Em tempos de mensagens eletrônicas, gifs, emojis “frios” e cards padronizados e impessoais, receber um cartão confeccionado, desenhado, pintado, cortado e escrito à mão pelo remetente é algo pra lá de especial. E quem costuma guardar exemplares de antigos Natais, sabe bem como o ato de felicitar alguém no final do ano era um verdadeiro “ritual” – externando no papel desejos, bons augúrios, confissões e breves relatos do cotidiano.
Um pouco desse antigo fazer artístico pode ser conferido na exposição De Mira Para Ely - Registros da Amizade de Mira Schendel e Ely Andreazza, em cartaz no Colavoro Sanvitto, espaço de coworking sediado no antigo casarão da família, na Av. Júlio de Castilhos. A mostra traz ao público, pela primeira vez, pinturas, poemas, objetos e correspondências que nortearam a amizade do médico oftalmologista caxiense e da artista plástica suíça na década de 1950, em Porto Alegre.
Confissões
Às vésperas do Natal, destacamos aqui forma e conteúdo de dois cartões enviados por Mira a Ely nos meses de dezembro de 1953 e 1954. O de 1954 foi acompanhado de uma mensagem em que Mira fazia uma confissão e comentava o sentido da celebração:
“Querido Ely
Eu não sei mais escrever cartas. Mais uma vez procurarei-te escrever, pois sem dúvida o mereces. Sabes, porém, que nossa amizade, como todas as amizades, depende mais duma disposição interior do que de cartas. Espero te rever uma vez, espero que tua vida continue a ser o esforço que sempre foi, espero que este Natal seja também para ti uma ocasião a mais para refletir no sentido da existência. Às vezes, o sabes, pode ser uma estranha festa a comemoração de um comprido erro. Vinte séculos de cristianismo não podem não significar dor, seja por o seu fracasso do ponto de vista histórico, seja por a terrível nostalgia da salvação. Quanto a mim, não sei dizer como vou. Bem e mal, como sempre. Mandarei os artigos. Viste o último Habitat? Talvez saia algo no próximo Jornal de Letras. Sim, muita gente me apoia e acredita. Uma vez te enviarei um desenho e as cartas que pedistes. Agora, um grande abraço.
Mira.”
“Não tenho tempo pra ficar trancada”
Acontecimentos banais e imprevistos do cotidiano também povoavam as correspondências trocadas entre Mira e Ely, apelidado por ela de Canuccio. Confira um relato de 1951:
“Canuccio.
Não sei se estás em Porto Alegre. O fato é que, inesperadamente, fiquei trancada aqui no teu apartamento. Explico: entrei junto à arrumadeira ou lavadeira, quando (depois de segundos), voltei à sala e vi que ela fechou a porta a chave. Agora chamei gente e pedi a vinda de um serralheiro… Vês que aventuras? E pior que não sei se um dos rapazes está aqui. E tu, em Caxias ou aqui? Ho cercato la macchina da scriveri e l’ho trovata dove speravo di incontrarla (Procurei a máquina de escrever e encontrei-a onde esperava encontrá-la). Cheguei de São Paulo sábado e voltarei para lá em dois dias. Não tenho tempo pra ficar trancada. Agora veio a Elley e me disse que estás aqui. Ainda bem, canuccio. Quando chegares, te direi que recebi tua carta e que fiquei muito contente por ela. Chegou o serralheiro, está abrindo e depois de eu sair, fechará. Ainda não vi Guilhermino e fui convidada para o almoço. São as 11:45. Parece um diário. Bem, voltarei a cerca da 1h, esperando muito encontrar-te.
Mira.”
"Foto linda de uma cara feia"
Um poético retrato de Mira feito por Ely (abaixo) também motivou um bilhete, em 1951:
‘‘Ely, grazie ancora per le foto (fotografie belissime di una bruttissima faccia). Ti sarò grata se mi vorrai dare i negative per fare copie da mandare a mia madre. Lei sarà contenta... Se hai tempo, scrivimi.’’
Traduzindo: "Ely, obrigada mais uma vez pela foto (fotografia linda de uma cara feia). Ficarei grata se puderes me dar os negativos para fazer cópias para mandar a minha mãe. Ela ficará muito contente.... Escreve-me quando tiveres tempo".
O convívio
Entre 1949 e 1953, a artista plástica suíça radicada no Brasil Mira Schendel (1919-1988) morou na Rua Duque de Caxias, em Porto Alegre. Lá, foi vizinha e tornou-se grande amiga do médico caxiense Ely Andreazza (1927-2012), com quem costumava compartilhar não apenas o gosto pelas artes, mas também questões existenciais e filosóficas.
Anos mais tarde, quando a artista já morava em São Paulo, a amizade seguiu sendo alimentada por troca de cartas, cartões-postais e poemas – boa parte deles integrante da atual exposição.
A saber: Mira Schendel é considerada um dos grandes expoentes da arte contemporânea brasileira, tendo obras expostas no MOMA (Nova York) e no MALBA (Buenos Aires), exposições na TATE Gallery (Londres), Museu Serralves (Porto, Portugal) e Bienal de Veneza, além de várias participações na Bienal de São Paulo. Nos anos em que viveu em Porto Alegre, a suíça dedicou-se também intensamente à pintura e à cerâmica, além de escrever seus primeiros poemas. (colaboração de Andrei Andrade).
Programe-se
:: O quê: exposição "De Mira Para Ely - Registros da Amizade de Mira Schendel e Ely Andreazza"
:: Quando: até 28 de janeiro. Visitação de segunda à sexta, das 9h às 18h
:: Onde: Colavoro Sanvitto (Avenida Júlio de Castilhos, 1.989, em Caxias do Sul)
Quanto: entrada franca