De todas essas homenagens espontâneas que os moradores de Porto Alegre prestam por aí, uma das mais tocantes é a dos ciclistas em frente ao Iberê. A prainha improvisada para a qual se abrem as escotilhas da fundação com o nome de nosso maior artista é ponto de encontro dos que se embriagam, nessa época, ao girar sobre tapetes com todas as cores da primavera.
Diante do prédio feito de rampas, alguns desaceleram. Muitos aproveitam para um gole d'água, para uma conferida no celular, um afago no cabelo de quem não nega parceria. A pausa aquieta as emoções nesse rolé de cansaço bom, de suor que se soma ao mar para salgar a água do Guaíba, e depois evapora e volta como chuva nos corpos arqueados sobre o guidom.
O ritual vai além do aparente: é uma reverência inconsciente ao responsável por imortalizar em arte o vermelho de nossos crepúsculos. É uma saudação, com energia e adrenalina, a quem rabiscou com pigmento branco uns bicicleteiros de dramaticidade aterradora.
Há uma catarse coletiva e permanente nesse lugar mágico. As expressões são as de quem se debate em epifanias múltiplas. Os sonhos se misturam, tecendo uma rede com a solidez de bolhas gigantes de sabão.
No momento de o sol se pôr, baixa o delírio. Tem ângulo melhor na cidade para se assistir ao show? Até os turistas viajados entendem na hora nossa estranha mania de aplaudir o ocaso.
E, então, quando o dia vai, quando a noite vem, os pelotões retomam o ponto de partida. No caminho, surgem umas questões tipo assim se somos como nos vemos, como nos veem, como nos sentimos...
Que doidice. Aqueles seres retratados pelo pintor parecem transportar o peso do vazio de suas existências sobre ghostbikes. Teriam saído da vida real para as telas ou foi o contrário?
A reverência improvisada dos ciclistas a Iberê Camargo, que eternizou as magrelas com sua arte, é uma celebração da vida. Por isso é que transtorna. Por isso é que atrai tanto, como canto de sereia, quem precisa se manter em movimento para garantir o equilíbrio, quem pedala como se estivesse em busca de algo além dos demais, de si mesmo.