Imagine você se proibissem de pensar diferente, como querem alguns. Ficaríamos com uma noção distorcida de tudo, até mesmo de um simples rio, qualquer rio, que jorra como o fluxo de nossos pensamentos.
O rio talvez passasse a ser para nós apenas correnteza. Perderíamos referências anteriores sobre essa torrente, a começar pelas poéticas. Talvez restasse apenas a visão imposta por decreto de burocratas, regulamentada pelos nossos políticos e aplicada por magistrados com rigor em alguns meios bem específicos.
Só os mais resistentes poderiam "Ser como o rio que deflui/ Silencioso dentro da noite", de Manuel Bandeira. Em muitos casos, não o seríamos, pois "Aquele rio/ era como um cão sem plumas./ Nada sabia da chuva azul,/ da fonte cor-de-rosa", como nos dizem os versos do poeta maior, João Cabral de Melo Neto. Talvez precisássemos nos conformar com essa condição inexorável de que "Somos o vão rio prefixado,/ rumo a seu mar. Pela sombra cercado", nessa visão realista do gênio pampiano Jorge Luis Borges.
O tal filósofo que vivia mirando o rio já não nos disse que ninguém o percebe da mesma forma? O rio que passou já não é o mesmo. É outro. Que nem nós: depois de lermos esta frase, já não somos mais como antes.
Se estagnássemos, não alcançaríamos jamais a profundidade de Fernando Pessoa, outro que engrandeceu a nossa língua, para quem "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia".
Dá para ir mais longe ainda, até onde a mente não alcança, como se isso fosse possível – a mente não alcançar: "Rios e mariposas/ Emprenhados de sol/ Eis um dia de pássaro ganho", nos provoca Manoel de Barros. Não dá vontade de um dia assim, hoje mesmo, agora, nesse instante que já passou, como o rio? De pássaro ganho, imagine.
Lembramos então de uns versos de Cecília Meireles. Falam de um momento em que "Largos rios de corpo sossegado/ dormiam sobre a tarde, imensamente,/– e eram sonhos sem fim, de cada lado". E nos damos conta de que o importante mesmo é algo trivial: "O rio sempre renasce/ A morte é vida", nos lembra em versos o gênio da prosa, João Guimarães Rosa.
Se não houvesse diversidade de pensamento, correríamos o risco de retroceder a uma condição de indigência mental. Seria mais ou menos como torcer pelo contrário do que diz a letra de Imagine, na qual John Lennon sonhou o mundo dos sonhos.
Veríamos apenas água que corre onde é o rio. Não teríamos, cada um de nós e todos juntos, a liberdade de percebê-lo e de descrevê-lo em toda a sua plenitude, do nosso jeito. Não haveria visões antagônicas ou complementares que levam a outras e mais outras, infinitas vezes, sobre o Tejo, sobre o Capibaribe, sobre todos os rios.
Simplesmente, passaríamos a ignorar o fio tênue entre os extremos, entre as margens, pelo qual circula o conhecimento gerado pela troca de ideias entre pessoas que debatem e ponderam, que olham pela janela e refletem. Que não se deixam levar pela onda, enrijecidas.
Se pensar diferente fosse proibido, não haveria mais esse jorro de ideias que flui como um verdadeiro rio. Ficaria tudo raso. Tudo igual. Tudo monótono e assustador como água escorrendo permanentemente nas trevas. Tudo sem cor, sem poesia e sem vida. Seria o fim.