RUBÉN DANIEL MÉNDEZ CASTIGLIONI e ESTEFANÍA BERNABÉ SÁNCHEZ
Escritores, organizadores do livro Velis, Nolis, Cervantes! (Editora do Instituto de Letras/UFRGS)
Poucas são as certezas que temos acerca da vida do maior escritor de língua espanhola: Miguel de Cervantes Saavedra (1547 - 1616), cujos 400 anos de morte são lembrados neste final de semana. Sabemos que não deixou texto teórico explicando sua obra, mas se o tivesse feito, como bem diz a professora e pesquisadora Maria Augusta Vieira, isso provavelmente empobreceria sua literatura. Ao contrário de seus contemporâneos Lope de Vega (que escreveu A Arte Nova de Fazer Comédias) e Luis de Góngora (que deixou extensa correspondência), Cervantes escreveu apenas algumas cartas simples, procurando um novo emprego ou solicitando viajar ao Novo Mundo, "refúgio e amparo dos desesperados da Espanha". Nas duas vezes em que pediu permissão, as autoridades não lhe concederam, e disseram que buscasse o que fazer ali mesmo onde estava. E assim projetou suas aventuras em relatos irônicos e bem humorados, nos quais nosso continente aparece de maneira não explícita em "façanhas dignas de se moldar em bronze, de se esculpir em mármores e de se pintar em telas, para lembrança no futuro", como se lê no Dom Quixote.
O escritor nasceu em Alcalá de Henares, em setembro de 1547. Filho de Leonor de Cortinas, "mulher que lia e escrevia", e de Rodrigo Cervantes, homem afetado por uma profunda surdez, que trabalhava como cirurgião, profissão que, na época, era uma mistura entre barbeiro e aplicador de emplastos. Viveu num tempo cujo ideal de vida consistia em buscar a junção das armas e das letras: sensibilidade e força guerreira. Mesmo que hoje possa parecer contraditório, ao menos existia um ideal de vida, e sabemos que Luis de Camões e Lope de Vega também trilharam esse caminho. Cervantes frequentou, por volta dos 19 ou 20 anos, o Studio Público de Humanidades do mestre Juan López de Hoyos, em Madri. Era um tipo de escola, onde o escritor estudou gramática, filosofia, história, poética e retórica, mais ou menos como um estágio anterior à universidade, que nunca pôde frequentar.
Sabemos que viajou para a Itália (por motivos desconhecidos) e que lutou bravamente contra os inimigos da fé católica na Batalha de Lepanto, onde provavelmente perdeu o movimento do braço esquerdo. Em 1575, voltando da Itália na galera O Sol, um navio berberisco interceptou sua embarcação. Cervantes tornou-se refém dos corsários e passou cinco anos cativo em Argel, a mais cosmopolita e buliçosa cidade mediterrânea do momento, onde conheceu o pior da condição humana, aprendeu algo de árabe e forjou amizades eternas.
Tentou a fuga quatro vezes. Apesar da morte atroz dos cúmplices, Cervantes ficou repetidamente incólume da fúria de seu guardião. Resgatado, buscou um emprego na administração e no exército do Novo Mundo. Mas suas tentativas de demonstrar à Inquisição que tinha sangue "limpo", isto é, católico de quatro gerações, foram em vão. Só conseguiu um emprego público como arrecadador de impostos para a Grande Armada, supostamente Invencível, com a qual o monarca espanhol Felipe II pretendia acabar com a Inglaterra.
Cheio de dívidas, pois o salário demorava ou era pago em parcelas, uma vez mais perdeu a liberdade e foi à prisão de Coria del Río (Córdoba), em 1582, por venda ilegal de trigo. Ainda esteve em outra, uns anos depois, quando o banco onde depositara dinheiro arrecadado para a Armada foi à falência, deixando o escritor com uma imensa dívida que não foi capaz de saldar. Foi parar no Cárcere Real de Sevilha, uma verdadeira cidade penitenciária que tinha até uma pequena venda de papel e tinta para os presos. Ali, Cervantes passou cinco meses em 1599. Seguramente também foi ali, e nessas circunstâncias amargas, que começou a gestar Dom Quixote. No prólogo, escreveu que seu livro foi gerado em "um cárcere onde todo incômodo tem seu assento, e onde todo triste ruído faz sua habitação". Quatro séculos depois, a obra seria escolhida pelo Instituto Nobel como "o melhor livro da história da humanidade".
Cervantes foi preso de novo em 1603, após um tal Gaspar de Ezpeleta aparecer morto em frente a sua casa em Valladolid, sem que se pudesse provar que o escritor tivesse alguma relação com essa morte. O azar e o infortúnio estiveram sempre do seu lado.
Também se mantiveram a seu lado, irredutivelmente e apesar de tudo, as Cervantas, nome depreciativo com o qual se conhecia a quatro mulheres: Andrea e Magdalena Cervantes, suas duas irmãs, Constanza de Ovando, filha de Andrea, e Isabel de Saavedra, filha do escritor, nascida de uma relação esporádica. As Cervantas foram o sustento da família, o vínculo de união, e sem elas não poderiam ter sido pagas as quantidades de dinheiro requeridas para seu resgate de Argel. Sem profissão aparente, a maneira de sobreviver das mulheres da família Cervantes trouxe acaloradas discussões e acusações - "são mulheres que admitem visitas de cavalheiros e de outras pessoas, de dia e de noite", consta num processo judicial contra a família, em Valladolid.
Com uma trajetória cheia de vaivéns e de luta, talvez o gênio de sua literatura não tivesse sido igual sem os ingredientes de sua existência conturbada. Nesta época de modernidade líquida, expressão do sociólogo Zygmunt Bauman, onde tudo é efêmero e volátil, onde a artificialidade e o etéreo nos inundam, o legado de Cervantes se apresenta de forma sólida porque ele soube transformar cada curva do caminho em um pensamento válido e cada vicissitude em sabedoria. Soube entender como poucos o mais profundo da alma humana, dando valor à liberdade, à amizade e à justiça. E soube fazer isso com personagens inesquecíveis que, de tão humanos, parecem que realmente existiram.