Difícil imaginar, mas e se o Rio Grande do Sul fosse hoje não um Estado do Brasil, mas um país platino? Já fomos, e imaginação ainda não paga imposto. Pensar nisso não tem nada a ver com militância separatista. É só mente solta, livre como o minuano soprando sobre o pampa conquistado dos espanhóis e mantido sob um clima de guerra permanente, como se estivéssemos sempre a apontar armas. Daí que vivemos assim, até ontem, talvez ainda hoje, de luto pelos que tiveram a cabeça decepada num oceano de sangue, pelos que guerrearam até tombar em farrapos, por tudo isso que está aí, tão pouco, quase nada.
Chegamos a fazer parte do vice-reinado da Espanha nessa vasta região banhada pelo Rio da Prata. Às suas margens, surgiram civilizações como Montevidéu e Buenos Aires, mais a portuguesa Colônia do Sacramento, símbolos de disputas de domínio hoje transferidas para o mundo virtual. Colônia, bem em frente à capital portenha, segue perdida no tempo, sob o silêncio das infinitas sestas em que até os perros dormem e os peões estendem seu cansaço sobre pelegos. Portugal trocou-a pelas Missões. Assumiu assim o que é hoje é esse Estado cujos erros começam no nome, pois conseguiram confundir a foz da Lagoa dos Patos com Rio Grande.
O que seríamos nós se fôssemos parte não do Brasil, do qual somos indissociáveis, mas dessas povoações ao longo do Rio da Prata? Estaríamos mais para os fanáticos do Liverpool, mais para o passionalismo dos torcedores do Boca e do River do que para esse jeito de torcer pelo Grêmio ou pelo Inter. Seríamos mais canto e pampa, um pouco mais desengonçados para o samba, menos modestos, mais enfeitados no jeito de vestir e inebriados por aqueles vinhos, pela música e o frio glacial que cortam a alma, pelos filmes de enredo profundo. Veríamos Buenos Aires como um lugar no qual "somos assombrados por fantasmas do passado e cada tango é uma confissão", como nos canta Fito Paez.
Se não tivéssemos optado em fazer parte do Brasil, nossa língua seria hoje não a elevada à condição de arte por Fernando Pessoa e Guimarães Rosa, mas a dos delírios criativos de Miguel de Cervantes e Jorge Luis Borges. Talvez fôssemos menos rudes. Talvez não passássemos a impressão de quem sempre dá ordens, como na guerra. Provavelmente, continuaríamos saindo à noite para passear em família pelas ruas e praças, pelos cafés, pelas casas de jogos. Mas não somos um país platino, muito menos portenhos.
Somos brasileiros. Somos gaúchos brasileiros, não gauchos do pampa hispânico, sem acento, com aquelas cuias minúsculas de cevar mate. Somos uma fronteira, como sintetizou Erico Verissimo, que foi quem mais refletiu a fundo sobre nossa condição.
Os gaúchos, sempre pintados para a guerra, herdaram um jeito belicoso, mas desaprenderam a usá-lo. Chegaram até mesmo a fundar uma República Rio-Grandense para chamar de sua. Mas foi um sonho, que deixou suas marcas no hino e na bandeira, no nome dos Palácios Piratini e Farroupilha, na mente de uns passadistas.
Pior é que perdemos batalhas, cavalos, mas também as causas. Restou a mesmice do cotidiano. A grandiosidade da Bacia do Prata, palco de lutas da construção de um novo mundo, pede mais.