Todos os anos, centenas de mulheres são assassinadas por homens com quem mantêm vínculos afetivos no Brasil. Outras tantas são espancadas, humilhadas e ameaçadas, na maioria das vezes, por um marido ou um ex-namorado. No “Agosto Lilás", mês dedicado ao enfrentamento da violência doméstica, mulheres conversaram com a reportagem sobre esse ciclo de violência na Serra. A campanha foi instituída para intensificar a divulgação da Lei Maria da Penha, que completa 15 anos neste sábado (7) e vem embasando ações de combate aos diversos tipos de agressões sofridas pelas mulheres. Por trás de cada um dos números há uma história de dor, de medo, de perda, mas também de recomeço, vitórias e superação.
O levantamento dos Indicadores da Violência Contra a Mulher da Secretaria Estadual da Segurança Pública (disponível no site ssp.rs.gov.br) dá uma ideia do desafio para amenizar a situação. Apenas no primeiro semestre deste ano, 530 mulheres sofreram algum tipo de lesão corporal em Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Farroupilha, Vacaria e Canela, cinco das maiores cidades da Serra. Outras 44 mulheres foram estupradas e três perderam a vida pelas mãos de homens com quem tinham relacionamentos. O número é ainda maior se considerar as 1.125 vítimas que procuraram a Polícia Civil de janeiro a junho para denunciar ameaças praticadas por namorados, companheiros, pais, irmãos ou filhos.
O cenário é ainda pior, pois inúmeros casos não chegam ao conhecimento das autoridades e dos órgãos de proteção. Nem todas registram ocorrência e, com a pandemia, o agressor fica mais tempo em casa, o que inibe a vítima na hora de buscar ajuda. Essa condição poderia explicar a leve redução de alguns tipos de crimes em relação ao ano passado.
No primeiro semestre de 2020, por exemplo, 624 mulheres sofreram algum tipo de lesão corporal nas cinco cidades citadas pela reportagem, uma redução de 15% em relação às 530 ocorrências deste ano. O número de estupros também foi maior no período anterior, com 52 vítimas. Os casos de feminícidios de 2020 são iguais ao de 2021: três. Outras cinco mulheres foram vítimas de feminicídio tentado e 920 registraram ocorrência ameaçada por homens com que convivem ou mantinham vínculos.
Denunciar é um dos passos para romper ciclo de violência
Apenas Caxias do Sul e Bento Gonçalves contam com uma delegacia especializada para tratar de violência contra a mulher na Serra. A Deam de Caxias do Sul tem atuado nas prisões para barrar agressões e ameaças, principalmente, de homens que descumprem medidas protetivas decretadas pela Justiça. Em 2021, foram 26 presos.
A delegada Aline Martinelli ressalta que a redução nos números é positiva, mas também traz uma preocupação: os índices caíram ou as mulheres têm menos acesso aos canais de denúncias porque os agressores estão mais tempo por perto:
— O que nos preocupa é que a pandemia esteja isolando essas mulheres. Agora menos com a flexibilização da medidas, mas ainda estão (os agressores) mais tempo em casa. Diante disso foram criadas campanhas de conscientização como a máscara Roxa e também o X na Mão, que a Polícia Civil adotou como uma ação institucionalizada.
Ela ressalta que apenas o trabalho da Policia Civil não é suficiente, por isso a rede é importante:
— Muitas vezes, só o criminal não será suficiente para aquela mulher. Ela precisa recuperar a autoestima, o autosustento e a autoconfiança, por isso temos uma rede focada para ajudar essa mulher. Esse homem não acordou do dia para a noite e decidiu agredir a mulher, essa violência vem se mostrando todos os dias, por isso é importante ter uma rede de apoio — destaca.
Como encontrar ajuda em Caxias
Caxias do Sul é uma das poucas cidades do RS que conta com serviço de acolhimento. A cidade também tem a disposição das mulheres o Centro de Referência da Mulher vinculado à Coordenadoria da Mulher. Para ampliar a capacidade de atendimento durante a pandemia, a coordenadoria conta com o número (54) 98403-4144. Os atendimentos pelo telefone ocorrem de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h.
Até o momento, em 2021, foram realizados mais de 1.903 atendimentos pelo Centro de Referência da Mulher (CRM), vinculado à Coordenadoria da Mulher. Destes, 269 mulheres tiveram atendimento presencial e 643 mulheres por telefone. A titular da coordenadoria, a advogada Tamyris Padilha, ressalta que a cidade é referência no atendimento, mas precisa aprimorar os serviços e investir cada vez mais mais em prevenção.
—Precisamos aprimorar o que já existe para que toda a rede trabalhe de forma articulada para que a mulher não seja revitimizada quando é atendida por quem entrega a rede de amparo. Temos também que pensar cada vez mais o atendimento humanizado — aponta.
A coordenadora se refere ao auxílio de psicólogas para amparar a mulher:
— A violência doméstica traz uma carga enorme de sentimentos porque é praticada por alguém que ela conhece, que ela ama e com quem se relaciona. Ela chega muito vulnerável e precisa ser acolhida, e se sentir à vontade para contar a história dela.
A coordenadoria promove, desde junho, o evento “Formação de líderes comunitários - Conscientização no combate à violência contra a mulher”. Em quatro edições, a ação já atendeu 39 lideranças dos bairros para treinar os líderes sobre como agir diante de casos de violência doméstica e de que forma ajudar e instruir as vítimas.
"A mulher rompe o ciclo quando ela entende que não merece a violência e que ela é capaz", diz assistente social de abrigo que acolhe vítimas em Caxias
Algumas vezes, as vítimas descrevem com naturalidade as situações de abuso vivenciadas, como se tudo bem que um homem trate assim uma mulher. Em uma conversa de amigas, vez ou outra, o assunto acaba surgindo: um namorado ciumento, que apertou forte o braço dela enquanto perguntava quem era o amigo. O marido que lê as conversas dos aplicativos, mexe no celular e controla o horário para que ela volte para casa. A lembrança dos insultos, da casa quebrada, do primeiro tapa, de fugir com as crianças no meio da noite e ter medo de fechar os olhos e pegar no sono porque o ex pode aparecer a qualquer momento.
São mulheres que convivem com ameaças, xingamentos, tapas e aprenderam a ver a violência contra elas como algo natural. É assim que as vítimas chegam à Casa Viva Rachel, referência no acolhimento:
— Cada mulher que vem aqui se surpreende quando perguntamos: "quais são as violências que tu sofreu". Porque pra chegar a agressão física ela passou por várias etapas: a violência psicológica que é a primeira, a moral que é quando a mulher é muito ofendida, e que bate forte, e desperta um alarme, a patrimonial e então a física — relata a assistente social da Viva Rachel, que tem o nome preservado por razões de segurança e privacidade.
Conforme a profissional, sempre há elementos parecidos porque as mulheres passam por atos de manipulação, controle, humilhação e isolamento. Muitas vezes, as atitudes são camufladas com o discurso "eu só quero cuidar de você" ou "eu tenho muito ciúmes porque você é o meu amor"
Para a assistente social, tudo muda quando a mulher percebe que é capaz de ser dona da própria vida:
— Trabalhamos a autonomia dela, mostramos as capacidades que elas têm, estimulamos aquilo com o que elas se identificam, porque a maioria não sabe o que gosta, o que sabe fazer e até mesmo quem e como ela é. Isso porque alguém sempre disse a elas o que fazer. Elas se anulam ao longo dos anos, e elas veem isso como certo, e então surge aquela verdade: "eu não preciso disso, eu sou capaz sozinha e eu não mereço essa violência", e é quando ela recomeça.
"Ele me humilhava, dizia que ninguém me queria, que eu não tinha capacidade, voltava para casa sujo de batom, com papel de motel", conta vítima
Alice, nome fictício, tem 36 anos. Ela conta que viveu dez anos em um relacionamento abusivo. Hoje, percebe que os sinais de que o ex-marido era agressivo estavam presentes desde o começo, mas ela ignorava.
— Ele dava sinais que era uma pessoa agressiva e violenta. Ele me ligava várias vezes durante o dia para saber onde eu estava, com quem eu estava, e ia me buscar no trabalho quando a gente namorava e para mim era sinal de amor e de cuidado. Hoje, percebo que ele andava sempre me vigiando.
O casal namorou por quatro anos, terminou, e depois de um tempo voltou a se relacionar, e a mulher engravidou. O marido deixava ela em casa sozinha, e quando o filho dele tinha pouco mais de um ano, as ameaças começaram. Ela passou a sentir medo:
— Ele queria sair à noite e eu disse que não e ele me disse: "Cala a boca, fica quieta no teu canto, ou eu te quebro a cara", eu tinha medo, mas como todo agressor ele conversava e eu estava fragilizada e aceitava porque eu merecia e queria manter minha família. Ele parava e depois recomeçava. Ele me humilhava, dizia que ninguém me queria, que eu não tinha capacidade, voltava para casa sujo de batom, com papel de motel. Até um dia em que ele me trancou dentro de casa e ficou lá fora com um dos nossos filhos pequenos no colo. Foi horrível e foi quando acabou porque eu estava com bastante medo — desabafa.
Ela solicitou medida protetiva e saiu de casa apenas com as roupas dela e dos filhos. Procurou ajuda no Serviço de Assistência Jurídica Gratuita (Saju) na Universidade de Caxias do Sul e depois no Centro de Referência da Mulher. Ao ouvir o depoimento de outras vítimas, percebeu que a violência doméstica atinge a todas, não importando escolaridade, raça, classe social ou etnia:
— Nós não sabemos a força que temos, no começo eu só chorava e me perguntava por que eu? No começo é difícil e a gente vive um luto, mas hoje eu não tenho mais medo dele. O agressor pega o teu ponto fraco, a tua fragilidade e é ali que ele investe. Tem que procurar ajuda sim, chamar a polícia, denunciar, e tu vai dar a volta por cima. Eles dizem: "se continua com o agressor é porque a mulher gosta de apanhar", não, não é. Ela não consegue se enxergar, ela fica naquela relação porque ela está anestesiada, enredada, e ela acredita que merece viver aquilo, e ela não merece. Ela tem que se libertar!
Políticas públicas
Em termos de legislação, as mulheres estão representadas pela lei Maria da Penha e pelas alterações nas tipificações penais que garantiram uma maior eficácia contra o agressor, segundo a advogada Mônica Montanari. Contudo, a especialista avalia que é necessário constantes avanços. Ela aponta que o orçamento público destinado para custear as políticas públicas foi reduzido no Brasil, o que considera um retrocesso:
— O Portal da Transparência aponta valores ínfimos destinados e o site da Secretaria Especial de Mulheres não possui nenhuma ação atualmente. Não há dados, não há dinheiro, ou seja, políticas públicas destinadas às mulheres no atual governo federal é uma coisa inexistente. O governo estadual também diminuiu a verba junto à Secretaria de Segurança Pública e a Secretaria de Mulheres está praticamente desativada — ressalta a advogada.
A Coordenadora do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (Comdim) de Caxias, Joceli Aparecida de Queiroz, também aponta que há falta de investimento na área de segurança, com consequente sucateamento, o que prejudica as políticas públicas.
— Há pouco tempo recebi uma ligação de uma jovem do movimento de mulheres de Gramado sobre um caso sério de violência doméstica e elas não tinham a quem recorrer para encontrar ajuda. Só tem Deam em Caxias e Bento e todas as cidades que nos cercam não têm amparo, abrigos e acolhimento. A violência não escolhe região geográfica, há violência lá também e as mulheres enfrentam ainda mais dificuldades para encontrar ajuda — ressalta Joceli.
Para ela, é preciso ainda que a sociedade entenda porque a mulher teme denunciar o agressor e, ao invés de julgar a situação, analise o sofrimento que a vítima enfrenta todos os dias.
— É preciso compreender que para uma mulher, especialmente a que tem filhos, para sair de casa ela precisa de autonomia financeira e de estabilidade emocional também. Entendam e parem de reproduzir frases como "ela gosta de apanhar porque não larga o marido" não, ela não gosta. Ninguém gosta de apanhar e essa mulher vive essa situação e às vezes acontece o pior e ela se torna vítima de feminicídio. Precisamos de compreensão e de projetos para que elas tenham acesso ao mercado de trabalho e possam sair de casa — finaliza Mônica.
ONDE BUSCAR AJUDA
:: Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam): (54) 3220-9280
:: Patrulha Maria da Penha: (54) 98423-2154 (o número está disponível para ligações e mensagens de WhatsApp)
:: Central de Atendimento à Mulher: telefone 180
:: Coordenadoria da Mulher: (54) 3218-6026
:: Centro de Referência daMulher: (54) 3218-6112
:: Sala das Margaridas: atende na Central de Polícia, onde funciona a Delegacia de Pronto-Atendimento, na Rua Irmão Miguel Dario, 1.061, bairro Jardim América. O atendimento especializado funciona 24 horas.