As histórias são parecidas: carregam dor, medo e desespero. São relatos de agressões, abusos físicos e psicológicos, pedidos de ajuda e gritos por socorro. Essa é a realidade de mulheres vítimas de violência, seja praticada pelo namorado, pelo marido, pelo ex-companheiro, pelo pai, pelo filho ou pelo irmão. Em Caxias do Sul, nenhuma mulher procurou farmácias para denunciar violência doméstica desde lançamento da campanha Máscara Roxa em 2020 — no RS, há 88 registros e duas prisões em nove meses.
A campanha permite que a mulher vítima de agressão procure uma farmácia que tenha o selo “Farmácia amiga das mulheres” e peça uma máscara roxa, como se tivesse a intenção de se proteger do coronavírus. O atendente, já treinado, dirá que o produto está em falta, mas pedirá quatro informações para avisar sobre a chegada do equipamento de proteção: nome, endereço e dois telefones. Imediatamente após a coleta dos dados, as informações serão repassadas para um número de WhatsApp disponibilizado pela Polícia Civil. Com o telefone, disponível 24 horas, é possível iniciar uma investigação em qualquer município do Estado.
No principal município da Serra, apesar da baixa adesão à iniciativa criada durante a pandemia, as agressões e ameaças não são incomuns: a cidade contabiliza dois feminicídios em 2021 e uma média de 10 denúncias por dia de violência doméstica à Polícia Civil. De janeiro a abril, foram registrados 1.253 boletins de ocorrência. A média nos primeiros quatro meses de 2021 aumentou na comparação com os dados registrados ao longo de 2020. Em todo o ano, 2.633 mulheres registraram ocorrência policial. É uma média de 219 por mês no ano passado ou sete por dia.
À frente da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam), a delegada Aline Martinelli , encoraja mulheres a denunciarem a violência:
— As mulheres precisam ser informadas de seus direitos e deveres. Elas precisam ser incentivadas a denunciar, porque quanto mais procurarem ajuda mais poderemos barrar os números, porque podemos agir. Isso não significa, por exemplo, que não vá ocorrer um feminicídio, porque sabemos que há casos em que as vítimas não registaram boletins de ocorrência, mas a denúncia é o pontapé inicial para quebrar o ciclo de violência.
Ela ressalta que o combate à violência contra a mulher exige ações interligadas de todos os órgãos, sendo que a Deam tem atuado fortemente nas prisões para barrar agressões e ameaças, principalmente, de homens que descumprem medidas protetivas decretadas pela Justiça. Em 2021, foram 19 presos e 22 armas foram aprendidas. No mesmo período de 2020, sete homens foram presos.
— Temos ações de prevenção e trabalho integrado com a Brigada Militar com o monitoramento da Patrulha Maria da Pena. A Polícia Civil tem atuado fortemente com prisões e apreensões de armas e cumprimento de mandados de quem não está respeitando a medida protetiva. Aumentar as prisões é essencial, porque tirarmos o agressor das ruas, e as medidas protetivas também ajudam a prevenir o crime — afirma a delegada.
Ainda, segundo Aline, para reduzir os números tem que ter o registro e o acompanhamento do caso.
— Temos um trabalho integrado para atender a vítima e poder tirá-la de casa, para que fique acomodada em outro lugar até que possa recomeçar a vida. A rede de proteção funciona em Caxias, mesmo diante de dificuldades, porque nós conseguimos atender, registrar, investigar e amparar a vítima com acolhimento e atendimentos necessários.
Em casos de urgência ou emergência à noite e nos finais de semana devem ser direcionados para o número 190 da Brigada Militar, ou pelo telefone 3238-7700 da Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento, ou ainda para o Disque Denúncia, telefone 180.
Patrulha Maria da Penha
Em meio aos números de agressões, a cidade também registra fatos positivos: em sete anos, a Patrulha Maria da Penha acompanhou 2 mil mulheres com medidas protetivas em Caxias do Sul, sendo que nenhuma delas se tornou vítima de feminicídio. A equipe não acompanha todas as medidas protetivas, mas sim aquelas que são apontadas pela Justiça como casos graves. A equipe que integra a Patrulha Maria da Penha verifica se o agressor está realmente cumprindo a medida protetiva imposta pelo Poder Judiciário. As visitas dos policiais militares fazem com que as mulheres não se sintam sozinhas, que se sintam amparadas, ao mesmo tempo que a presença da polícia desencoraja a aproximação do agressor. Em casos de urgência, a orientação é que seja acionado o 190, desta forma a sala de operações da BM irá deslocar os policiais mais próximos do local para atendimento.
O comandante do 12º Batalhão de Polícia Militar (12º BPM), major Emerson Ubirajara de Souza, explica que a BM acompanha atualmente 178 mulheres.
— A Patrulha Maria da Penha realizou ao longo desses anos mais de 7,1 mil visitas para mais de 2 mil mulheres. São visitas periódicas em suas residências, com a finalidade de verificar se o agressor esta realmente cumprindo a medida protetiva imposta pelo Poder Judiciário. Todas as protegidas possuem o telefone celular da Patrulha (54) 98423-2154, onde podem entrar em contato com os patrulheiros sempre que precisarem.
Ele lembra que a atuação da Patrulha ocorre no pós-delito, sendo que os policiais permanecem acompanhando o cumprimento da medida protetiva de urgência:
— A equipe atua na prevenção de novas agressões, tanto físicas como psicológicas e contribui para a quebra do ciclo de violência, impedindo que os atos violentos se perpetuem na família e nas futuras gerações. Para nós, as ocorrências que envolvem violência são prioridade no atendimento, pois temos como nossa missão proteger as pessoas, ao máximo, para que não sofram qualquer tipo de violência física ou psicológica. É importante destacar que nenhuma das mulheres, até hoje, protegidas pela Patrulha Maria da Penha do 12º BPM, sofreram feminicídio.
Como funciona a rede de amparo
Outro dado que chama atenção é que até abril de 2021 foram atendidas 120 mulheres de forma presencial e 270 de forma remota. Há mulheres que chegam até o serviço do Centro de Referência da Mulher por conta própria, outras por encaminhamentos feitos pela Delegacia da Mulher (Deam), pelo Juizado da Violência Doméstica, pelos serviços de saúde e assistência social do município e outras articulações da Rede de Proteção à Mulher de Caxias do Sul. O Centro de Referência da Mulher é vinculado à Coordenadoria da Mulher e à Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social.
— É um espaço de acolhimento, de escuta, de recebimento de denúncias de violência de gênero, de esclarecimento e de orientação psicológica, social e jurídica. A equipe conta com profissionais assistentes sociais e psicólogas — explica a titular da coordenadoria, a advogada Tamyris Padilha.
Para a ampliar a capacidade de atendimento do serviço durante a pandemia de covid-19, a coordenadoria conta com o número (54) 98403-4144. Os atendimentos pelo telefone ocorrem de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h. A coordenadora aponta que a procura por ajuda se mantém constante, mesmo que não tenha dito registros na campanha Máscara Roxa:
— Não sentimos redução na procura das vítimas, inclusive em função do atendimento via Whatsapp, que se intensificou na pandemia. Assim, percebemos que a procura manteve-se constante, as mulheres vítimas de violência doméstica têm procurado o serviço através dos contatos telefônicos e via mensagens, uma vez que não deixamos de atender diariamente e presencialmente em nenhuma das bandeiras.
Para ela, a violência doméstica, além de combatida, precisa ser prevenida. Tamyris ressalta ainda que para mudar essa realidade é preciso um trabalho de conscientização e reabilitação com os agressores:
— O enfrentamento nós fazemos diariamente, através de articulações de Rede de Proteção à Mulher, com o acolhimento das vítimas, escuta qualificada, incentivando as denúncias e registros de ocorrência, com medidas protetivas judiciais, com o trabalho da Patrulha Maria da Penha e diversos outros alinhamentos entre os serviços de Proteção da Rede. A prevenção é realizada através da educação não-sexista, na base, com as meninas, meninos e adolescentes, um trabalho educativo muito importante.
A advogada lembra que incentivar o desenvolvimento da autonomia feminina também é uma forma de prevenção:
— Uma mulher que possui renda própria, que tem condições de se manter e de manter seus filhos, tem muito mais condições de romper com os ciclos de violência. Nesse sentido, a qualificação profissional e as capacitações educacionais ferramentas indispensáveis de fortalecimento da mulher, de prevenção e enfrentamento da violência.
Desconstrução do machismo
Reeducar, ressocializar e desconstruir. Para o especialista em violência doméstica, o psicólogo Alexandre da Cruz Cabral, principalmente, em temas como a lei Maria da Penha, tipos de violência, machismo estrutural e masculinidade tóxica, esses pontos são necessários para reduzir os números de ocorrências. Em 2018, ele participou do projeto Educando com presos da Penitenciária de Canoas. O interesse por essa área surgiu quando percebeu que o poder público não investe em recuperar pessoas que cometem crimes e que vão voltar a conviver em sociedade:
— Quando começamos esse projetos, percebemos que esses homens não tinham sido educados de forma a não cometer crimes. Eles conheciam a lei Maria da Penha, porque estavam presos por não cumprir a legislação, mas eles não percebiam que tratavam as mulheres como objetos, como propriedade e, ao se dar conta de como agiam, encaravam uma realidade ainda mais dura: eles foram criados assim, vivendo em uma família em que isso era passado a eles como correto. É preciso desconstruir todo esse machismo que está enraizado. Trabalhamos com eles para isso.
O machismo, conforme ele explica, começa na infância, quando as crianças são ensinadas que o azul é a cor do menino e o rosa da menina. Que a menina cuida da casa, e o menino busca o sustento trabalhando fora. O psicólogo ressalta, ainda, que ao mesmo tempo em que as crianças crescem em uma casa com o pai machista, também percebem que a mãe se submete, quando começam uma nova família reproduzem inconscientemente comportamentos que consideram corretos.
— Como se desfaz isso? É muito difícil e tem que começar na infância, nas escolas, onde as crianças passam a ter um novo olhar, a viver em um mundo onde ampliam as oportunidades. No consultório e nas consultas online atendo a diversos pacientes que acabam deixando a terapia, tanto homens quanto mulheres porque aponto a eles que o comportamento machista, a posse, a submissão, e eles não aceitam que é preciso essa ruptura. O machismo provoca sofrimento no casal, nos filhos e em casos mais graves destrói famílias inteiras — explica.
Cabral conta que a maioria dos homens ao perceber que é machista na terapia, quer voltar ao que era antes dessa descoberta, antes da mulher reagir e buscar autonomia e isso, às vezes, evolui para casos ainda mais graves de violência como os feminicídios.
— A mulher também vai para a terapia e começa a se sentir pronta para mudar a realidade em que vive, ter amor próprio, se cuidar mais. E isso incomoda o marido e ela acaba desistindo porque não que se separar e também abandona a terapia. Infelizmente são situações rotineiras. Esses casos ocorrem também com casais homoafetivos e há resistência em mudar — alerta o especialista.
Para ele é necessário investir na ressocialização para evitar que outros crimes sejam cometidos:
— Nas penitenciárias, o trabalho de ressocializar é pequeno diante da quantidade de presos, e entendemos que eles têmque ser punidos por cometer um crime. Na maioria das vezes, os homens que estão presos por feminicídio, agressões, ameaças ou por não ter pago a pensão, nunca tinha cumprido pena. Lá dentro, ao invés de trabalhar essa questão que os levou até lá, muitos ficam com raiva, com ódio e passam a ameaçar a mulher. Nesse momento, parte deles se alia a facções criminosas e passa a dever favores a essas organizações e isso acaba desencadeando situações ainda mais violentas. Eles poderiam sair de lá melhores, com uma base para se reconstruir, mas sem um trabalho diferente para desconstruir o machismo, o sentimento de posse, de superioridade, eles acabam repetindo comportamentos agressivos e de violência.
ONDE BUSCAR AJUDA
:: Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam): (54) 3220-9280
:: Patrulha Maria da Penha: (54) 98423-2154 (o número está disponível para ligações e mensagens de WhatsApp)
:: Central de Atendimento à Mulher: telefone 180
:: Coordenadoria da Mulher: (54) 3218-6026
:: Centro de Referência para a Mulher: (54) 3218-6112
Sala das Margaridas
Pensando em incentivar as mulheres a romper com o ciclo de abusos em busca de dignidade e de uma nova vida, a Polícia Civil ampliou as políticas públicas no enfrentamento à violência. Caxias do Sul conta desde janeiro com a Sala das Margaridas. O espaço é um ambiente reservado, acolhedor e com atendimento especializado a quem sofre violência doméstica. A sala fica na Central de Polícia, onde funciona a delegacia de pronto-atendimento, na Rua Irmão Miguel Dario, 1.061, no bairro Jardim América. O atendimento especializado é de 24h por dia.