A sensação torturante de chegar a dezembro sem dinheiro é como a de quem descobre do nada que lhe levaram carteira, documentos, tudo, até aquele restinho de paciência, menos as contas a pagar. Quem fica de bolso vazio, como um servidor do Executivo, sabe que o peso equivale ao de uma tonelada. No final do ano, quando tudo se intensifica, até as emoções, é como se transportássemos uma rocha gigante. Como diz a garotada, "você não tá ligado", mas "o bagulho é louco, véio".
Tem uma maioria de funcionários públicos nessa situação, que ninguém mais percebe, pois virou rotina. Tem gente também da iniciativa privada. Todos estão sem receber, ou ganhando uma parcela cada vez mais mínima e mais atrasada. Um ou outro já perdeu o emprego, ou teme perdê-lo, ou desistiu de fornecer para o setor público, pois cansou de receber explicações e, grana que é bom, nada. Há ainda quem tenta uma oportunidade como motorista de aplicativo, quem anda atrás de um saldo perdido do Fundo de Garantia, de uma indenização, do benefício cortado, do rendimento do PIS, até cair na real entre um guichê e outro. Todos na penúria. Todos arrastando essa incômoda condição da falta de dinheiro. E as faturas chegando, pois para isso aparece carteiro.
Temos um palácio muito top com o nome dos tempos de bravura, com lustres imitando os de Versalhes, uma escadaria de mármore, jardins e salões majestosos com vista para o Guaíba. Temos o paço municipal exatamente sobre o paralelo 30 e o marco zero de Porto Alegre, no seu esplendor da grandiosidade positivista. Símbolos de uma época que se foi, mas poucos se deram conta. Estamos hoje mais para aquele castelo de Assis Brasil ruindo com altivez sobre o nada, em pleno pampa.
Quem olha em volta, em busca das razões da derrocada, tem vontade de correr da área urbana até o campo, berrando a letra de Vitor Ramil: "Videntes loucos de cara/ Descrentes loucos de cara/ Pirados loucos de cara/ Ah, vamos sumir!". Mas para onde? Com que dinheiro? Com que roupa?
Difícil não alucinar como um Dom Quixote sem seu Rocinante, como um gaúcho a pé. Nos transformamos numa espécie de tropa farroupilha, com as roupas mais puídas do que jeans de juventude fashion, numa luta sem charme, sem cavalo, sem ideais: só por salário.
Os separatistas tentaram, de todas as formas, ocupar Porto Alegre. Conseguiram no máximo alcançar os arredores. Os valorosos/valerosos se trancaram por dentro, fecharam portões, ergueram trincheiras, e não os deixaram passar.
Os sem-dinheiro de final de ano vagueiam pela fracassada República Rio-Grandense como um peso na nossa consciência. Não podemos ignorá-los, deixando-os apenas nas mãos de Santa Edwiges, a quem apelam para libertá-los das dívidas, ou de Santo Onofre, a quem recorrem para que o pagamento venha em dia. Precisamos acolhê-los para garantir-lhes pelo menos o sonho. Não o que se desfaz, mas o que resiste e, por uma dessas razões sem explicação científica, se transforma em realidade quando despertamos, como se aí sim começasse o sonho.