exames — explicou Daniele.
Nesta quarta-feira (11), durante a reunião pública sobre saúde convocada pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente (CSMA) da Câmara dos Vereadores, a secretária voltou a tocar na expectativa com o programa Cirurgia Mais. A parceria depende da inscrição dos próprios hospitais e, de acordo com Daniele, a adesão na cidade foi baixa por questões institucionais e de capacidade.
Ao mesmo tempo, ela afirmou ter entrado em acordo com o Hospital Virvi Ramos para realizar um mutirão de cirurgias. Sem a adesão de outras instituições de Caxias, a secretária sugere oferecer a parceria para unidades da região, uma vez que a rede pública de Caxias atende 48 cidades do Nordeste gaúcho. A titular da pasta não forneceu detalhes de quando isso pode ocorrer.
Agendamento online e mais ações para saúde pública de Caxias
Na reunião pública, Daniele Meneguzzi também anunciou novas ações para ampliação e melhora dos atendimentos nas unidades básicas de saúde (UBSs), o que pode ajudar a desafogar as unidades de pronto-atendimento (UPAs). A UPA Central teve aumento de 5,5 mil pacientes ao mês, em 2020, para 14 mil consultas ao mês, em 2022. Já a UPA Zona Norte passou de 4,5 mil atendimentos ao mês, em 2020, para 10 mil atendimentos ao mês, em 2022.
— Hoje, com menos médicos faltando nas UBSs, eu ainda tenho uma procura muito maior nas UPAs. Isso é o quê? Aumento de demanda. Como vamos resolver isso? Algumas medidas paliativas, sim, como ampliar o número de médicos que atendem na UPA Central, em que temos consultórios — comentou a secretária, que reconheceu o cenário de que mais de 100 pessoas aguardam consulta no local em alguns dias.
Além disso, a partir desta quarta (11), Daniele lançou um programa-teste para atendimento de consultas online nas UBSs Alvorada e Ana Rech. A ação é para atender uma reclamação da população sobre a demora do atendimento por telefone. O agendamento pode ser feito pelo link agendamento.caxias.rs.gov.br.
— Esse projeto foi montado para proporcionar mais uma oportunidade de acesso da população às consultas. Conforme avaliação dele, pretendemos ampliar gradativamente a abrangência, passando a atender aos usuários de UBSs de outras regiões da cidade — detalha a titular da pasta.
A secretária também anunciou planejamento para reformas e revitalizações de UBSs. De acordo com a pasta, apenas duas unidades não precisam de intervenções — a Cristo Redentor e São Vicente, que são estruturas novas. Para atender a demanda, a SMS volta a contar em 2022 com recurso federal de R$ 5 milhões, destinado a obras em unidades básicas. Na pandemia, o valor precisou ser redirecionado para o combate à covid-19. As reformas devem começar pelas unidades que já possuem projetos prontos, como a Planalto, Mariani e Parque Oásis.
Um outro projeto é a revitalização de UBSs a partir de recursos federais e mão de obra prisional. Ainda sem previsão, a ação contemplará quatro unidades em Caxias do Sul. Outra informação importante é que a prefeitura está perto de tirar do papel a UBS Caminho do Meio, que pode ser construída na região do loteamento Victório Trez a partir de permuta com o setor privado.
Além da atenção em UBSs, a SMS e a CSMA da Câmara dos Vereadores reforçam a importância da finalização das obras do HG. A previsão é que 118 novos leitos sejam abertos com a ampliação.
Isso acaba impactando principalmente nas ações de prevenção de saúde, porque esse médico que está na UBS, ele está lá não apenas para atender as consultas que são de urgência, mas ele está lá para trabalhar a questão da prevenção e da promoção de saúde
DANIELE MENEGUZZI
Secretária da Saúde de Caxias do Sul
Mais médicos para mudar o cenário em Caxias do Sul
A SMS, a Comissão de Saúde e Meio Ambiente e o Conselho Municipal de Saúde (CMS) possuem uma visão em comum para a saúde pública local. Ouvidos pela reportagem, os três órgãos acreditam na necessidade da contratação de mais médicos, principalmente para as UBSs.
Até o início de maio, a secretaria estava com 17 vagas abertas — a pasta conseguiu novas contratações desde o começo do ano, reduzindo o número, que foi de mais de 40 cargos abertos. Das vagas restantes, sete devem ser supridas com concurso público, enquanto as outras podem ser conseguidas por meio de contratos emergenciais de dois anos. As vagas do concurso público são para profissionais com carga horária de 20 horas semanais, enquanto as contratações emergenciais são para 40 horas semanais (em que faltam seis médicos).
— Isso acaba impactando, principalmente, nas ações de prevenção de saúde, porque esse médico que está na UBS, está lá não apenas para atender as consultas de urgência, mas para trabalhar a questão da prevenção e da promoção de saúde. A partir do momento em que tivermos a reposição desses médicos, certamente teremos o número de consultas ampliadas nas UBSs e, por consequência, o impacto positivo na saúde como um todo — prevê Daniele.
O vereador Rafael Bueno (PDT), presidente da CSMA, afirmou que 40% da demanda que chega nas UPAs Central e Zona Norte poderia ser evitada se os pacientes conseguissem o atendimento primário nas UBSs.
— Garantir que a pessoa possa ir lá fazer o seu exame, fazer a aplicação de uma vacina, ver sinais vitais, fazer curativos, ter o atendimento médico e transformar as UBSs regionais em mini UPAs. Essa é a ideia. Fortalecendo as UBSs com médicos. E aí, o outro ponto que a gente estabelece, é a contratação de serviços terceirizados de médicos para não ter a falta desses profissionais — sugere Bueno.
O presidente do Conselho Municipal de Saúde, Alexandre de Almeida Silva, acredita que deva existir uma mudança maior no sistema para atrair profissionais de saúde. Ele sugere a criação de uma fundação pública voltada para os médicos ou, ainda, um plano de carreira focado na área.
— Se faltam médicos, os pacientes procuram atendimento em uma UPA ou um hospital. Está acontecendo muito de o paciente bater na porta da emergência pedindo médico porque a atenção básica não tem investimento em Caxias do Sul. Isso é pela política de governo, política de gestão. A gente abriu concurso público para mais médicos. Só que os médicos não querem assumir pelos baixos salários, que são inferiores aos do mercado de trabalho — destacou Silva.
Com demanda maior, pacientes buscam alternativas
Uma realidade é que Caxias do Sul está atendendo cada vez mais pessoas. O cálculo da SMS é que cerca de 50 cartões SUS são confeccionados por dia no município desde janeiro de 2022 (contando também com aqueles feitos por nascimentos). O número é um sinal de que por motivos como a situação econômica, mais caxienses buscam a rede pública.
O represamento gera preocupação nos pacientes, e até mesmo uma mudança nesta tendência. É o caso de Terezinha Gramms Hoffmann, 63 anos. A aposentada desistiu de esperar um cateterismo, que foi colocado com situação de urgência em abril, e decidiu financiar a operação no sistema privado. A cirurgia está marcada para esta sexta (13), com custo total, com exames juntos, de R$ 5 mil.
— Não tenho plano de saúde. Sou aposentada, com um salário mínimo, então como vou pagar? Sem possibilidades — disse Terezinha, que usou um serviço de convênio para pagar os exames e procedimento.
O cateterismo é necessário para que ela consiga realizar outras duas cirurgias: a de pedra na vesícula e a vascular. Os procedimentos foram autorizados pelo SUS em novembro de 2021, depois de três anos de espera. Quando achou que conseguiria ser atendida, a aposentada descobriu o problema no coração, o que a levou a procurar a rede privada. Terezinha já teve uma parada cardíaca e afirmou que, se tiver outra, pode ser fatal.
— O SUS me chamou (para as duas), não vou dizer que não. Se eu estivesse bem, faria as duas. Só que o cardiologista não libera se eu não estiver 100% do coração — desabafa Terezinha, que espera realizar as outras cirurgias pela rede pública, após o cateterismo.
Já no caso de Wanderley Marques, 74, a espera é por uma cintilografia. Há quatro anos, o aposentado recebe atendimento pela saúde pública para tratar de úlceras varicosas nas pernas. O problema está piorando, com o idoso tendo muitas dores e dificuldade de caminhar. Para mudar o tratamento, Wanderley espera pelo exame desde dezembro de 2021.
— A cardiologista disse que não tem o que fazer sem realizar esse exame. Fui ver para pagar particular, mas custa em torno de R$ 3 mil. Para um aposentado que ganha salário mínimo, não tem como — conta Viviane Almeida Marques, 48, filha do aposentado.
No último contato com a reportagem, Wanderley, que foi internado três vezes por conta das úlceras, estava em espera de leito para nova internação. A filha destaca que recebeu um grande apoio da equipe de enfermagem da UBS Cristo Redentor, que atende o aposentado três vezes por semana.
— A gente está aguardando leito, porque o caso não é bom. Eles (da UBS) estão sendo maravilhosos, o tempo inteiro. A enfermeira e a técnica de enfermagem estão fazendo de tudo — relata a filha.
O que SMS e a prefeitura dizem sobre alegações sobre a área em Caxias do Sul:
Por meio de nota, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Caxias do Sul responde alegações sobre o motivo do represamento da demanda e possíveis faltas de medicamentos e materiais nos postos de saúde.
A Secretaria Municipal da Saúde tem realizado mutirões mesmo durante a pandemia: foram dois mutirões de consultas especializadas, dois da Atenção Primária (modelo até então inédito no município) e dois para solicitação de mamografias.
A realização de consultas, exames e cirurgias eletivos é uma demanda histórica e que foi prejudicada durante a pandemia, uma vez que os atendimentos, inclusive em hospitais, precisaram ser direcionados aos pacientes com covid-19, o que ocorreu em todo o Estado.
Em relação a medicamentos, a Secretaria da Saúde informa que há falta de diversos itens em mercado bem como problemas em processos licitatórios, mas a pasta busca fazer a aquisição para regularizar o mais breve possível.
Sobre espera nas UPAs, 75% dos atendimentos são de pacientes classificados como azuis, ou seja, quando não há urgência. Além disso, o número de atendimentos tem crescido de forma exponencial:
Na UPA Zona Norte foram 4,5 mil atendimentos mensais em 2020, 6,8 mil mensais em 2021 e, até o momento, a média é de 10 mil mensais. Já na UPA Central foram 5,5 atendimentos mensais em 2020, 9 mil em 2021 e o número já chega a 14,6 mil mensais em 2022.
A Secretaria da Saúde lembra que as UPAs são voltadas a casos de urgência e emergência e que aqueles que envolvem risco iminente são atendidos de forma imediata. As UPAs operam com quadro médico completo e há, nas últimas semanas, reforço de profissionais médicos.
Números da saúde em Caxias do Sul
- R$ 338 milhões em investimento
- 40 mil consultas com especialistas em espera
- 9 mil cirurgias eletivas represadas
- 20% de aumento na procura pela rede pública em 2022
O que eles disseram:
— Será que temos saúde em Caxias do Sul? Porque se a gente for falar em atenção primária, atenção básica, a gente está com a falta grande de médicos. Se a gente vai falar da questão das duas UPAs, ontem (segunda) tivemos pessoas esperando por 8 horas em atendimentos nas duas UPAs. Uma mega lotação. Hoje (terça), novamente pela manhã, da mesma forma. Se a gente for falar em alta complexidade, a gente diz que as crianças, que são o futuro da nação, estão esperando leitos hospitalares de 10 a 30 dias — Alexandre de Almeida Silva, presidente do Conselho Municipal de Saúde.
— Mais médicos principalmente nas UBSs, esse é o problema principal. A pessoa, quando chega lá e não tem médico, ela vai procurar outro serviço. Mas, ela vai para UPA, então ela sobrecarrega outro serviço que já está precário. Hoje, os serviços das UPAs estão precários por causa justamente desse sistema. Então, nós precisamos fortalecer as UBSs, com mais médicos. Mas também, hoje está entupido o sistema. O funil está entupido, no que tange a consulta dos especialistas e cirurgias. As pessoas estão morrendo porque não conseguem fazer cirurgia. Com o período da pandemia, as cirurgias ficaram suspensas, as cirurgias eletivas ficaram suspensas — vereador Rafael Bueno (PDT), presidente da Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Câmara de Vereadores.
— Com esse período pós-pandemia, que nem é tão pós assim uma vez que seguimos prestando atendimento para os pacientes. A gente tem aí um exacerbado de pacientes que aguardam, que já estavam em lista de espera antes para realização de procedimentos eletivos, como consultas, exames e até cirurgias, além daqueles que acabaram nesse período de dois anos necessitando de serviços de saúde, que hoje acabam aumentando e ampliando esses tempos e esses prazos, até mesmo essa quantidade de pessoas que seguem em espera para atendimento de saúde. O que a gente tem hoje na nossa cidade é um momento bastante delicado, já que nós temos o adentrar do inverno, com ele doenças respiratórias estão se apresentando novamente. Como todos os anos se apresentam, nós temos sempre nesse momento de transição de outono e inverno um número expressivo de pessoas que procuram o atendimento por problemas respiratórios, além dessa fila engrossada pelos dois anos em que os atendimentos ficaram pausados em função da pandemia — Daniele Meneguzzi, secretária Municipal de Saúde.